“Eu encontro a mim mesma em minhas melodias. Canto pelo amor, canto para mim. E vou colocar isso para fora, como um pássaro em liberdade”. É assim que Sia canta no refrão de “Bird Set Free”, a primeira música do seu novo disco, “This is Acting”, mas ainda que isso pareça poético o suficiente para a visão de um compositor que, no auge de sua inspiração, apenas usa de sua arte para se expressar, a gente não pode se enganar: pra ela foi tudo atuação.
O novo álbum da australiana, sucessor do divisor de sua carreira, “1000 Forms of Fear” (Chandelier, Elastic Heart, Big Girls Cry), é totalmente composto por músicas que ela escreveu para outras artistas, numa lista que inclui Adele, Beyoncé, Rihanna, Katy Perry, Shakira, Demi Lovato, Jessie J e várias outras, mas se, em algum momento, você imaginou nisso uma proposta em que Sia sairia por completo de sua zona de conforto, se entregando ao papel das suas colegas de trabalho, esteve errado.
Basicamente, “This is Acting” é uma maneira da australiana teimar com alguns dos maiores nomes da indústria, pois via nessas canções potencial para serem grandes hits e, sendo assim, não entendia a razão de terem sido rejeitadas, mas enquanto o disco funciona perfeitamente de um lado, falha miseravelmente em outro. E é isso que exploraremos nessa review. Que abram as cortinas, o teatro vai começar!
1) “Bird Set Free”
Quem rejeitou: “Pitch Perfect 2”, Jessie J, Adele e Rihanna
As composições de maior sucesso da Sia foram suas baladinhas, como “Diamonds”, para Rihanna, e “Pretty Hurts”, para a Beyoncé, e não é à toa que até o David Guetta resolveu entrar na brincadeira com “The Whisperer”, do álbum “Listen”, então, com tanta gente interessada, ela repete a fórmula diversas vezes nesse disco. “Bird Set Free”, entretanto, consegue não cair por completo como algo genérico, talvez pela maneira como mescla bem sua dramaticidade ao contexto artístico.
Sob um arranjo bem semelhante ao seu sucesso solo, “Chandelier”, Sia aplica à música nova o conceito que a própria chama de “victim to victory” (“de vítima à vitoriosa”), mesmo que a inspirou a compor outras como “Titanium” e “Elastic Heart”, enquanto esbraveja o quanto continuará cantando enquanto tiver voz, pois é isso o que a mantém bem.
2) “Alive”
Quem rejeitou: Adele e Rihanna
Uma das melhores músicas já lançadas pela australiana desde que alcançou o estrelato, se esforçando para manter o anonimato, “Alive” é uma balada que grita, literalmente, para soar épica. Nesta, não há dúvidas quanto à forma que os vocais e arranjo trabalham de forma conjunta, crescendo gradualmente, até um ponto em que ficamos com a impressão de que tudo irá para os ares, incluindo as cordas vocais da cantora.
Algumas partes do disco nos fazem pensar “como foi que tal cantora pôde recusar isso?”, mas em “Alive”, tudo o que temos a fazer é agradecer Adele, que co-compôs essa letra, e Rihanna, uma vez que simplesmente não conseguimos imaginá-la na voz de nenhuma outra cantora, senão a própria Sia. O maior momento da música é quando, após uma brusca queda, Sia reascende seu ritmo com os versos cantados de maneira quase incompreensível, afirmando:
“Eu cometi cada um dos erros que você provavelmente poderia ter cometido. Recebi, recebi e recebi o que você me deu, mas você nunca notou que isso estava me machucando. Eu sabia o que eu queria, fui atrás e consegui. Fiz todas as coisas que você disse que eu não era capaz. Te disse que eu nunca seria esquecida e consegui isso sem você”.
3) “One Million Bullets”
Quem rejeitou: a própria Sia
Enquanto “Bird Set Free” e “Alive” abrem o disco de maneira majestosa, sendo baladinhas que, dentro da zona de conforto da Sia, conseguem crescer à sua maneira, “One Million Bullets” chega sendo uma das mais genéricas do registro e, por ironia ou não, foi inicialmente descartada pela própria cantora, no seu disco “1000 Forms of Fear”.
Num tom mais romântico que as anteriores, a sua letra é sobre colocar a mão no fogo por outra pessoa, com a australiana afirmando que “levaria um milhão de balas por você” e, nos versos seguintes, questionando, “quantas você levaria por mim?”. Bateu uma ânsia aqui.
4) “Move Your Body”
Quem rejeitou: Shakira
Essa é a primeira música do disco em que realmente temos a impressão de que Sia está encarnando uma persona que não pertence à ela. Planejada para a Shakira, “Move Your Body” é a “música para a Copa” que a colombiana não quis lançar e, pensando nela desta forma, dá até pra imaginar que Sia tenha composto na mesma época em que contribuiu em “We Are One (Ole Ola)”, do Pitbull com a Jennifer Lopez — errar é humano.
