Tachado de polêmico, homofóbico, genial, brilhante ou sarcástico, Eminem nunca escondeu de ninguém suas facetas (muitas vezes levadas a sério demais) quando explodiu entre o final da década de 90, início dos anos 2000 com seu "The Marshall Mathers LP", se tornando então, o primeiro rapper branco a obter êxito mundial num cenário dominado por negros. Tido como um dos melhores da história do rap/hip-hop, o icônico álbum apresentava Slim Shady, o polêmico alter-ego do rapper, que representa as contradições existentes na própria sociedade norte-americana, além de ser um personagem sarcástico, mas vulnerável também. O álbum apostava, principalmente, na complexidade, às vezes sádica, das relações humanas para atrair o público. Não à toa, "Stan", terceiro single do álbum e baseado na complexa relação de amor, ódio e vingança de um fã obcecado, levando-o a um trágico fim, se tornou um hit massivo no mundo todo.
Já "MMLP2", que conta com a produção de Dr. Dre e Rick Rubin, responsáveis pelo primeiro, também aposta nisso, mas por vezes mais comedida (na verdade, equilibrada seria a palavra mais correta). Não foi fácil fazer sua review, até mesmo pela complexidade de alguns temas, mas se serve de conselho, para melhor compreensão do álbum, é ideal que ouçam o icônico "The Marshall Mathers LP", porque há referências e interludes espalhadas por toda parte no "MMLP2", que começamos a review agora.
1) "Bad Guy"
Qual a melhor forma de abrir um álbum do Eminem senão com uma canção de um bad guy? Se bem que aqui, ela não pode ser tratada de forma literal, mas cumpre muito bem a questão de te levar a uma revisitação de fatos da essência do "The Marshall Mathers LP" (2000) e logo com um fantasma, que promete assombrá-lo muito ainda. A faixa mais longa do álbum conta com a voz de Sarah Jaffe no refrão e rimas mais suaves na sua produção, enquanto Eminem quase conta ao pé do ouvido a história do drama vivido ao confrontar seu pior inimigo, no caso, Matthew Mitchell, irmão do famoso-fã-enlouquecido-e-obcecado e personagem central de "Stan", que o sequestrou. Matthew quer Eminem de tudo que for jeito e promete não ter pena em sua vingança: "Só somos eu, você e a música agora, Slim. Eu espero que você escute-a, nós estamos em um carro agora. Espere, aqui vai minha letra favorita 'Eu sou o cara mau que tira sarro de pessoas que morrem'. E ei, aqui está a continuação para o meu Mathers LP, apenas para tentar fazer as pessoas comprarem. Bem, o que acha desse belo golpe publicitário? Isso deve ser divertido. Aproveite seu último álbum agora, porque depois desse você vai estar oficialmente acabado. Eminem morto por M&M". Ui!
2) "Parking Lot (Skit)"
Contando com apenas 0:55, temos aqui a faixa mais curtinha do álbum. Na verdade, não passa de uma interlude que continua a ação de um roubo, seguido de um sequestro desenvolvida ao longo da faixa "Criminal", presente na primeira versão, de 2000. Em "Parking Lot (Skit)", podemos ouvir toda movimentação dos personagens, vários palavrões, carro de polícia na perseguição, até o som de um assassinato de um cachorro, culminando no suicídio do personagem principal.
3) "Rhyme or Reason"
Tirando o fato de possuir várias coisas interligadas, um dos grandes êxitos do "MMLP2" é conseguir pôr ganchos em canções aparentemente não complementares. "Parking Lot (Skit)" e "Rhyme or Reason" são um bom exemplo disso. A faixa com o instrumental sampleado do hino rock sensual britânico "Time of Season", do The Zombies, é direcionada à relação de abandono/afastamento entre Eminem e seu pai, canalizada na forma de sátira como o rapper leva assuntos sérios, sejam eles pessoais ou não: "Então, pai, vamos andar e conversar como pai e filho. Embora eu aposte que provavelmente não me aguentaria por um quarteirão sem me bater. Isso é tudo culpa sua. Talvez seja por isso que eu sou tão palhaço... engajado com as lutas dos jovens norte-americanos, enquanto os pais transam, sem estarem cientes dos seus problemas".
