"A garota mais triste ela tinha que ser. Lágrimas salgadas rolam pelas suas bochechas. Seu coração é maior que seu corpo. O nome dela é Cry Baby". Assim começa Melanie Martinez no encarte do seu álbum de estreia, "Cry Baby". O conceito de garota melancólica é há tempos usada na arte, e a música não foge disso, com Lana Del Rey sendo a rainha desse grande bloco do Queria Estar Morta, porém a abordagem de Melanie é bem diferente.
Enquanto Lana usa da imagem de femme fatale para criar uma áurea misteriosa e perigosa, nossa boneca se utiliza de artefatos infantis. Começando pelo alter ego, a Cry Baby, uma personagem psicologicamente destruída que acaba destruindo tudo a sua volta, mesmo por baixo de muitos babados cor de rosa. Esse paradoxo do mundo infantil com as letras do material formam um todo bastante complexo e que merece ser ouvido com cuidado.
O álbum é aberto pela faixa-título, "Cry Baby", que logo de cara possui choros e risadas de bebês reais fundidos ao instrumental. A canção é a apresentação da personagem que será seguida por nós a partir de agora. Logo no primeiro verso já somos introduzidos à personalidade da Cry Baby: "Você parece que trocou seu cérebro com seu coração. Você leva as coisas a sério demais, e por isso desmorona. Você tenta se explicar, mas antes de começar essas lágrimas de bebê saem no escuro".
Notamos logo que a personagem é uma pessoa extremamente emocional, mas que possui personalidade forte acima de tudo quando Melanie canta "Eles te chamam de bebê chorão, mas você está pouco se f*dendo". A prova de que a Cry Baby se confunde com a própria intérprete vem nos versos "Eu olho para você e vejo eu mesma. Eu te conheço melhor do que ninguém. Eu tenho a mesma torneira nos meus olhos, então suas lágrimas são minhas. Eles me chama de bebê chorão". Segundo Melanie, a personagem foi criada baseada em situações vividas por ela própria (o que assustará com o decorrer do álbum).
Na próxima canção, "Dollhouse", single extraído do "Doullhouse EP", conhecemos então a família da personagem. Numa metáfora com uma casa de bonecas, a cantora nos convida para adentrarmos pelos corredores da residência, e vemos coisas nada agradáveis. "Você não me ouve quando eu digo 'Mãe, por favor, acorde, papai está com uma puta e seu filho está fumando maconha'. Ninguém nunca escuta. Não deixe eles verem o que se passa na cozinha". A situação fica ainda mais crítica quando ela é obrigada a posar ao lado dos parentes como uma falsa família perfeita: "Sorria para a foto, pose com o seu irmão, você não vai ser uma boa irmã? Todo mundo pensa que nós somos perfeitos. Por favor, não deixe eles olharem através das cortinas". No final ainda fala "Eu vejo coisas que ninguém mais vê".
Continuamos o tour pela casa e vamos conhecemos mais dos seus segredos. Em "Sippy Cup" a Cry Baby revela um forte motivo para a desestruturação familiar: seu irmão, ainda bebê, morreu: "Ele continua morto quando você termina de tomar a garrafa. Claro que é um cadáver que você mantém no berço. Crianças continuam deprimidas mesmo que bem vestidas e xarope continua sendo xarope dentro de uma mamadeira". Entre barulhos de copos sendo enchidos, ela discorre a rotina da mãe, que vai desde uma alienação midiática ("Se eles lhe oferecerem uma nova pílula, então você vai comprar"), até um descaso com a própria saúde ("Você coloca pesos nos bolsos quando visita o médico") e, uma das frases mais compartilhadas do álbum, "Toda a maquiagem do mundo não vai te deixar menos insegura".
Saindo dos problemas familiar, Cry Baby começa a contar seus próprios dilemas internos. Em "Carousel" (que foi música-tema de "American Horror Story: Freaky Show" - para se ter ideia do nível), a personagem conta como teve seu coração quebrado por um falso amor. "Correndo atrás de você é como um conto de fadas, mas eu sinto que estou colada firmemente nesse carrossel. Por que você roubou meu coração de algodão doce? Você o jogou nesse maldito buraco de moedas e agora estou presa. Cavalgando, cavalgando, cavalgando...". A faixa, cheia de sons de circo, é menor comparada às outras do álbum, mas prepara o terreno para a continuação do amor enfermo da Cry Baby na próxima canção.
