Atenção: a crítica contém spoilers.
Filmes de terror e suspense sempre geraram curiosidade imediata do público – e quando falamos “sempre” é sempre mesmo. Um dos primeiros filmes feitos, na pré-história da Sétima Arte, foi, para o público, um filme de terror: a chegada do trem dos Irmãos Lumière, registro simples de um trem chegando a uma estação parisiense. Porém, para os espectadores virgens daquele tipo de exposição, o trem da película estava realmente vindo em direção a eles, que saíram desesperados da sala de exibição. Nascia ali o apreço pelo medo cinematográfico.
Filmes de terror e suspense sempre geraram curiosidade imediata do público – e quando falamos “sempre” é sempre mesmo. Um dos primeiros filmes feitos, na pré-história da Sétima Arte, foi, para o público, um filme de terror: a chegada do trem dos Irmãos Lumière, registro simples de um trem chegando a uma estação parisiense. Porém, para os espectadores virgens daquele tipo de exposição, o trem da película estava realmente vindo em direção a eles, que saíram desesperados da sala de exibição. Nascia ali o apreço pelo medo cinematográfico.
George Méliès brincou de forma ainda mais forte com suas ilusões e jogos visuais que atormentavam o imaturo espectador no início do século XX, criando viagens e monstros que apavoravam. E desde então, o gênero “terror” (e suas subdivisões) passou a levar multidões para os cinemas. Vimos esse efeito de forma explícita quando “O Exorcista” estreou em 1973, com pessoas formando filas que davam a volta no quarteirão só para morrerem de medo na sala escura. E esse é só um exemplo. “Psicose”, “O Bebê de Rosemary”, “O Iluminado”, “O Massacre da Serra Elétrica”, “Tubarão”, etc etc etc.
Todos esses filmes ganharam notoriedade a partir do boca a boca – além das promoções de marketing, claro. Mas o que todos eles não conheceram foi a internet. A rede mundial de computadores transformou esse efeito de gerar turbas para um filme ainda mais poderoso, criando verdadeiras viralizações de conteúdo, e os filmes de terror entraram na onda: quem não se lembra de “Invocação do Mal”, o longa que badalou em 2013, passar dias a fio como o mais comentado nos trending topics do Twitter? Ou a brincadeira da boneca do Silvio Santos, que era uma promoção do filme “Annabelle”? Ou então o desafio “Charlie Charlie” que invadiu a internet em 2015, quando na verdade era uma jogada de marketing do filme “A Forca”?
Tais meios já se mostraram altamente eficientes – todos os filmes citados acima foram sucesso de bilheteria. Um dos longas que se aproveitaram da rede mundial de computadores foi terror austríaco "Boa Noite Mamãe". Dirigido por Severin Fiala e Veronika Franz, seu trailer se espalhou por todos os cantos da internet em 2015 – foram milhões de visualizações em poucos dias. Do que se trata afinal?
“Boa Noite Mamãe” conta a história de dois irmãos gêmeos, Lukas e Elias. Com nove anos, as crianças brincam felizes na sua casa de campo, correm no milharal do quintal e se jogam no lago ao lado da casa. Ao mesmo tempo, esperam o retorno da mãe, ausente para fazer cirurgias plásticas faciais. Quando ela finalmente volta, os garotos a acham estranha. Ela não é mais a mesma, e não estamos falando das ataduras e faixas que cobrem seu rosto. Os dois então começam uma caça para desvendar o mistério que ali se instalou.
O trailer a sinopse imediatamente nos dá de bandeja o mistério do filme: aquela mulher é realmente a mãe deles? Mas em "Boa Noite Mamãe" as coisas não são usuais. Agora atenção para um aviso: esta crítica foi cozinhada tentando ao máximo retirar todos os spoilers, porém, tecer um texto que abrange com dignidade o filme é tecer um texto com detalhes importantes da trama, ou seja, caso você não goste de ler as surpresas da história é melhor parar por aqui. E mais uma dica: leia nada sobre a obra além do que está escrito acima. Assista-o na cara e na coragem, a experiência será bem melhor. Podemos continuar?
“Boa Noite Mamãe” foge dos macetes usuais que estamos acostumados pelo mercado norte-americano. Ao contrário do ritmo alucinante que joga sustos a todo o momento na tela, o austríaco é um filme (bem) lento, que se desenvolve sem a menor pressa para nos colocar dentro daquela situação, num verdadeiro exercício de gênero. Temos takes generosos da casa da família para nos familiarizarmos com o espaço físico do ambiente, e aqui já temos um trabalho afiado de direção de arte: na casa, toda em tons frios como branco, cinza e azul, tem quadros de figuras femininas desfocadas, numa representação da mãe pelos olhos dos filhos: alguém estranho, que não tem forma concreta, hostil.