4) "So Much Better"
Quem conhece a história do rapper sabe que ele sempre viveu um conturbado relacionamento com Kim Mathers, mãe de suas filhas, desde 1999. Essa louca relação já teve tentativa de suicídio por parte dela, divórcio, briga na justiça pela guarda da filha mais velha, reconciliação, novo casamento e nova separação, com direito até à uma música intitulada "Kim" no "The Marshall Mathers LP", onde Eminem descreve com requintes de crueldade o seu assassinato (!!!). Agora em "So Much Better", o rapper volta a atacar sua ex-mulher indiretamente com sua metralhadora giratória e não parece muito disposto a mudar seu destino em "Kim": "Minha vida será muito melhor se você morrer (de novo). Eu estava deitado na cama na noite passada pensando. E este pensamento só apareceu na minha cabeça e eu pensei 'Você não é m**** nenhuma e será muito mais fácil se você morrer (de novo)".
5) "Survival"
Eminem é um sobrevivente de si próprio e seus maiores medos, então, por que não expressar isso em uma canção? Melhor ainda se ela for boa, como é o caso em "Survival", onde ele se desafia numa competição onde apenas o melhor rapper sobrevive — no caso, ele mesmo.
6) "Legacy"
Costumam reclamar bastante que Eminem parece sempre fazer a mesma coisa em suas produções, o que não dá pra concordar. "Legacy" é uma clara prova disso. Saindo do meio entre rimas agressivas e tendo um arranjo relativamente simples, apenas no piano e bateria ao fundo, que somam-se às gotas da chuva, é uma faixa introspectiva e em alguns pontos até triste, que busca razões para quem ele se tornou hoje em dia. É quase um diálogo com o espelho da alma do rapper, praticamente se despindo para aceitar suas falhas e, assim, se entender como pessoa.
7) "Asshole" (feat. Skylar Grey)
Amada, pupila de Eminem, dona de um dos álbuns mais graciosos do ano e que pouquíssima gente ouviu, Skylar Grey, embora fique escondida atrás do rapper, dá o ar da graça em "Asshole", onde ele se conscientiza do seu lado mais imbecil, ao assumir que não está preparado para ser um pai, mas se esforça para tal e afirma que as únicas mulheres que ama são suas filhas, mesmo que para ser quem é, tenha que esquecer que é pai e que serve de exemplo.
8) "Berzerk"
Escolhida como primeiro single dessa nova fase do Eminem, "Berzerk" já se mostrou exultante logo no primeiro play. Homenageando o hip-hop old school, ele volta à sua habitual agressividade nas rimas e ainda acrescenta elementos novos à sua sonoridade, como guitarras somadas a elementos eletrônicos e mixados de vinil, formando um efeito acústico bem interessante, lembrando bastante o trabalho dos Beastie Boys, fazendo da faixa produzida brilhantemente por Rick Rubin como uma das melhores coisas de 2013 e um retorno em grande estilo: "Agora essa m***a está prestes a começar. Essa festa parece uma chatice, vamos levá-la de volta ao hip-hop e começar do zero".
9) "Rap God"
Como falar de um álbum de Eminem que ressuscita o famoso Slim Shady sem trazer polêmicas em seu retorno? Bem, o buzz single "Rap God" consegue essa proeza, e nem é por conta do "complexo de Deus" que assola o rapper na faixa, mas simplesmente por ela ser uma sátira a vários dos esteriótipos e valores da sociedade atual e considerados criticáveis (na mente do Eminem) ao longo dela. Racismo, bullying, deboche (pra lá de desnecessário, que fique claro) das causas igualitárias e liberdade de gêneros, os rumos do mainstream, política, casos que ficaram famosos na mídia recentemente, tudo isso é criticado ao longo dos pouco mais de 6 minutos de duração do single. Excetuando tudo isso, a faixa traz um dos fast raps mais interessantes de Eminem em anos em volta de uma batida viciante, só mostrando que, "Por que ser um rei quando você pode ser um Deus?".
10) "Brainless"
Com o mesmo discurso já batido e, por vezes, bem homofóbico em alguns versos, Eminem continua na sua sina de resgatar seu passado, mesmo que precise confrontar suas memórias mais dolorosas aqui. Do bullying na escola, até a volta por cima sendo quem é hoje, tudo entra no contexto de "Brainless".
11) "Stronger than I Was"
Testando uma reinvenção, Eminem aposta num rap de forma mais lenta, quase falada em "Strong than I Was". Embora não tenha voz pra aguentar o tom vocal que tenta impor em seu refrão, ele não tem medo de se arriscar. O personagem Eminem, em si, é cheio de nuances. E aqui isso é posto à prova: "Antes de te conhecer, aposto que eu iria ficar bem sem você. E se eu tropeçar, eu não vou cair. Eu vou voltar para cima e uhhh. E eu continuarei sendo humilde quando eu grito 'f***-se', porque eu sou mais forte do que eu era".
