Indicado aos Oscars de:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator (Daniel Kaluuya)
- Melhor Roteiro Original
Atenção: a crítica contém spoilers.
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator (Daniel Kaluuya)
- Melhor Roteiro Original
Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018
Atenção: a crítica contém spoilers.
É bem interessante notar como os filmes de terror são aceitos de forma diferente pelo público. Basicamente, o que é necessário para um longa do gênero ser considerado “bom” é que ele, de alguma maneira, assuste. Não cabe ao horror a função de conscientizar, de debater, enfim, de ter uma postura mais séria. É basicamente a diversão gerada pelo medo seguro do lado de cá da tela.
Há, claro, exemplos de “horrores” que assumem a responsabilidade de discutir algo relevante, como “A Bruxa”, que, no fim das contas, é um filme sobre libertação feminista. É difícil notarmos essa premissa, já que estamos acostumados a esperar simplesmente os sustos diante de um longa de terror, porém, só há o que elevar esse gênero tão massacrado quando ele se posta em posição de debates socialmente relevantes – algo que o drama é quase condicionado a fazer.
O terror sensação de 2017 é “Corra!” (Get Out), que desde a estreia no Festival de Sundance, em janeiro, causou tsunami de hype pelas críticas acaloradamente positivas: até o momento a obra tem nota “universalmente aclamada” no Metacritic e 99% de aprovação dos críticos no Rotten Tomatoes – na ranking geral, “Corra!” é o 4º melhor filme da história no site. Para qualquer filme seria um feito e tanto, para um terror, é história sendo feita. Claro, a tabela do site é construída a partir de dados puramente quantitativos, então não, “Corra!” não é uma obra-prima revolucionária para ser o 4º melhor na história – no Metacritic ele é o 12º melhor de 2017 até agora, algo mais próximo do real.
Imagem: Divulgação/Internet
Com prestígio crítico garantido – e o comercial também; a produção já arrecadou mais de 215$ milhões de dólares contra um orçamento de 4,5$ milhões –, “Corra!” trata do relacionamento de Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams). Ele, negro, e ela, branca, estão arrumando as malas para Rose apresentar o namorado aos pais. A primeira preocupação de Chris é “Seus pais sabem que eu sou... negro?”. “Eles deveriam?”, ela pergunta. Numa cena casual e logo de cara o filme mostra a que veio: discutir o racismo. Dentro dessa nossa fábrica de opressões, até mesmo Chris se preocupa em deixar claro de antemão a cor da sua pele, tranquilizado pela namorada sobre o não preconceito dos pais. Ele nem está reproduzindo o preconceito que sofre, e sim tentando evitar situações que possam lhe causar constrangimento. É melhor prevenir que remediar, porém, tal cena já mostra de forma bastante simples como é a vida de alguém negro.
Tais situações não demoram a aparecer quando, durante a viagem, o carro de Rose atinge um animal. Um policial, branco, ao ver Chris, pede para que ele mostre a carteira de motorista, mesmo que o rapaz não estivesse dirigindo durante o incidente, para a revolta da namorada. O clima de constrangimento velado exalada da tela quando fica evidente que o pedido do policial se baseia unicamente pela cor de Chris.
Imagem: Divulgação/Internet
Chegando à enorme casa dos sogros, que são exageradamente simpáticos, Chris percebe que há, além dos pais de Rose, duas pessoas: Georgina (Betty Gabriel), a empregada, e Walter (Marcus Henderson), o jardineiro. Há duas coisas em comum em ambos: eles são negros e com comportamento bastante estranho. Dean (Bradley Whitford), pai de Rose, se apressa em dizer o quão clichê é aquela cena, os empregados negros na casa da família branca. Ele diz que detesta como isso parece, mas que preconceito não habita aquela casa. Mesmo com as estranhezas dos empregados, há um clima acolhedor que tenta integrar Chris no meio de todos aqueles brancos.
Durante uma conversa em família, Dean pergunta se Chris fuma, e comenta como o hábito é “nojento”, recomendando uma sessão com a esposa, Missy (Catherine Keener), psiquiatra especialista em hipnose. Mesmo contra a vontade do protagonista, Missy o hipnotiza, deixando-o num estado de choque. O filme então constrói visualmente o que o protagonista sente durante o processo: um enorme abismo negro. Chamado de “Lugar Afundado”, a filmagem diegética do poço obscuro na mente de Chris é interessantíssima, e peça chave no decorrer da fita.
