Quem
estava nas sessões de "Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 2",
em 2011, deve ter acompanhado pelo menos um espectador com lágrimas nos olhos.
Saindo da impessoalidade do texto, eu mesmo, na pré-estreia de meia-noite do
dia 15 de julho, estava chorando junto com várias outras pessoas. O motivo era
o término de um evento que marcou nossa geração e que cresceu juntamente com
todos nós. O fim de "Harry Potter" nos cinemas foi doído e, ao mesmo
tempo, mágico.
Mal
sabíamos que nosso luto teria um fim num período relativamente curto. Quando
J.K. Rowling, a mente brilhante por trás do mundo potteriano, anunciou em 2013
a adaptação de "Animais Fantásticos e Onde Habitam", livreto derivado
do universo original, todos os fãs ferveram com o início de uma nova série
bruxa. Em novembro de 2016 essa era chegou.
Imagem: Divulgação/Internet
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Mesmo
não acompanhando os personagens que consagraram Daniel Radcliffe, Rupert Grint
e Emma Watson - e mesmo não se passando entre os muros de Hogwarts,
"Animais Fantásticos e Onde Habitam", o filme, nos convidou a
embarcar além das fronteiras do mundo bruxo explorado na franquia "Harry
Potter", voltando no tempo, mais precisamente a 1926. Não seguimos os
passos de Gellert Grindelwald (interpretado por, sim, Johnny Depp), o maior
bruxo das trevas do mundo antes de Lord Voldemort roubar a coroa (e inicar a
Primeira e Segunda Guerra Bruxa, mas isso você já acompanhou nos oito filmes anteriores),
e sim de Newt Scamander (Eddie Redmayne), um jovem e desajeitado bruxo que
chega aos Estados Unidos com uma maleta lotada de animais fantásticos.
Scamander
é, como aqueles que leram o livro sabem, o autor do próprio livro (que deve
aparecer na história nos últimos filmes - serão, incrivelmente, cinco ao todo).
Ele é um grande defensor da proteção das criaturas mágicas, vistas com maus
olhos pela comunidade bruxa. Nos EUA, por exemplo, o seu porte é extremamente
proibido, pois os mesmos acabam revelando a existência bruxa aos
"não-majs" (a forma como os norte-americanos chamam os
"trouxas" - os nascidos não bruxos).
Imagem: Divulgação/Internet
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Quase
como uma inquisição, há uma campanha anti-bruxa acontecendo no país quando
Scamander chega lá, o que força ainda mais os bruxos a viverem às escondidas -
o que, sejamos sinceros, não é tão difícil assim com a ajuda da magia. Com essa
repressão, a marginalização dos bichinhos mágicos é ainda mais forte, mas
Scamander, um poço de cuidado, deixa vários animais fugirem quando esbarra com
Jacob Kowalski (Dan Fogler), um não-maj que sonha em ser padeiro - o alívio
cômico-Rony-Weasley dos protagonistas - Scamander viria a ser um Harry Potter
torto: inevitavelmente atraído por aventuras.
A
protagonista feminina da vez é Tina Goldstein (Katherine Waterston), uma
empregada do Congresso Mágico Norte-Americano (ou MACUSA, na sigla original)
que esbarra com a confusão de Scamander e Jacob, tendo que mantê-los presos - o
bruxo por não ter licença e expor o mundo mágico a um não-maj; e o aspirante a padeiro
por não ter tido a memória apagada (ou "obliviada", no dialeto
mágico). Ainda temos Queenie Goldstein (Alison Sudol), irmã de Tina e uma
versão burlesca de Luna Lovegood. A bruxa, toda sonhadora, consegue ler mentes
- uma habilidade nunca antes explorada, bruxos "X-Men" - e se
apaixona por Jaboc, formando o casal improvável: relacionamentos entre bruxos e
não-majs eram proibidos.
"Harry
Potter" sempre passeou com temas tocantes, sensíveis e relevantes, e é
aqui que "Animais Fantásticos" encontra seu coração. Mesmo sendo um
"amor miojo" (pronto em três minutos depois de algumas mexidinhas),
ambos possuem tanto carisma e tanta química que convencem. Além disso, é
revigorante ver uma co-protagonista se relacionando com o gordinho de bigodes
fora-do-padrão. Mesmo num primeiro momento soando incompatíveis, o casal
arranca risinhos do espectador pela fofura.
Imagem: Divulgação/Internet
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Pena
que não podemos dizer o mesmo dos outros personagens. Enquanto o Scamander de
Redmayne consegue entregar um personagem minimamente efetivo - mesmo repetindo
os trejeitos que o deram um primeiro Oscar, em "A Teoria de Tudo" -,
Waterston é uma porta, completamente apática, o que, além de destoar na tela,
derruba uma personagem cheia de camadas. O roteiro, escrito pela própria J.K.,
também não colabora com o desabrochar da personagem, sempre à sombra de
Scamander. Pelo menos não tivemos um par romântico água-com-açúcar. Jacobeenie
já deu conta do recado.
