Indicado ao Oscar de:
- Melhor Filme
- Melhor Ator (Denzel Washington)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Viola Davis) *favorito*
- Melhor Roteiro Adaptado
Atenção: a crítica contém spoilers.
A arte que mais se aproxima do cinema é o teatro, com a diferença mais elementar no fato de que o cinema é gravado, ao contrário do teatro, que é ao vivo. Antes de cunhada a linguagem cinematográfica, o cinema era quase uma peça filmada nos primórdios. Com a evolução da arte, peças foram adaptadas à telona sem perder algumas de suas características, fundidas com o formato de cinema, como, por exemplo, “Disque M Para Matar”, “Conduzindo Miss Daisy”, “Álbum de Família”, “Deus da Carnificina” e “Um Limite Entre Nós”, indicado à 89ª edição do Oscar.
Imagem: Divulgação/Internet
Originalmente, “Fences” é uma peça de August Wilson escrita em 1983. Universalmente aclamada, o trabalho levou diversos prêmios no lançamento, como o Tony (o Oscar do teatro) de “Melhor Peça” e o Pulitzer de “Melhor Drama”. Quando relançada em 2010, voltou ao Tony e, entre os prêmios, levou “Melhor Ator” para Denzel Washington e “Melhor Atriz” para Viola Davis.
Sim, Denzel e Viola estrelam no filme os mesmos premiados papéis da peça – e com grandes chances de também arrematarem o Oscar. Eles são Troy e Rose, um casal negro dos EUA nos anos 50. Ela, dona de casa, cuida do filho Cory (Jovan Adepo), enquanto o marido trabalha como gari. O grande sonho deste era ser jogador de baseball, frustrado por nunca ter conseguido chegar à grande liga do esporte – uns dizem que pela idade avançada, mas ele insiste que foi pela sua pele. O sonho de Cory é seguir os passos do pai e tentar ser um grande jogador, porém destruído enquanto o pai se nega a deixar o filho trilhar por esse rumo.
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Como você já deve ter notado, “Um Limite Entre Nós” é um longa bastante cru e “gente como a gente”. Na tela temos dramas humanos simples, contados de forma bastante teatral por Denzel, que também dirige a obra. E logo de cara já sentimos o impacto desse formato: durante quase toda a duração do filme não há mais de 20 segundos sem falas. São diálogos por cima de diálogos, grandes monólogos e um apreço pela atuação sem precedentes, o que pode afastar o grande público numa primeira tentativa – principalmente quando discutidos assuntos tão usuais.
Mas não se engane, há bastante poder nesses diálogos. Sempre levando em consideração o contexto – América, anos 50 –, a realidade da população negra é escancarada quando entramos na casa dos protagonistas. Troy, renegado à posição de gari, deseja ser promovido para motorista do caminhão de lixo, para, dia após dia, recolher os restos das pessoas brancas. Há em suas falas grande rancor no que diz respeito o aparato racial da sociedade. Num pequeno, mas emblemático momento, ele conta uma história de como enfrentou a morte. Ao descrever a figura, ele fala que ela era uma figura branca, o que vai contra o imaginário popular da morte negra e sombria. Pode passar despercebido, mas quando notamos que para ele a morte é branca, há um discurso incisivo sobre raças.
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O pilar central do filme é, claramente, Troy – ainda em mente o patriarcado fortíssimo dos anos 50. Todos os personagens gravitam ao redor dele, e são, de uma forma ou de outra, “controlados”. A cada cena, a cada novo personagem secundário introduzido, vamos desvendando aquele ser complexo, com falhas e qualidades, o que o deixa ainda mais humano. Todavia é difícil não sentir antipatia (quando não raiva) pelo personagem, principalmente na sua relação com o filho.
Naquela realidade tão patriarcal, Cory não possui voz, com Troy ditando tudo o que o garoto deve ou não fazer. Há uma pesada mão de ferro sobre o garoto, que sofre pelas cortadas do pai. É como se o filho unicamente existisse pra fazer tudo o que o pai manda, o que tende a plateia para o lado do Cory. Troy não faz por mal, ele está apenas reproduzindo a forma cruel que foi criado – só reforçada quando ouvimos sobre sua infância –, e, do seu ponto de vista, o que ele faz é para o bem de Cory. O pai não quer que o filho seja humilhado como ele no baseball. “Eu jogava muito melhor que muito dos brancos, mas ainda assim não consegui chegar lá”.
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Tá, mas cadê a Viola no meio disso tudo? Mesmo ela sendo a atriz principal do filme, sua posição dentro do todo é bem menor que a de Denzel, o que justifica sua indicação a “Atriz Coadjuvante” – o que, claro, é também uma artimanha para facilitar seu Oscar. Sua personagem só consegue espaço para brilhar quando descobre que Troy está tendo um caso e a amante espera um filho. É o momento para Rose explodir e rasgar emoções na tela.
Muito mais que uma briga de marido e mulher, Rose desempenha um papel de discussões femininas dentro daquela opressora sociedade. Ela fala como abdicou seus sonhos para viver pela família enquanto Troy a traía para fugir das duras responsabilidades da casa. O homem sente-se no direito de tal ato em prol de sua liberdade, afinal, é ele quem traz o sustento da casa. Todos devem apenas obedecer e agradecer. Felizmente, Rose não é passiva dessa forma e consegue colocar ordem na complicada situação, que piora quando a mãe morre durante o parto e ela tem que ser a mãe do filho da amante. “Essa criança vai ter uma mãe, mas você não tem mais uma mulher”.
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O mais curioso de tudo é a metáfora criada pelo título do filme (“Cercas”, no original). Troy passa o filme inteiro tentando construir uma cerca ao redor de sua casa, porém, sem notar, é dentro dela que as cercas vão crescendo. Pelos seus atos, ele mais afasta do que aproxima sua família, mesmo na tentativa de manter todo mundo do lado de dentro da cerca. Troy não é um personagem ruim ou um vilão – como a emocionalmente forçada cena final comprova –, porém sua visão do que é certo para a família – e para ele mesmo – gera a desunião.
"Um Limite Entre Nós" é um filme de atuações e diálogos, com um conjunto que preza pela observação daqueles espelhos de vida, repleto de análises sobre o conceito de família, autoridade e cumplicidade entregues com bastante crueza e honestidade. É um longa complexo e denso, atuado com maestria por Viola e Denzel – este ocupa quase toda a tela. Muito mais do que explorar um difícil arranjo familiar, Denzel consegue extrair brilho dos renegados pela sociedade ao entrar pela porta da frente no mundo onde a população negra era designada, revelando suas batalhas, seus dramas e suas dores. A obra se torna um quadro representativo importante a partir do quintal de uma família negra nos anos 50 quando vemos que, 70 anos depois, muitas daquelas situações não mudaram. Assim, a importância do filme grita.
"Às vezes o toque dele me queimava. Às vezes o abraço dele me cortava".