Quando eu conheci “A Garota no Trem” há alguns meses, badalado livro de Paula Hawkins, confesso, nem sabia que existia uma produção cinematográfica sendo feita, muito menos que o filme estava prestes a sair. A obra, um dos meus livros favoritos do ano – foi devorado em três dias, recebeu bastante atenção da crítica e do público, vendendo 15 milhões de cópias mundialmente e se tornando, além de best seller do The New York Times, o livro a ficar mais semanas em #1 na lista: 16 semanas não consecutivas em 2015.
Mas as mãos do cinema correram para cima da obra antes mesmo de ela ser lançada: em 2014, a DreamWorks adquiriu os direitos do livro e, um ano e meio após seu lançamento, o filme chega até nós. Dirigido por Tate Taylor (diretor do ótimo “Histórias Cruzadas”), seguimos Rachel (Emily Blunt), uma alcoólatra divorciada que, para suprir o caos da sua vida, imagina todos os dias a vida de um casal perfeito que ela sempre vê de dentro do seu trem. O amor dos dois, aos olhos de Rachel, é tão perfeito que ela se choca ao descobrir, numa de suas olhadelas para a varanda do casal, que a mulher está traindo o marido. O romance do mundo de Rachel é partido e ela se vê obrigada a partir o romance do mundo real quando descobre que Megan (Haley Bennett), a mulher, está desaparecida.
Assim como o livro, o filme é divido entre três narrativas: de Rachel, Megan e Anna (Rebecca Ferguson). Essa é a terceira ponta do triângulo feminino que Rachel se encontra: ela é a atual esposa de Tom (Justin Theroux), ex-marido da protagonista. A coisa é ainda mais complicada quando Tom traiu Rachel com Anna e atualmente mora com Anna na mesma casa que morava com Rachel. Ah, e essa casa é vizinha da casa de Megan e o marido, Scott (Luke Evans). Sim, é isso mesmo. A vida (e a bagunça) de Rachel está ali na mesma rua.
Rachel agora mora de favor na casa de uma amiga, mas seu coração, ou use o termo menos cafona que for, habita naquela rua. De um lado mora o seu conto de fadas com Megan e Scott, do outro, seu pesadelo com Tom e Anna. De dentro do trem ela espera ansiosa para olhar para a varanda de Megan e invejar o casal, ao passo que não consegue, também, desviar o olhar da sua ex-casa onde o ex-marido está com a amante e a filha. Enquanto Megan é a representação da perfeição, Anna é o símbolo do fracasso de Rachel enquanto esposa, mãe e mulher.
O alcoolismo de Rachel surge paralelamente ao momento em que ela não consegue engravidar de Tom. Ambos os problemas, o álcool e a não gravidez, acarretam na destruição do seu casamento, vendo o ponto final personificado em Anna, a esposa perfeita e fértil que provê tudo o que Tom mais quer: uma família. Sobrou à Rachel o caos emocional. De início “A Garota no Trem” pode soar numa briga feminina, e a princípio é isso mesmo, com Anna e Rachel, esta falhando miseravelmente, disputando emocionalmente Tom, porém o filme entrega camadas sólidas de carga emocional para motivar os personagens, principalmente Rachel, o eixo central da trama – essa interpretada com louvor por uma desglamourizada Emily Blunt, para casar com a ruína emocional de sua personagem.
Quando a trama troca o foco para Megan, vemos os corredores de sua vida e que, ao contrário do que acreditava Rachel, a grama daquela vizinha não era tão mais verde assim. Megan só perde para Rachel no quesito “desordem emocional”: a moça, que tem um caso com Dr. Kamal Abdic (Édgar Ramírez), seu psiquiatra – e o homem que Rachel vê na varanda beijando Megan –, possui uma mente quase sociopata, se cansando e mentindo constantemente para todos os homens a sua volta. O roteiro de Erin Cressida Wilson (bastante fiel à obra original) tece contextos completos para a personagem, mostrando faces diferentes daquelas que vemos pelos olhos de Rachel. Faces essas que, juntamente com a alternância de perspectiva narrativa e a desconstrução do casamento suburbano, jogaram semelhanças entre "A Garota no Trem" e a obra-prima de David Fincher, "Garota Exemplar". Megan está bem distante da loucura de Amy, protagonista do filme fincheriano, mas seus moldes físicos e psicológicos remontam à outra.