12) "The Monster"
HIT. Quarta parceria entre o rapper e a cantora com mais recordes atrás de recorde nas paradas, Rihanna, "The Monster" não tem a menor pretensão de ser uma nova "Love the Way You Lie". Afinal, essa não era a questão e fica ainda mais clara na sua disposição mais acelerada e menos impactante que a de 2011, mesmo assim, perfeita para continuar o mesmo caminho de sucesso, por justamente soar diferente, enquanto Eminem quer apenas confrontar seus maiores monstros, mesmo que tenha que se tornar amigo daqueles que se escondem embaixo de sua cama.
13) "So Far."
Não se levando a sério e ainda trazendo um divertido encontro em 3:04 com o clássico "The Real Slim Shady", Eminem faz de "So Far." a faixa mais politicamente incorreta e engraçada (porque bom humor ele também tem de sobra, mas aqui ainda estava deixando em segundo plano) do álbum.
14) "Love Game" (feat. Kendrick Lamar)
Assim como Skylar Grey, Kendrick Lamar é outro pupilo e queridinho de Eminem. Da mesma forma que o dueto abaixo, com o Nate Ruess, é algo que confesso que esperava bem mais, por todo potencial que possuem individualmente. No fim, next.
15) "Headlights " (feat. Nate Ruess)
Nate ficou muito fun. aqui, o que é um erro. Adoro o trabalho dele, mas poderia ter acrescentado mais. Pra uma faixa que prometia muito quando ele foi anunciado como um dos colaboradores, o resultado final é bem aquém. Uma pena. A letra é ótima, o arranjo é legal, mas o conjunto é bem qualquer coisa. Uma música que cita todo o conturbado relacionamento de Eminem com sua mãe e o fato de lidar com um pai ausente, com direito a pedido de desculpas públicas à sua figura materna por, em algum momento, não ter sido quem ela esperava que ele fosse. Também é possível observar uma revisitação à "Cleanin' Out My Closet", onde ele expõe pela primeira vez esse tipo de problema.
16) "Evil Twin"
Encerrar de forma normal não seria convencional para Eminem. Então, que tal ao invés de um, duplicar seu próprio demônio? "Evil Twin" está aí para mostrar quem de fato manda na cena hip-hop e ainda causará muito mais estrago. Pra mim, "Evil Twin" é a faixa mais fraca do álbum e nem é pelo fato de Lady Gaga, Justin Bieber, Christina Aguilera, Britney e LMFAO serem satirizados pelo rapper aqui, mas apenas pelo fato de soar comum demais.
A versão Deluxe do "MMLP2" traz mais cinco sons: a raivosa e irônica "Baby", o flerte com o country rock na curiosa e interessante "Desperation" (feat. Jamie N Commons), a vontade de Eminem em sua zona de conforto em "Groundhog Day", além da linda "Beautiful Pain", com a participação da fofa da Sia, que traz um sopro de esperança em um Eminem que, por mais irônico/cínico que seja, ainda deixa transparecer seu lado mais humano em certas situações, como a dessa faixa, sobre o doloroso período de reabilitação numa clínica pra se livrar da dependência química, caminhando o álbum para o seu final, onde traz mais um pouco de rap puro em "Wicked Ways" (feat. X Ambassadors) com vocais fortes no refrão.
Concluindo:
Goste ou desgoste, uma coisa é fato: Eminem é um dos maiores rappers da história e tem um talento (por vezes questionável pelas polêmicas) sensacional. Em "MMLP2" ele conseguiu equilibrar os dois lados que lhe possibilitaram todo esse hype — o humor, por vezes sádico, e seu lado mais pessoal, introspectivo. É comparável ao lendário "The Marshall Mathers LP"? Não. Embora resgate vários pontos de treze anos atrás para contar sua nova história, não passa nem perto do brilhantismo do primeiro, mas também não é um álbum ruim, pelo contrário. "MMLP2" tem a principal proeza de devolver Eminem aos rumos, principalmente depois de dois álbuns tão desconexos, casos de "Relapse" (2009) e "Recovery" (2010). No fim, é como se esse novo álbum fosse um espelho da alma do rapper, seja em assuntos familiares ou polêmicos, trazendo à tona os vários motivos que fazem "deus do rap", ou simplesmente satirizando o próprio meio em que ele habita. E se você não segue a religião desse deus por algum motivo ou, na pior das hipóteses, detesta rap, saiba que ainda ouvirá muito sobre este álbum, que deve vencer alguns prêmios importantes no próximo ano.