Imagem: Divulgação/Internet
No mesmo fim de semana que o casal está na casa, acontece um encontro com vários amigos da família, realizado anualmente desde que os avós de Rose eram vivos. Como já era de se esperar, Chris se sentirá ainda mais perdido, pois a tal festa é feita com vários velhos brancos, todos bastante interessados no novo namorado de Rose. Para provar o quão ele é aceito no meio, um deles fala, sem a menor cerimônia, “Peles brancas são preferência por milhares de anos, mas agora está mudando. Ser negro está na moda”.
Com todos os estranhos acontecimentos à sua volta, Chris decide ir embora com Rose. Sem a sua presença, só o espectador assiste ao que está acontecendo durante a reunião: Dean está num palanque ao lado de uma foto de Chris, enquanto os velhos levantam cartas de bingo. Ele está sendo leiloado. Filmada de forma lenta e com os atores sem proferir uma palavra, a cena é assustadora, crua e ditadora do perigo que Chris corre estando ali. É a apoteose do horror de “Corra!”.
Imagem: Divulgação/Internet
O leilão de Chris funciona, dentro da película, como a real função dele estar ali: a família de Rose conseguiu desenvolver um procedimento através da hipnose (orquestrada pela mãe) e lobotomia (operada pelo pai) onde o cérebro e a mente de alguém são depositados no corpo de outra pessoa. Todos aqueles velhos estavam simplesmente comprando um corpo novo – algo que aconteceu com os dois empregados da casa, que na verdade são pessoas brancas dentro do corpo de pessoas negras. Além dessa premissa do roteiro, há a gritante metáfora da venda da carne negra pela escravidão e a apropriação cultural sofrida por essa população. Pode soar bastante absurdo, mas estamos falando de pessoas brancas comprando o corpo de pessoas negras para habitar naquela realidade. Elas estão, de forma física, se apropriando de suas culturas.
O procedimento é puro elemento do gênero terror, todavia, é em seus subtextos que habita sua força. Até mesmo o "Lugar Afundado" é uma forte metáfora: é lá onde as pessoas negras caem durante o procedimento, onde seus gritos não podem ser ouvidos. O tal lugar nada mais é que o sistema silenciando e marginalizando as pessoas negras. E por que pessoas brancas escolhem justamente negros para seus novos corpos? “Quem é que sabe?”, responde o comprador de Chris. “As pessoas querem mudanças, querem ser mais fortes, mais rápidos, mais legais, mas eu não me importo com a cor da sua pele”.
“Corra!” é uma obra sobre hipocrisias, nos entregando de bandeja aquelas pessoas brancas tão boas, que votariam no Barack Obama pela terceira vez se pudessem, que têm como jogador favorito o Tiger Woods, que adoram tanto pessoas negras que não se importam em comprar seus corpos e literalmente viver dentro deles. São pessoas brancas que todos nós conhecemos, que dizem “tenho nada contra pessoas negros, até alguns amigos meus são” e se dão super bem com negros, desde que eles estejam em posições sociais menores que a deles. Pessoas de bem.
Imagem: Divulgação/Internet
O longa não está preocupado em esconder seus clichês e óbvias referências: o macete da hipnose soa forçado assim como em diversos outros filmes que já se utilizam da técnica para fazer suas histórias andarem, além de ser impossível não lembrar de “A Chave Mestra” (2005) quando descobrimos o mistério da fita. O que “Corra!” está preocupado é em compor momentos que elevam o seu gênero, carregado por cenas brilhantes (a da subida da escada é puro deleite) e discussões sobre racismo postas de maneira lúdica, esperta e incisiva pelas lentes do diretor/roteirista Jordan Peele.
Após o melhor ano para o cinema negro na história que foi 2016, com “Moonlight: Sob a Luz do Luar” vencendo o Oscar de “Melhor Filme”, “Corra!” é um belo pontapé para as discussões sobre a negritude no cinema, principalmente quando inserido no gênero terror, famoso pelo cunho racista, onde o personagem negro sempre morre. Nas mãos de Jordan Peele, “Corra!” se torna a vingança particular de um cineasta negro ao trazer luz ao destino de Chris, num final bastante delicioso e socialmente relevante, principalmente em meio à Era Trump. Precisamos cada vez mais de cineastas dispostos a exporem os nossos problemas de forma criativa e inventiva como vemos com "Corra!".