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Se existia alguma dúvida sobre o Grammy repetir a mesma postura dos anos anteriores em sua última edição, esnobando Beyoncé e as indicações do disco “Lemonade”, ela acabou assim que a cantora subiu ao palco para receber o troféu por Melhor Álbum Urban Contemporâneo.
Horas antes do evento começar, publicamos o editorial “Os Grammys de Beyoncé dizem muito sobre o problema racial da premiação”, no qual ressaltamos que, apesar de ser um dos nomes mais premiados do show, a cantora nunca é devidamente reconhecida quando compete com artistas brancos e, de todos os prêmios conquistados até aqui, apenas um esteve entre os mais disputados, com os outros sendo distribuídos entre as ditas categorias negras – a tal da música urban. E a história se repetiu.
Das nove indicações ao Grammy de 2017, Beyoncé ganhou dois prêmios: Melhor Videoclipe para “Formation” e Melhor Álbum Urban Contemporâneo por “Lemonade”. Tendo perdido Melhor Filme Musical para um documentário dos Beatles e, no que soou como a perda mais significativa, Álbum do Ano para Adele.
O momento em que a cantora recebeu o prêmio de Melhor Álbum Urban Contemporâneo antecipou a nossa decepção, uma vez que, ao contrário das edições anteriores, o anúncio da categoria foi televisionado, seguido do discurso de uma Beyoncé que parecia ciente sobre o que estava por vir.
“Todos nós experimentamos dor e perda”, disse a cantora. “E muitas vezes não somos ouvidos. Minha intenção com esse filme e álbum foi criar uma obra que desse voz às nossas dores, nossa luta, nossa escuridão e nossa história. Confrontar problemas que nos deixam desconfortáveis”, continuou.
Pra mim, é importante mostrar aos meus filhos imagens que reflitam sua beleza, então eles poderão crescer num mundo em que olharão no espelho, primeiramente através de sua própria família – bem como nos noticiários, Super Bowl, Olimpíadas, Casa Branca e no Grammy – e verão a si mesmos, sem duvidarem de que são lindos, inteligentes e capazes. Isso é algo que eu desejo para todas as crianças de todas as raças. E eu sinto que é vital que aprendamos com o passado e reconheçamos nossa tendência de repetir os mesmos erros.
Para contextualizar o momento atual e ilustrar que essa discussão é mais ampla que qualquer comparação entre os trabalhos de Beyoncé e Adele – bem como quando conflitos semelhantes aconteceram com Beck e Taylor Swift – é importante ressaltarmos que estamos falando de uma premiação que, ao longo dessa década, não premiou nenhum artista negro na categoria de Álbum do Ano, e toda a história se torna ainda mais problemática se fizermos um recorte de gênero, visto que a última mulher negra reconhecida nesta categoria foi a cantora Lauryn Hill, na edição de 1999.
Se tratando de Beyoncé, também assistimos ao modo cruel com que a Academia parece relembrá-la, apesar de seus privilégios enquanto rica e americana, da sua posição como uma artista negra, esnobando seu trabalho na mesma categoria em detrimento de um artista branco pela terceira vez, ainda que seu álbum tenha sido um dos mais relevantes, impactantes e aclamados do último ano.
Favorita da noite, a cantora Adele fez questão de reconhecer a grandiosidade de “Lemonade” em seu discurso de agradecimento, afirmando:
Eu não posso aceitar esse prêmio. Eu sou muito humilde e estou realmente grata, mas a artista da minha vida é Beyoncé. E esse álbum pra mim, ‘Lemonade’, é simplesmente tão monumental. Beyoncé, é tão monumental. E tão bem pensado, tão lindo e sincero, e todos nós pudemos ver um outro lado de você, que nem sempre nos deixa ver. Apreciamos isso. Todos nós, artistas, te adoramos. Você é a nossa luz.
Com a cantora aos prantos na plateia, Adele prosseguiu: “A forma como você faz eu e meus amigos nos sentirmos, a forma que você faz meus amigos negros se sentirem, é empoderadora. E você os faz se levantarem por eles mesmos. Eu te amo. Eu sempre te amei e continuarei amando.”
Após o discurso, a britânica ainda quebrou o troféu mais importante da noite, dizendo que metade seria de Beyoncé, e numa conversa com a imprensa mais tarde, questionou: “O que ela ainda precisa fazer para ganhar esse prêmio?”, e a resposta mais óbvia talvez seja “ser branca”.
Definitivamente, no álbum “Lemonade”, Beyoncé fez mais que um disco urbano. Indo do country ao rock, a cantora reuniu um verdadeiro time que permitiu tamanha diversidade dentro do disco e, mesmo com tanta variedade sonora, entregou um álbum coeso, completo e, inquestionavelmente, um dos melhores trabalhos de 2016.
Durante um discurso de agradecimento no Emmy Awards, a atriz Viola Davis afirmou que a única diferença entre as artistas brancas e negras são as oportunidades, e, se pudéssemos acrescentar algo, também falaríamos sobre a cobrança exacerbadamente desproporcional ao que esperam e se mostram satisfeitos quanto aos trabalhos de artistas brancos.
Enquanto negra, sempre exigirão que Beyoncé seja três ou quatro vezes maior que artistas brancas caso queira algum reconhecimento e, ainda que esse momento nunca chegue, esperarão que ela, outros artistas negros e seus respectivos públicos se conformem com o que estiverem dispostos a nos oferecer. É sempre a mesma merda do copo meio vazio e ai de quem reclamar. É a letra de “Backlash Blues”, da Nina Simone, se provando cada vez mais atual, real, violenta e cruel.
Na edição desse ano, o Grammy lidou com o boicote de artistas como Frank Ocean e Kanye West, que não concordam com as últimas escolhas e posicionamentos da premiação, e após tamanho desrespeito com o trabalho de Beyoncé, bastante simbólico e agressivo para toda a classe artística negra, nosso desejo é que outros artistas despertem o mesmo descontentamento com esse e outros eventos que seguem os usando para entretenimento, enquanto se negam a reconhecê-los pelos grandes trabalhos que fazem.
Se há algum tempo lidamos com o #OscarSoWhite, já passou da hora de também confrontarmos o Grammy “too white to be Yoncé”.