Em primeiro lugar é importante frisar que "Alphabet Boy" é uma das melhores faixas de todo o álbum. A simbologia aqui é com aqueles bloquinhos de brinquedo com o alfabeto. O dono? O ex amado da Cry Baby. O garoto, letrado, adora jogar sua verborragia em cima da nossa pobre protagonista, que cansou da bagunça e decide jogar tudo de volta: "Eu sei os meus A-B-C's e ainda assim você continua me ensinando. Eu digo 'FODA-SE O SEU DIPLOMA, GAROTO ALFABETO'". Numa perfeita composição feita com aliteração (perceba que os quatro primeiros versos foram compostos com as quatro primeiras letras do alfabeto) que nada pelos sininhos de ninar até a superioridade intelectual, "Alphabeat Boy" é o hino do "chega!". Melhor frase de toda a (genial) letra: "Se você exibir esse diploma e eu matar você, não fique surpreso". Gritos.
Aí que em "Soap" a Cry Baby notou que deixou a torneira aberta e falou coisas que não devia, mesmo estando farta de aguentar tudo calada: "Estou cansada de andar cuidadosamente na ponta dos pés tentando manter a água quente. Eu falei tanto que transbordou. Por que eu sempre derramo?". O que resta então? Como toda criança malcriada, lavar a boca com sabão. Enquanto a ponte é uma melodia crescente que nos carrega sem sabermos exatamente aonde vamos, o refrão é um trap absurdamente incrível feito com o barulho de bolhas (!!11!1!11!). Pois é, a ponte nos jogou dentro da banheira. A produção de "Soap" é tão genialmente óbvia que é impossível não deixá-la no repeat por um tempo só para ouvirmos mais uma vez o refrão com efeitos sonoros de bolhas. Gente?!
"Training Wheels" é o mais próximo de uma balada que o álbum chegará. Produzida sob toques de brinquedos infantis e barulhos de rodas, Cry Baby está amando novamente, e dessa vez parece que é pra valer. "Eu amo tudo o que faz, quando você me chama de burra pra caralho pelas merdas que eu faço. Eu quero pedalar em minha bicicleta com você, completamente despida e sem rodinhas de trás. Eu vou tirá-las para você". A canção, tão fofa que dá azia, trata exatamente da entrega do relacionamento, e como abdicamos de coisas em prol da relação, o que inevitavelmente nos deixa vulneráveis - como a Cry Baby andando na bicicleta sem as rodinhas de apoio.
Chega então o aniversário da personagem, que, toda feliz, decora a casa inteira com laços em tons de pastel em "Pity Party". Só que ninguém aparece - nem o menino que a fez tirar as rodinhas. "Meus convites desapareceram? Por que eu coloquei meu coração em cada letra cursiva? Me diga porquê diabos ninguém está aqui. Talvez seja uma piada cruel para mim". Usando de forma certeira um sample da composição do clássico "It's My Party" de Lesley Gore ("É minha festa e eu choro se quiser"), lançada em 1963, a festa dos sonhos se torna um pesadelo nesse legítimo hino pop que é "A" melhor faixa do "Cry Baby". Mesmo sendo algo devastador para a personagem, que destrói o recinto num ataque de raiva, é mais doce que o bolo de aniversário assistirmos a toda essa loucura pop que deve em nada aos melhores exemplares do gênero vindo das grandes divas.
Cry Baby revoltada sai para dar uma volta e encontra o homem do sorvete. Ela não está muito interessada em provar nada doce depois de sua amarga festa, mas o homem continua a segui-la em "Tag, You're It". "Me observando através da sua janela, seus olhos pularam para fora um pouco. 'Eu vou te cortar e fazer pra você um jantar'. Abaixando sua janela matizada e dirigindo perto de mim bem devagar ele disse: 'Deixe-me te levar para um passeio. Eu tenho um pouco de doce para você aqui dentro'". A faixa, com sons de carro do sorvete, é uma assustadora canção sobre abuso e pedofilia (note como ela coloca vocais modificados na hora que canta as falas do seu lobo mal, para criar a imagem de medo que ele transmite). A produção com cheiro de açúcar deixa tudo estranho quando ela canta de forma quase transtornada no final "Correndo pelo estacionamento ele me perseguiu e não queria parar. Agarrou minha mão, me puxou para baixo, pegou as palavras direto da minha boca". Pesada.