O
problema de química entre os personagens é só a ponta do icebergue. As próprias
sub-tramas que giram ao redor do eixo central - a caçada de Scamander pelos
animais soltos - não conversam. Enquanto o MACUSA tenta controlar a destruição
que os bichos foragidos estão causando, Percival Graves (Colin Farrell), um
auror do Congresso, está persuadindo Credence Barebone (Ezra Miller), filho
adotivo da líder do movimento anti-bruxo, a encontrar uma criança que possua o
Obscurus, uma entidade destruidora que se manifesta em bruxos jovens reprimidos
- aqueles que são obrigados a não desenvolverem a magia. Em troca, Graves
promete libertar Credence de sua abusiva mãe adotiva.
Imagem: Divulgação/Internet
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A
trama aqui gera o interesse, mas, caso não existisse, mudaria quase nada do
filme. O Obscurus, com toda certeza, será explorado nas obras seguintes,
todavia, aqui virou alegoria gratuita que levou o longa a lugar nenhum. Numa
primeira reviravolta, o próprio Credence é o Obscurus, no entanto esse plot não
vai longe pois o personagem é morto (com uma facilidade incrível) - contudo, há
uma brecha para seu retorno nos filmes seguintes – pobre do Erza em atuar novamente
um personagem tão forçado. Além disso, a busca pela entidade é ainda mais
risível quando descobrimos o motivo de Graves em encontrá-la. Ele é, na verdade
Grindelwald disfarçado, que não abre mão das caras e bocas de Depp. Um dos
maiores bruxos da época usando, o quê?, porção polissuco ou seja lá o
encantamento, numa reviravolta preguiçosa? Eeeerrrrr. Próximo.
Tudo
isso só é prova que, como roteirista, J.K. é uma ótima escritora. Pode até cair
a questão "Ué, mas roteiro não é escrito?", e sim, é escrito, mas
escrever um roteiro exige domínio da linguagem cinematográfica, coisa que J.K.
não possui. O roteiro inteiro parece mais uma adaptação mal feita que cortou
detalhes importantes da obra original, mas aí vemos que foi a própria que
escreveu.
Imagem: Divulgação/Internet
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Com um
roteiro capenga, que possui a cena mais constrangedora de 2016 (a dança do
acasalamento de Scamander), a direção não poderia fazer tanta coisa, tendo que
dar conta de um ritmo que cambaleia e doses exageradas de infantilidade - nem
"Harry Potter e a Pedra Filosofal" é tão infantil. Isso, em tese, não
é um defeito, porém não casa com a maturidade exigida para tudo o que envolva a
película, desde os tempos cada vez mais sombrios causados por Grindelwald (transpostos
à tela em momento nenhum) até mesmo o encerramento da saga original, bem madura
e complexa. "Animais Fantásticos" será ótimo para uma Sessão da Tarde.
A fome
de introduzir novos elementos no universo potteriano (ou scamanderiano, podemos
agora dizer?) acabou deixando "Animais Fantásticos" sem objetivo. Há
bastante potencial - é interessante notar que a autora/roteirista usou os
modelos de regime políticos para criar as entidades mágicas, com o Congresso
Mágico no democrático EUA e o Ministério da Magia na monárquica Inglaterra;
além da própria maleta do protagonista, um grande zoológico escondido cheio de
criaturas estranhas - mas tudo é costurado de forma desleixada, enfraquecendo o
que o filme se propõe em primeiro lugar. Num foco em cima dos animais e na
relação do mundo bruxo com o não-maj, tudo seria mais coeso e um pontapé
melhor para os quatro filmes que virão.
Imagem: Divulgação/Internet
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As sutilezas de alguns detalhes fazem com que o longa enriqueça, todavia demandam de interpretação do espectador, já que a obra em si não desenvolve tais detalhes. Por exemplo: a presidente do Congresso é uma bruxa negra (bastante mal aproveitada aqui, inclusive). O filme se passa na década de 20, anos antes do movimento negro norte-americano instaurar os direitos dessa população no país – porém, no mundo bruxo, tal distinção não existe, com uma mulher negra sendo o símbolo maior da sociedade bruxa dali. Barack Obama só conseguiu isso quase 100 anos depois aqui no lado não-maj, abrindo portas para as diferenças sociais entre uma sociedade bruxa e trouxa, mesmo que convivam no mesmo tempo e espaço. O preconceito enraizado no lado mágico habita na relação entre bruxos e não-majs, que gerariam os chamados mestiços, estes considerados bruxos inferiores aos "puros". Até mesmo em “Harry Potter” tal preconceito é explorado.
"Animais
Fantásticos e Onde Habitam" promete sequências inspiradas, aproveitando as
deixas construídas, contudo, é uma lamentável falha, analisando a obra por si só.
Caso fosse um filme separado da saga "Harry Potter", não teria o
mesmo prestígio crítico e financeiro, indo nas costas do irmão rico e famoso
para seguir em frente. A nostalgia e o pontapé à nova faceta mágica valem a
sessão, entretanto, quando nem mesmo os efeitos visuais impressionam, estamos
diante que um equívoco. Moral da história: "Animais Fantásticos e Onde
Habitam" mira em "Harry Potter", mas acerta "Percy
Jackson" - aquele filminho água-com-açúcar que tenta aproveitar o filão deixado por "Harry Potter", caindo de cara no chão por ser cinematograficamente fraco.