O maior medo da nossa sociedade é cairmos de volta numa ditadura, mesmo aqui e acolá alguns indivíduos reprovados em História no ensino fundamental peçam a volta do regime. Tolos todos nós somos, pois já vivemos numa ditadura: o regime do spoiler. A palavra está em 11 das 10 postagens nas redes sociais nessa semana graças ao último episódio da quinta temporada de "Game of Thrones", um dos programas de maior sucesso da atualidade. Mas pelas barbas do profeta, o que é "spoiler"?
Spoiler é "qualquer fragmento de uma fala, texto, imagem ou vídeo que se encarregue de fazer revelações de fatos importantes ou mesmo do próprio desfecho da trama de obras tais como filmes, séries, desenhos animados, animações e animes, conteúdo televisivo, livros e videogames, que, na maioria das vezes, prejudicam ou arruínam a apreciação de tais obras pela primeira vez", ou seja, é contar algum detalhe importante da trama, estragando a surpresa.
E por que o spoiler é algo tão sério? No mundo midiático em que vivemos, os artefatos culturais são feitos para atrair o público, claro, pois são eles os consumidores - quanto mais macetes para fisgar o consumidor, melhor. Um dos mais eficientes é o mistério e, consequentemente, sua surpresa. O impacto de desvendar algo junto com a narrativa é construída de forma precisa pelos produtores, que armam uma verdadeira armadilha para nos aprisionar naquilo que estamos lendo, assistindo ou o que seja. Então é meio óbvio afirmar que um spoiler desarma a armadilha e faz com que toda a construção vá por água abaixo.
Essa construção da armadilha em algumas situações é tão grande que o gostar do produto depende da nossa captura. "O Sexto Sentido", um dos maiores filmes de suspense da história, passa toda a sua duração preparando a armadilha para no final nos prender num dos maiores finais surpresa já feitos, portanto, saber previamente da reviravolta aniquila quase que o filme por completo. Em contra partida, há spoilers que se tornaram parte da cultura popular de forma tão forte que é quase essencial para chamar o consumidor até o produto, ou você não sabe que o Darth Vader é o pai do Luke Skywalker?
Já podemos perceber como o spoiler é traiçoeiro e um tema muito complexo. Há muitos argumentos que tentam defendê-lo como em obras que derivam de outras: por exemplo "Harry Potter". Você não pode reclamar dos spoilers do filme porque eles já estavam no livro, ou seja, a culpa é sua por não ter lido os mesmos. E caso você não assista ao filme na sua pré-estreia, na primeira sessão possível, não pode reclamar de spoiler, pois o conteúdo já estava disponível. Ah, sim, claro, é óbvio. Que não.
Se você conseguiu consumir o produto em primeira mão, parabéns, que sorte. Agora é evidente que a maioria não poderá fazer o mesmo, então dá para ser um pouco menos egoísta e não sair contando aos quatro ventos que o Snape mata o Dumbledore na saída do cinema, certo? Como você pode ver nós acabamos de dar um spoiler, mas não estamos aqui defendendo a não propagação desse monstrinho? Que bagunça é essa?
Spoiler possui prazo de validade. Não é definido, marcado, mas possui. Com a agilidade de informações correndo pela internet todo o segundo, fica difícil segurarmos nossa empolgação sobre o produto que tanto amamos e que nos jogou no chão com sua surpresa, todavia nos ajude a segurar essa barra que é deixar para assistir a um episódio por dias e reclamar de spoiler, ou até hoje não ter visto que a Bella beija o Jacob em "Lua Nova" e ficar de birra. Aqui nós temos que adotar a solução para todo e qualquer impasse que existe no nosso mundinho: o bom senso.
E passa longe de habitar no reino mágico do bom senso argumentos mais rasos que uma colher de chá como "Ninguém reclama de spoiler do fim da novela ou do resultado do jogo". Oh criatura de superior intelecto, sente aqui, vamos analisar: a novela e o futebol são transmitidos de forma simultânea na tevê aberta. Qualquer indivíduo com um aparelho de televisão em casa pode ter acesso imediato, gratuito e ao vivo àquele produto, é só apertar um botão, algo completamente diferente do último episódio de "Game of Thrones", por exemplo, ou o atual governo liberou o "Minha HBO, Minha Vida" para todos? Ou até mesmo o "Programa de Aceleração da Minha Banda Larga" para assistirmos online? Já queremos.
Sim, é bem verdade que não existe na nossa Constituição Brasileira ou no nosso legislativo uma lei que proíba spoiler (fica a dica pro Congresso), então se você quiser colocar na foto do seu perfil a vencedora de "RuPaul's Drag Race" 10 segundos depois do resultado, divirta-se, mas, assim como você está no seu direito de ser um babaca, qualquer um está também no de reclamar, achar ruim, bloquear, excluir e colocar seu nome na boca do sapo. Certo que isso não vai mudar muita coisa para você, mas é melhor do que ser egoísta e idiota, não é mesmo?
Então, o que se passa na cabeça de você, isso mesmo, você que enche a boca para falar "eu amo soltar spoiler"? É algo tipo "Nossa, tal coisa aconteceu em 'Game of Thrones', socorro, preciso postar AGORA no Facebook, Twitter e em todos os sites que possuo conta. Preciso falar para todos que isso é incrível e que eu sou incrível por ter visto antes e se você não viu o problema é seu, não me importo com mimimi de quem está abaixo de mim *emoji da unha*"? O spoiler se tornou uma ferramenta de instauração de poder, no caso, o intelectual. Possuir um conteúdo desejado por vários antes da maioria te dá status de superioridade, afinal, você largou na frente e conseguiu o bem na forma mais fresca possível, no entanto, só possuir o poder serve de nada: ele só é válido se você mostrar que o possui. É aquele velho "não adianta ser, é preciso parecer" de Maquiavel, e é aí que o spoiler é disseminado. Impressionante como algo tão pequeno causa toda uma - importante - movimentação social (exagero colocar dessa forma?).
E aqui vai uma notícia exclusiva e bombástica: não aguenta ficar calado e precisa debater sobre algo com spoiler (quem nunca)? Existe o chamado "bate papo privado" no Facebook, as "DMs" no Twitter e até mesmo o Whatsapp e grupos específicos para você soltar o verbo sem medo de ser feliz, deitar e rolar em todos os spoilers que existem no planeta Terra como se não houvesse amanhã. É evidente que o consumo dos bens culturais é bem diferente na nossa realidade se compararmos com 20 anos atrás, e o debate sobre tais bens - que carrega os spoilers - faz parte desse consumo, porém se há formas de fazer isso prejudicando ninguém, por que não? Tente qualquer dia, verá que é ótimo e diminuirá essa cultura mesquinha e individualista, afinal, se você teve a emoção por aquela surpresa, pra quê tirar a de outra pessoa? Se cada um fizer sua parte, a rede mundial de computadores se tornará um lugar melhor, com arco-íris e unicórnios.
Como sabemos que sempre haverão os trolls que ganham o dia revelando as surpresas do seu programa favorito ou daquele filme que você está roendo as unhas para ver, continuaremos caminhando nesse grande campo minado que é a world wide web na tentativa de fugir dos spoilers. Porque, como disse Melisandre certa vez, a internet é escura e cheia de terrores.