Presa pelo homem do sorvete é hora de Cry Baby se vingar. Usando toda sua delicadeza, ela conquista a confiança do lobo mal em "Milk And Cookies" e vira o jogo ao conseguir envenená-lo: "Silêncio, queridinho, beba seu leite estragado. Eu sou louca para caralho. Você gosta dos meus biscoitos? Eles foram feitos só para você. Um pouco de açúcar, mas muito veneno também". O desconforto continua enquanto Melanie canta cheia de doçura como matou o cara, em versos líricos e cheios de toxina. "Preciso colocar você na cama. Cantar para você uma canção de ninar onde você morre no final". O refrão é nada menos que avassalador, principalmente quando caímos no instrumental com Melanie apenas ninando o agora morto homem do sorvete.
Como uma clássica figura feminina destruída que retorna por meio da vingança, Cry Baby sai das garras do lobo mal pronta pra mais um abate. "Pacify Her" conta como ela rouba o namorado de uma garota que ela odeia. A matança continua com "Garoto cansado anda pelo meu caminho segurando a mão de uma garota. Aquela vadia básica finalmente vai embora, agora eu posso tomar o homem dela. Alguém me disse para ficar longe de coisas que não são suas, mas como ele era seu se ele me queria tanto?". Quando ela consegue o que quer, a garota saqueada chora até irritar a Cry Baby, que pede pro cara acalmá-la. É tudo tão absurdinho, dos suaves toques até a letra onde a protagonista desiste do amor e se transforma numa destruidora de lares, que funciona.
Cry Baby agora está no topo do mundo, completamente dona de si própria e amando cada vez mais o caos. "Mrs. Potato Head" é uma análise crítica sobre o mundo das cirurgias plásticas e a busca pela beleza e perfeição, representados pelo brinquedo Cabeça de Batata (aquele onde podíamos montar o rosto dele inteiro). "Oh, Senhora Cabeça de Batata, me diga: é verdade que a dor é bonita? Um novo rosto vem com garantia? Um rosto bonito vai tornar isso melhor? Oh, Senhor Cabeça de Batata, me diga: como você pagou a cirurgia dela? Você promete que vai ficar para sempre mesmo que o rosto dela não fique junto?". Aqui Melanie traça um processo de "adultização" da infância, com crianças cada vez mais cedo se preocupando com estética e deixando de ser o que realmente são: crianças. A canção é belíssima, possui uma das melhores letras do álbum e tem um refrão glorioso.
Então Cry Baby chega ao fim da sua saga e aceita seu eu interior da forma que é em "Mad Hatter". Caindo na toca do coelho e parando no País das Maravilhas, Cry Baby é uma Alice mais consciente por abraçar sua loucura ao invés de questioná-la. "Os normais, eles me fazem sentir medo. Os malucos, eles me fazem sentir sã. Sou doida, querido, sou maluca. Você acha que sou psicopata, você acha que estou acabada. Diga ao psiquiatra que algo está errado. Te digo um segredo, não estou assustada. E daí se sou louca? As melhores pessoas são". Com uma pegada mais forte, flertando com o hip-hop, o álbum encerra-se com um tom elevado, bem diferente do que poderíamos prever. Cry Baby enfim encontrou a paz interior (através do caos exterior).
Presa pelo homem do sorvete é hora de Cry Baby se vingar. Usando toda sua delicadeza, ela conquista a confiança do lobo mal em "Milk And Cookies" e vira o jogo ao conseguir envenená-lo: "Silêncio, queridinho, beba seu leite estragado. Eu sou louca para caralho. Você gosta dos meus biscoitos? Eles foram feitos só para você. Um pouco de açúcar, mas muito veneno também". O desconforto continua enquanto Melanie canta cheia de doçura como matou o cara, em versos líricos e cheios de toxina. "Preciso colocar você na cama. Cantar para você uma canção de ninar onde você morre no final". O refrão é nada menos que avassalador, principalmente quando caímos no instrumental com Melanie apenas ninando o agora morto homem do sorvete.