Desta vez, Sia substitui sua entonação vocal tradicional para algo mais próximo da Shakira, mas não esconde o desconforto em estar num espaço que não é seu, cantando de forma tão preguiçosa que dificilmente conseguimos realmente nos sentir contagiados por todos seus excessos. Os gritos do seu refrão, ainda que mais agitados, nos lembram de “Loved Me Back To Life”, composto pela australiana para a Celine Dión.
5) “Unstoppable”
Quem rejeitou: Katy Perry e Demi Lovato
Katy Perry e Sia não se deram muito bem em estúdio. Como a própria contou numa entrevista, a forma que a californiana compõe é muito diferente da sua, funcionando mais como um “quebra cabeça”, em que cada uma das palavras precisam se encaixar de alguma maneira, e das vezes em que tentaram trabalhar juntas, muitas falharam. A única composição da Sia que já esteve num disco da Katy foi “Double Rainbow”, do álbum “Prism”, mas antes de chegar nela, Katy recusou “Chandelier”, “Elastic Heart” e, como agora sabemos, “Unstoppable”.
Ainda que se assemelhe bastante à “Chandelier”, “Unstoppable” traz como um ponto ao seu favor o arranjo marcado por uma progressão triunfante, assim como ela também fez em “Alive”, de maneira que toda a estrutura causa certa ansiedade aos seus momentos finais, nos levando ao seu ápice.
6) “Cheap Thrills”
Quem rejeitou: Rihanna
Daqui em diante, o disco fica realmente interessante. “Cheap Thrills” era planejada para o disco novo da Rihanna, “ANTI”, mas enquanto “Work” fechou a cota dançante por lá, “Cheap Thrills” veio fazer o seu trabalho aqui. Lembrando um pouco do que David Guetta fez com a cantora e Fetty Wap na versão single de “Bang My Head”, a música coloca Sia bem longe das tendências que a própria colocou nas rádios, fazendo agora com que ela beba da fonte do Major Lazer e Justin Bieber, com músicas como “Lean On” e “Sorry”, respectivamente.
Um ponto interessante é que a música, além de soar bem diferente de tudo o que a australiana já lançou, como deveria ser todo o disco, foge também da zona de conforto do seu produtor, Greg Kurstin, que encarnou desta vez alguma versão mais talentosa do Skrillex. No fim das contas, a própria Sia concordou que a música não soaria bem com a Rihanna (o que discordamos, para falar a verdade), afirmando que ela soava mais como algo para as suecas do Icona Pop (o que podemos concordar, sim). Sua letra, é uma ode à diversão barata, e, ainda que esse tropical house e letra sejam dançantes e descontraídos demais para o que estamos acostumados com a australiana, funciona perfeitamente bem em seus vocais. “Querido, eu não preciso de dinheiro para me divertir essa noite (eu amo diversões baratas!) não preciso de dinheiro, enquanto eu puder ouvir as batidas, eu não preciso de dinheiro, enquanto continuar dançando”.
7) “Reaper”
Quem rejeitou: Rihanna e Kanye West
‘This is Acting’, Imma let you finish, but ‘Reaper’ is the best track of all the album. Of all the album. Sim, Rihanna devia estar loucona quando descartou “Reaper”, mas isso provavelmente esteve mais associado à produção do Kanye West, que abandonou tudo referente ao último disco da barbadiana, incluindo o single “FourFiveSeconds”, do que a qualidade incontestável da canção em si.
O curioso, entretanto, é que a própria Sia afirma não gostar de “Reaper”, ainda que essa soe como uma das faixas mais sinceras e relacionadas ao passado da australiana, que sofreu de depressão, teve vício em drogas e tentou até mesmo o suicídio, sendo essa descrita por ela como uma canção que permaneceu no disco apenas porque seu empresário insistiu — muito obrigado, seja ele quem for.
Soando como um verdadeiro clássico, aos moldes do que Kanye West também fez com The Weeknd em “Tell Your Friends” e com seu próprio trabalho em faixas como “Runaway”, do disco “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”, “Reaper” adota a esperança que rodeia boa parte das outras canções do disco, mas de uma maneira menos rasa, demonstrando a vulnerabilidade de sua personagem como nenhuma outra, enquanto implora pra que a morte não venha tão cedo.
