É evidente que o pop não é o estilo musical predominante no país - é só olharmos para a Brasil Hot 100, parada da Billboard brasileira (sim, ela existe) para notarmos o quão restrito é o pop por lá, com o sertanejo dominando. Mas nós, amantes do estilo, sempre ficamos de olhos nos expoentes do gênero nas terras tupiniquins e sabemos como somos carentes nesse departamento. De vez em quando surge algum fenômeno para termos fé no cenário, mas só de vez em quando.
Com nomes desde Banda Uó, passando por Wanessa e até Anitta, ano após ano buscamos um nome ou mesmo uma música para chamarmos de nossa, e eis que em 2015 encontramos "Tombei" da Karol Conká. Lançado no finzinho de 2014, a faixa ganhou seu videoclipe no último dia 19 e deixou todo mundo tombado com a produção excelente, mostrando que não, justificar produções ruins só porque são brasileiras não é desculpa, além de reduzir nossa cultura, colocando-a num patamar inferior.
Mas vamos falar de "Tombei". O single da curitibana mistura trap, hip-hop, funk e um montão de estilos e atitudes num só, e não é que a coisa funciona MUITO bem? Do batidão do funk até o triângulo sensacional e puramente brasileiro (trazido por Tropkillaz), Conká orquestrou uma música genuinamente da terra que só poderia ficar melhor com a letra que possui.
"Tombei" é uma canção puramente feminista. É meio estranho parar para analisar uma música que foi constituída para nos fazer dançar, sejamos sinceros, mas é ao parar e dissecar os versos da canção que vemos o quão genial ela é. Basicamente, Karol relata o encontro com um cara machista. Ela, ao se deparar com os conceitos e opiniões segregadores, já manda o recato: "Se é pra entender o recado então bota esse som no talo, mas vem sem cantar de galo que eu não vou admitir. Faça o que eu falo, e se tiver tão complicado é porque não tá preparado, se retire, pode ir".
O empoderamento segue a letra a todo o momento, como em "É no meu tempo, as minhas regras vão te causar um efeito. É quando eu quero, se conforma, é desse jeito. Se quer falar comigo então fala direito", o que é um alívio sem precedentes quando olhamos para canções de outras artistas que seguem a mesma linha. Vamos pegar dois exemplos recentes que fizeram bastante sucesso: "Show das Poderosas" da Anitta e "Beijinho no Ombro" da Valesca.
Em "Show das Poderosas" temos Anitta cantando sobre o momento em que chega à balada e encontra suas "rivais". "Agora é a hora do show das poderosas que descem e rebolam, afrontam as fogosas, só as que incomodam, expulsam as invejosas (...) Meu exército ameaça coisas do tipo: você". Já "Beijinho no Ombro" é mais explícito o deboche contra "a outra": "Desejo a todas inimigas vida longa pra que elas vejam a cada dia mais nossa vitória. Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba (...) Late mais alto que daqui eu não te escuto. Do camarote, quase não dá pra te ver, tá rachando a cara, tá querendo aparecer (...) O meu sensor de piriguete explodiu, pega a sua inveja e vai pra...".
O que essas duas músicas possuem em comum - além do sucesso e de terem sido feitas por expoentes do funk? São músicas sobre mulheres contra mulheres. É até engraçado ver como o senso comum já colocou as duas citadas uma contra a outra, como se suas músicas fossem "indiretas". Novamente, mulher contra mulher. E os exemplos são inúmeros e em larga escala: Ivete X Leitte, Britney X Aguilera, Gaga X Katy, Rihanna X Beyoncé e por aí vai. O que isso reflete?
Chimamanda Ngozi Adichie já falava em "Flawless" da Beyoncé: "Educamos as garotas a se verem como concorrentes". Em recente entrevista, Madonna comentou exatamente o mesmo: "Nós vivemos num mundo onde as pessoas gostam de colocar mulheres uma contra as outras. E é por isso que eu amo a ideia de encorajar mulheres. É importante para nós nos apoiarmos". Certo, é claro que o objetivo de Anitta e Valesca não foi de fato colocar mulheres umas contra as outras - elas queriam fazer músicas divertidas e só - mas música é, assim como qualquer outra expressão humana, carregada de ideologias, de ideais, de valores, que se transformam em algo muito maior quando massificadas, quando muita gente canta junto. Por que então não fazer uma música que empodere a mulher e a coloque contra valores que a diminuem? É muito melhor lutar contra a opressão do que contra o oprimido, não é mesmo?
Com o clipe Conká assegura a ideia. Temos lá mulheres, homens, brancos, negros e, com certeza, héteros e gays, que a cantora avisa "Não adianta fugir, vai ter que se misturar ou se bater de frente periga cair". É a heterogenia de cores, de gostos, de estilos e de tudo mais que compõe nossa sociedade tão plural e, infelizmente, desigual. Aqui já somos naturalmente introduzidos ao conceito de igualdade, com Karol cantando "Mamasita fala, vagabundo senta", no melhor estilo de rua, fortalecendo a sua autonomia.
O clipe também é recheado com muita sensualidade, com cenas onde Conká dança para um homem descamisado. Isso então não seria a mulher como objeto sexual do homem? Não, porque se trata de uma música cantada por uma mulher e de um clipe estrelado por uma mulher. O sexo feminino também possui expressão sexual, não? Como Beyoncé já nos mostra, libertar seu lado sexual só a faz mais segura da sua feminilidade. Machismo é quando temos mulheres sensualizando de forma gratuita para o bel prazer masculino numa canção masculina, como vimos em "Blurred Lines", onde temos modelos seminuas requebrando numa ode ao sexo do homem. Já passamos do arcaísmo de "Mulher deve se dá ao respeito para ser respeitada", né Anitta? Not today, Satan, not today.
Foi assim que, com "Tombei", Karol Conká nos presenteou com uma das melhores canções brasileiras dos últimos tempo no cenário pop, jogando o discurso machista no lixo nesse hino feminista que sempre precisamos. Já que é pra tombar, tombemos.