Como uma clássica figura feminina destruída que retorna por meio da vingança, Cry Baby sai das garras do lobo mal pronta pra mais um abate. "Pacify Her" conta como ela rouba o namorado de uma garota que ela odeia. A matança continua com "Garoto cansado anda pelo meu caminho segurando a mão de uma garota. Aquela vadia básica finalmente vai embora, agora eu posso tomar o homem dela. Alguém me disse para ficar longe de coisas que não são suas, mas como ele era seu se ele me queria tanto?". Quando ela consegue o que quer, a garota saqueada chora até irritar a Cry Baby, que pede pro cara acalmá-la. É tudo tão absurdinho, dos suaves toques até a letra onde a protagonista desiste do amor e se transforma numa destruidora de lares, que funciona.
Cry Baby agora está no topo do mundo, completamente dona de si própria e amando cada vez mais o caos. "Mrs. Potato Head" é uma análise crítica sobre o mundo das cirurgias plásticas e a busca pela beleza e perfeição, representados pelo brinquedo Cabeça de Batata (aquele onde podíamos montar o rosto dele inteiro). "Oh, Senhora Cabeça de Batata, me diga: é verdade que a dor é bonita? Um novo rosto vem com garantia? Um rosto bonito vai tornar isso melhor? Oh, Senhor Cabeça de Batata, me diga: como você pagou a cirurgia dela? Você promete que vai ficar para sempre mesmo que o rosto dela não fique junto?". Aqui Melanie traça um processo de "adultização" da infância, com crianças cada vez mais cedo se preocupando com estética e deixando de ser o que realmente são: crianças. A canção é belíssima, possui uma das melhores letras do álbum e tem um refrão glorioso.
Então Cry Baby chega ao fim da sua saga e aceita seu eu interior da forma que é em "Mad Hatter". Caindo na toca do coelho e parando no País das Maravilhas, Cry Baby é uma Alice mais consciente por abraçar sua loucura ao invés de questioná-la. "Os normais, eles me fazem sentir medo. Os malucos, eles me fazem sentir sã. Sou doida, querido, sou maluca. Você acha que sou psicopata, você acha que estou acabada. Diga ao psiquiatra que algo está errado. Te digo um segredo, não estou assustada. E daí se sou louca? As melhores pessoas são". Com uma pegada mais forte, flertando com o hip-hop, o álbum encerra-se com um tom elevado, bem diferente do que poderíamos prever. Cry Baby enfim encontrou a paz interior (através do caos exterior).
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RESUMINDO: Vários comentários e críticas caíram em cima do "Cry Baby" por ele "repetir temas", ou "fazer músicas similares". Melanie, antes de tudo, criou um conceito. Ao invés de utilizá-lo de forma acessória, como a gigantesca maioria dos álbuns fazem, ela manteve o eixo central firme para costurar ao redor dele. Quantos álbuns que você conhece fizeram isso? Ao invés de usar a faixa-título para hastear da bandeira, com as outras unindo-se sem grandes eixos, o "Cry Baby" possui TODAS as canções interligadas, contando uma história com início, meio e fim. Os temas se repetem, claro, mas isso é o desenvolvimento do próprio conceito. É só notar com as canções suplantam umas às outras e como suas abordagens interferem diretamente no andar da carruagem. "Pity Party" e "Milk And Cookies" são as duas faixas que controlam as mudanças da personagem, e passear por um álbum onde suas músicas não são apenas enfeite é apoteótico.
"Cry Baby" é uma evocação pop brilhante por todos os elementos, e estamos falando de uma artista com apenas 20 anos de idade. Mas, acima de tudo, trata-se de um álbum perigoso. Os temas nele tratados são macabros - assédio, morte, violência, auto-destruição, pedofilia, insanidade -, e tudo feito dentro duma embalagem atraente, colorida, doce e infantil. A linha entre abordar e fazer apologia e/ou banalização é tênue, porém, o "Cry Baby" não é um álbum infantil e em hipótese alguma destinado para esse público. Como o selo de "Conteúdo explícito" já avisa, é um álbum para adultos.
Nos colocando em posição privilegiada, Melanie Martinez conseguiu tanto nos encantar por sua doçura e proeza nas composições como nos deixar estarrecidos pelo peso de seus versos. Como um paradoxo perfeito e raro dentro do cenário pop, o "Cry Baby" é um híbrido de açúcar e veneno que não conseguimos deixar de consumir. Direto nas nossas veias.