No meio de toda a confusão está Rachel, que se sente obrigada a contar para Scott que a mulher o traía – poderia aqui está a primeira peça de seu desaparecimento. Mas Rachel sabe que chegar contando algo tão determinante sem uma preparação soaria absurdo, então ela mente sobre conhecer Megan. Suas intenções são nobres e a situação é bastante delicada – ela obviamente não conhecia o casal de verdade, todavia explicar que criava histórias sobre os dois através da janela de um trem até que um dia viu o caso da mulher seria, no mínimo, levantador de dúvidas. O passatempo tolo criado ali, e que poderia mudar o curso de todo o mistério, era elemento bastante controverso – e, ao mesmo tempo, um pontapé criativíssimo, prendendo o espectador de forma automática à trama.
Juntamente com tudo isso, Rachel foi, bêbada, até a rua confrontar Anna na mesma noite que Megan sumiu. No entanto, algo acontece e Rachel acorda coberta de sangue sem lembrar o que se passou, gerando dúvida ao espectador: teria Rachel matado Megan? Ou seria o marido, o principal suspeito? Afinal, Megan está mesmo morta? Claro, tais questões são mais anzóis para fisgar o público, mas a força motriz de “A Garota no Trem” não reside no desenrolar do mistério “o que aconteceu com Megan?”.
O longa é, acima de tudo, um retrato sobre a difícil tarefa de ser mulher. A vida daquelas três está (ou será) marcada pela misoginia, e não apenas violência física, mas emocional e psicológica. Os estereótipos das três apenas refletem vidas de mulheres que encontramos em todos os lugares, e como essas vidas são tão mais difíceis pelo simples fato de serem vidas femininas. O filme recorre à uma estratégia visual simples, porém brilhante, para unir as três personagens: colocar Rachel diante da "Untermyer Fountain", uma fonte em Nova Iorque com três mulheres de mãos dadas em círculo. Assim como "O Homem Duplicado" se utiliza da estátua real "Maman" para unir o universo ficcional do real e, assim, gerar carga emocional, o quadro com a protagonista e a estátua é comprovação imagética dessa união, com a estátua deixando de ser mero objeto para carregar uma ideologia.
Além disso, outro traço de feminilidade do filme é como a maternidade vira tema central na vida das três: Rachel, a mulher infértil; Anna, a mãe presente e Megan, a mulher que não quer ser mãe. E é o confronto, benigno ou não, de todas com o ato de ser mãe que acaba gerando os eventos de suas vidas. O próprio papel exercido pelas três diante da maternidade as qualifica socialmente: Rachel é a derrotada, Anna a exemplar e Megan a fria. Mães pelas ruas, pela academia e por onde Megan anda a olham como um monstro por ela renegar o ato que, aos olhos dessas “fábricas de bebês”, é obrigação de toda mulher. Ela é ainda pior que Rachel – esta pelo menos quis ser mãe, apesar de falhar. Anna é a única a fazer parte do mundinho perfeito da mulher de classe média.
Todas essas discussões relevantes só solidificam “A Garota no Trem” como um filme que vai além do thriller e do melodrama. O mistério que conduz a trama é mais que eficaz e se desenrola de maneira certeira, revelando camada por camada de uma história que faria Alfred Hitchcock perder a cabeça, abrindo mão do óbvio e batido macete do vilão contar todos os seus crimes, ao invés de, narrativamente, exibir ao expectador – “Millennium: Os Homens que não Amavam as Mulheres”, por exemplo, sofre desse mal. É certo que os comentários depreciativos sobre o longa ser “pronto para o Supercine” não estarem lá muito equivocados – aqui há o pecado da americanização e embranquecimento de alguns detalhes, como o filme se passar nos Estados Unidos ao invés da Inglaterra como no livro e o fato do Dr. Kamal Abdic deixar de ser o descendente de indiano da obra original para o bom e velho americano caucasiano –, porém, a união de tantos elementos corretos orquestram um ótimo e reflexivo filme sobre dores femininas, tendo um delicioso mistério como palco principal para jamais esquecer do puro entretenimento.