“Não venha me buscar hoje, eu estou me sentindo bem e quero saborear isso. Não venha me buscar hoje, estou me sentindo bem e me lembro quando você veio para me levar embora, estive tão perto dos portões do paraíso. Mas não, baby, hoje não. Oh, você tenta me deixar pra baixo. Você me seguiu como uma nuvem negra, mas não, baby, hoje não. Oh, ceifador... Então só volte quando eu já estiver bem e velha. Ainda tenho muitas bebidas para tomar e homens para agarrar. Eu tenho muitas coisas boas para fazer com a minha vida, sim. Quero dançar sentindo a brisa do ar, o vento batendo os meus cabelos e ouvindo o oceano cantar. Tenho muitas coisas boas para fazer com a minha vida.”
Os olhos se encheram aqui.
8) “House on Fire”
Quem rejeitou: não foi revelado.
Sem seu destinatário revelado, “House on Fire” cairia bem nas mãos de muita gente, incluindo Beyoncé, Rihanna, Katy Perry (o arranjo lembra um pouco de “Roar”) e até mesmo para a proposta mais radiofônica de Adele em seu “25”. A música é uma das poucas que conseguem conversar bem tanto com a parte dramática quanto mais animada do disco, soando pronta para as rádios, mas sem deixar a dramaticidade cair.
Casando bem com “Fire Meet Gasoline”, do seu último álbum, tanto temática quanto sonoramente, “House on Fire” fala sobre um relacionamento abusivo, no qual a australiana sabe que está se queimando, mas continua, pois também encontra motivos que a fazem persistir no erro. Os vocais mais relaxados, sem todo aquele exibicionismo das faixas iniciais, tornam a música mais agradável. É um single em potencial.
9) “Footprints”
Quem rejeitou: Beyoncé
Desta vez lembrando “Burn The Pages”, também do disco anterior, “Footprints” mantém a sonoridade comercial da música anterior e repete a ausência favorável de exageros vocais, trazendo ao fundo um coro formado por camadas da sua voz, enquanto, usando uma de suas frequentes metáforas, ela relaciona a história de um casal à estar com os dois pés afundando numa areia movediça.
Ainda que funcione bem, a música é estruturalmente simples e isso talvez se dê por conta da pressa e mente incansável da Sia, que a compôs numa mesma sessão em que escreveu outras vinte e quatro (!) para Beyoncé e seu disco autointitulado.
10) “Sweet Design”
Quem rejeitou: Jennifer Lopez e Beyoncé
Mais um dos grandes momentos do disco, “Sweet Design” foi descartada pela Beyoncé e Jennifer Lopez, mas funcionaria muito bem em discos como “Some People Have REAL Problems” e “We Are Born”, da própria Sia, se não fosse por sua letra. Seu arranjo, fora do convencional, nos lembra dos momentos mais dançantes das duas, como “Get Me Bodied” (Beyoncé) e “Get Right” (JLO), enquanto essa é uma das poucas que voltam a cumprir com a proposta de ter a australiana atuando, já que, passadas composições tão intensas quanto “Pretty Hurts” e “Elastic Heart”, jamais imaginaríamos Sia cantando coisas como “as notícias correm rápido quando você tem um bumbum tão lindo quanto o meu”.
11) “Broken Glass”
Quem rejeitou: Demi Lovato (vacilona!)
De volta à zona de conforto da Sia, “Broken Glass” é mais uma baladinha motivacional, mas traz em sua letra alguns dos melhores versos do disco (“estou te jogando fora, como um vidro quebrado / não há vencedores quando a sorte está lançada / há apenas lágrimas quando é a última tarefa / mas não desista, é só mais um romance jovem”), fugindo da preguiça que a Sia tende a assumir em algumas dessas letras, o que nos faz pensar sobre o que fez Demi Lovato recusá-la pra lançar um disco com músicas como “Old Ways” e “Kingdom Come”, mas a gente supera.
Algo curioso é a sensação de escutá-la tendo em mente uma daquelas animações com lições de moral, tipo “Rei Leão”, sabe? Então não ficaremos surpresos se, assim como “Alive” em “A 5ª Onda”, essa música também conquistasse um espaço nas telonas.
12) “Space Between”
Quem rejeitou: Rihanna
Encerrando a edição standard do disco da melhor maneira possível, “Space Between” é mais um dos grandes momentos do álbum e se assemelha bastante às baladinhas que Sia lançou antes do estrelato, trocando os versos fáceis e refrãos manjados por uma estrutura bem menos comercial e, ainda assim, tocante como só ela seria capaz de fazer.
Ao contrário das outras, “Space Between” não foi exatamente descartada e sim pega de volta. Acontece que a Rihanna topou ficar com ela para o seu “ANTI”, mas a australiana gostou tanto da faixa, que se arrependeu por tê-la vendido e ligou para Rihanna pedindo-a de volta. Imaginem essa conversa.
