Uma das coisas que mais amo em Cinema é a forma como podemos colocar na tela diversos questionamentos das nossas próprias vidas. Não apenas com aquele belo dramão real, mas principalmente quando o cineasta se utiliza das características da Sétima Arte para criar algo único. Existe um macete narrativo chamado “expansão dialética” que provavelmente é meu favorito.
A expansão basicamente é se apropriar de determinado conceito ou ideia e exagerá-lo ao máximo para que possamos entender nossas simples vidas no meio desse conceito. Um exemplo prático: em “O Lagosta” (2015), Giorgos Lanthimos nos leva a um mundo onde ser solteiro é proibido, com os desafortunados no amor sendo transformados em animais. A premissa é absurda, sim, mas o filme nada mais é que uma gigante alegoria de como somos desesperados para encontrar nossa cara metade, e como criamos relacionamentos à força para não ficarmos sozinhos.
Mesmo tão distante da nossa realidade, filmes como “O Lagosta” acabam sendo espelhos exagerados nas nossas vidas, o que nos bota para pensar. E é exatamente o mesmo que o espanhol “Peles” nos entrega. Dirigido por Eduardo Casanova, em seu primeiro longa-metragem, “Peles” é derivado do curta “Eat My Shit” (você pode assisti-lo aqui) e expande o universo criado pelo diretor. Aqui seguimos vários personagens bastante peculiares: eles possuem, em diversos níveis, deformidades físicas. A obra segue a vida desses personagens e como eles lidam com as próprias diferenças.
Imagem: Divulgação/Internet
O ponto central que o filme se utiliza da expansão dialética é quando apresenta as deformidades de seus personagens, que vão desde as mais usuais, como Vanessa (Ana María Ayala), a mulher anã, até as mais radicais, como Samantha (Ana Polvorosa), que possui o ânus no lugar da boca – e vice-versa. Sim.
O curta – estrelado por Samantha e com uma cena praticamente igual ao do longa –, mesmo que bastante criativo, esbarra num problema óbvio: não há tempo para desenvolvimento de personagens. O fato da protagonista ter um ânus no meio da cara está ali para chocar, e não consegue fazer nada além disso. Quando temos um filme que choca só por chocar, todo o impacto se torna vazio, gratuito. É querer só chamar atenção – o que nem é abominável, só cinematograficamente fraco. Com o longa, Casanova, que também roteiriza a obra, consegue dar profundidade à anormalidade da garota – e de todos os outros personagens. O choque evolui de algo banal para provocador, colocando o dedo nas nossas feridas.
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Superado esse problema, surge outro: como não deixar que o filme se torne puro fetichismo para a plateia “normal”, ansiosa por ver pessoas deformadas como criaturas de circo? É impossível, diante desse questionamento, não nos relembrar de “Monstros” (1932), clássico de Tod Browning, que segue uma trupe de aberrações circenses. Não dá para ter certeza da real intenção de Browning – oportunismo em explorar aquelas pessoas ou o puro drama, interessado em gerar reflexão. Mesmo em sua maioria sendo trabalho de maquiagem, “Peles” traz atores com deficiência (Ana María Ayala, por exemplo), porém, assim como em “Monstros”, há uma mensagem, o que supera a exposição de seus personagens. Assim como o choque, nada aqui é gratuito.
Antes mesmo de sermos apresentados pelas deformidades, somos bofeteados pela composição visual da película. Para criar a áurea de universo aquém do nosso, o filme é basicamente pintado pelas cores rosa e roxo. O abuso histriônico dessa paleta é derramado para quase todos os elementos em cena, desde paredes, móveis e figurinos. A fotografia, bastante perfeccionista, é a cereja do bolo desse material estético violentamente impecável de “Peles”, colaborando para termos certeza de que, mesmo amigável aos olhos, aquele mundo não é o nosso. Há algo de podre ali por trás de tanta cor.
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A cena de abertura do longa mostra um homem conversando com uma idosa. Esta, quase inteiramente nua, vende uma garotinha que não possui olhos ao homem. 17 anos depois, a garota, Laura (Macarena Gómez), é uma prostituta que atrai os clientes com seus olhos falsos: dois grandes diamantes rosas. O tom bizarro solidifica-se quando vemos Laura passando por tráfico humano, pedofilia até cair na prostituição. A personagem é a ponta do iceberg: todos os deficientes são, de alguma forma, abusados por pessoas “normais”. Eles são estuprados, espancados, explorados, ridicularizados e fetichizados, premissa que também vemos em “Monstros”: no fim das contas, são os “normais” as aberrações.
Debaixo de quilos de maquiagens e muita polêmica, “Peles” é, incrivelmente, um filme bastante humano. Seguimos a intimidade daquelas pessoas tão diferentes e enfim percebemos que eles são iguais a nós: só buscam ser aceitos e respeitados pelo o que são. Todavia, na selva que é nossa sociedade, o ser humano vira uma fábrica de opressão, sem dó de excluir quem saia do padrão imposto – e alguns dos personagens jamais se adequarão a esse padrão, por mais mudanças que sofram. É desumana a cena onde a garota com ânus no rosto folheia um caderno com fotos suas e recortes de bocas. Ela retira um dos recortes e, em lágrimas, coloca no próprio rosto. Para seu pai a solução é óbvia: comprar uma máscara de unicórnio que cubra o rosto da garota que tem todas as selfies excluídas pelo Instagram por conter nudez.
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Mesmo sendo um drama bastante sombrio, é impossível não cair nas graças no humor negro do roteiro. Há momentos constrangedoramente hilários – a última cena é para torcer qualquer um na cadeira – que ajudam tanto a criar o clima de estranheza do universo gerado pela fita quanto nos fazer pensar por que achamos aquilo engraçado ou no mínimo cômico. Quando nos pegamos, estamos nos desconstruindo e questionando a nós mesmos, efeito causado pelo recente, e tão estranho quanto, "Um Cadáver Para Sobreviver" (2016), que não abre mal de piadas escatológicas para, no fundo, questionar nossas relações de forma filosófica. É preciso saber enxergar as falsas gratuidades como as discussões que elas querem ser.
“Peles” não é um filme comercial e não será largamente aceito pelo público, mas é um estudo brilhante dos desejos mais profundos do homem, enlatados em 50 tons de rosa. Ao mesmo tempo em que nos chocamos com as imagens na tela, sejam os corpos humanos desfigurados dos deficientes ou as almas desfiguradas dos ditos “normais”, é impossível tirar os olhos do que vemos. Sorrisos presos na garganta e revolta por fazer parte de uma raça tão cruel são temperos simbióticos de uma sessão desconfortável, provocadora e sem pudores, no entanto, inesquecível, tanto pela mensagem poderosa quanto pela realização cinematográfica de primeira linha. Todas as peles humanas só desejam, por fim, se amar e ser amadas, e, às vezes, o ato de se amar é o mais difícil de todos.
“Nós mudamos nossas peles. Peles se operam, se transformam. Aparência física é nada”.