Pira nossa ou não, a música parece conversar com “Soon We’ll Be Found”, do disco “Some People Have REAL Problems”, e enquanto lá, ela e seu parceiro tentavam dormir para superar as brigas e as perdas, até que pudessem ser encontrados, aqui eles encaram a inevitável separação. “Sem brigas, sem brigas, sem mais brigas para nós. [É preciso] Preencher o vazio em nossa cama. O espaço entre nós é ensurdecedor. Oh, não estamos mais nos encaixando, estamos nos quebrando. E esse espaço entre nós é ensurdecedor”.
13) “Fist Fighting A Sandstorm”
Quem rejeitou: a própria Sia
Uma das melhores produções do álbum, em todos os sentidos, mas mal aproveitada, já que sobrou para a versão exclusiva da loja Target — o que diminui para quase 0% as chances de se tornar um single —, “Fist-Fighting A Sandstorm” é daquelas que imaginamos sendo um puta sucesso nas mãos de algum produtor de música eletrônica, o que poderia torná-la a próxima “Titanium”. Sério.
Em sua letra, Sia fala sobre abrir mão de uma luta pelo coração de outra pessoa e encerra o refrão com um, “eu estou deixando partir e isso é lindo”. Sua sensação de alívio ao tirar o peso das costas é tão bem expressada que toda a música, vibrante do início ao fim, parece nos fazer sentir bem junto com a cantora.
“Lutei tanto pelo seu coração, de todas as formas possíveis, e eu pensei que pudesse salvá-lo da destruição. Mas eu nunca estive no contro-o-le, nunca estive no controle. Lutando uma guerra solitária. Eu nunca estive no contro-o-le, nunca estive no controle. Lutando uma guerra solitária. Eu estava dando murros numa tempestade de areia, agora não estou esmurrando mais nada. Estou deixando partir e isso é lindo”.
14) “Summer Rain”
Quem rejeitou: Christina Aguilera
Dando fim à versão Target do álbum, “Summer Rain” não foi oficialmente dada como uma descartada por Christina Aguilera, mas essa é nossa inevitável aposta, já que a cantora segue em estúdio, gravando o sucessor do álbum “Lotus”, e teve uma filhinha com o mesmo nome da canção. Sendo da Aguilera ou não, a música é mais uma que nos faz sentir estar tão distante dos outros hinos do disco, já que também coloca Sia numa zona radiofônica nada repetitiva e, outra vez, funcionaria perfeitamente como um single, até sucedendo bem a épica “Alive” nas rádios.
Deixando de lado a perspectiva dessa como uma homenagem a filha de Christina Aguilera, “Summer Rain” também é uma ótima música de amor, mantendo a positividade que ficou para essa versão exclusiva do álbum, só que da maneira contrária da música anterior, já que, desta vez, Furler quer sua “chuva de verão” o mais perto que puder. “Eu pensei que você fosse um furacão. Me virei e era apenas uma chuva de verão. Você veio para ‘lavar’ toda a minha dor. Precisei de você em cada uma das suas formas, minha chuva de verão”.
***
Em geral, como atriz, Sia Furler é uma ótima cantora e compositora. É inegável que “This is Acting” tem muito potencial comercial, como a dificuldade para esquecer seus versos não nos deixa mentir, mas o disco falha em seu objetivo principal, de torná-la uma mera intérprete em meio aos hits dos outros, uma vez que muitas dessas faixas apenas repetem o que ela já fez, assim como representam coisas que, sim, facilmente a imaginaríamos lançando.
Tirando os refrãos manjados e essas estruturas tão familiares aos seus últimos trabalhos, nos sobram músicas como “Reaper”, a nossa favorita, “Cheap Thrills” e “Sweet Design”, o que, por melhores que sejam, é de menos para um disco composto por quatorze canções, mas simplesmente não dá pra dizer que um álbum com essas e outras como “Alive”, “Bird Set Free”, “House on Fire” e “Space Between” seja ruim, ainda que, para ela, toda essa grandiosidade soe bastante genérica.
Tão apegada a essa ideia de interpretar suas próprias músicas pela perspectiva de uma terceira pessoa, teria sido mais interessante se, invés de músicas inéditas, Furler tivesse lançado um álbum com suas versões para músicas já vendidas para outros artistas, como “Diamonds”, “Pretty Hurts” e até mesmo “Perfume”, mas reconhecemos que um passo assim seria mais burocrático do que os fãs imaginam, de forma que nos consolamos em termos o “This is Acting” entre nós. A parte ruim é que, com essa metralhadora de hits por aí, Sia corre o risco de terminar marcada por fórmulas cada vez mais batidas, o que, sem dúvidas, poderá prejudicá-la e muito futuramente, tornando o momento mais alto da sua carreira, um dos mais baixos da sua criatividade.