E é na figura da mãe que reside a melhor construção do filme: sua composição visual é fenomenal. Logo na primeira cena, quando ela abre e fecha as cortinas do quarto e se vira de forma severa para os filhos, já somos abatidos pelo temor dos dois, que se assustam ao olhar aquela criatura medonha com o rosto coberto, trabalho de maquiagem simples e certeiro. E seu rosto pós-cirurgia será abusado durante a fita, em planos abertos e fechados que nos mostram diversas facetas daquele ser misterioso e temível.
Então entramos nas dualidades do filme. Como as crianças são o foco da história, vemos tudo evidenciando o que eles enxergam, com poucos momentos onde os dois estão fora do quadro. Isso já nos coloca numa posição desprivilegiada sobre o domínio da fita, já que temos apenas um lado do prisma, com os diretores brincando perversamente com o espectador ao introduzir momentos oportunos da mãe, como na cena onde um dos irmãos sobe no quarto e ela está dormindo, mas logo quando ele sai a câmera continua nela, que na verdade fingia dormir. Tudo conspira contra a figura materna.
Mas a “verdade” por trás do filme é revelada logo no início, nós que pegamos as dicas de forma errada. Numa das primeiras cenas, onde os irmãos estão lanchando, a mãe só coloca suco para um deles, ignorando o outro completamente. O irmão fala “O Lukas também quer suco”, e a mãe responde “Se ele quiser, ele que peça”. Como já estamos previamente com o pé atrás, pensamos que a mãe realmente está estranha, tornando-se uma pessoa fria ao ignorar completamente a criança ali sentada, numa justificativa de “educação”.
Outro momento chave é a brincadeira das pistas. Os três estão na sala brincando e a mãe tem que adivinhar o que está colado na sua testa através de perguntas – na sua testa tem escrito “mamãe”. Nós sabemos que a resposta é ela mesma, mas através das perguntas vemos que, ao que parece, ela não tem consciência de si própria – reforçando a ideia de que ela não é de fato a mãe, como quando uma das crianças fala que ela tem dois filhos, mas ainda assim ela não sabe de quem se trata.
A própria misen-en-scène do filme entrega mais. Numa cena, dois agentes da Cruz-Vermelha chegam a casa pedindo doações. O enquadramento evidencia os dois agentes e Elias, que estão sentamos na mesa, com Lukas sentado ao fundo, quase sem foco. Os agentes interagem com Elias a todo o momento, mas Lukas permanece aquém do diálogo, interrompendo – sem os agentes notarem – em determinado momento. Apenas o uso bem trabalhado de composição de plano ajuda pesadamente na construção narrativa do filme.
Certo, aqui vai “o mistério” do filme: Lukas está morto. Apenas o irmão Elias o vê, tanto que em nenhuma cena outro personagem interage com ele. A jogada é ainda mais acobertada pelo fato de os irmãos serem gêmeos e pelo comportamento da mãe, que tiram nosso foco da real situação. Sim, essa reviravolta não é nova, já existem filmes com personagens mortos interagindo com vivos, como “O Mistério das Duas Irmãs” e “O Sexto Sentido”, mas, ao contrário destes, “Boa Noite Mamãe” não precisa necessariamente deste mistério para ter força, tanto que os diretores passam o filme em sua totalidade jogando pistas e mais pistas descaradas. A linha entre o que é “previsível” e “proposital” é comprida, e há vários outros temas que o sustentam.
“Boa Noite Mamãe” é um filme sobre reações. O que antes era uma família feliz e harmônica foi abalada permanentemente por algumas tragédias, desde o divórcio da mãe até o acidente que matou Lukas. Tais acontecimentos são explorados de forma bem limitada pelo filme, deixando o espectador imerso em questionamentos sobre o que aconteceu ali. Quando os pais se divorciaram? Como foi esse divórcio? E o acidente? Por que a mãe parece se culpar por ele? São dúvidas que a fita faz questão de não resolver, deixando que o filme não termine no escurecer do ecrã, e sim cresça e se expanda nas horas (ou dias) que você passará pensando sobre. A própria cirurgia facial da mãe é uma metáfora para os acontecimentos passados, como se ela, depois dos cortes emocionais, tivesse saído outra pessoa, física e psicologicamente. As ataduras em seu rosto são cicatrizes das perdas.
Mas claro, como um bom filme de horror temos cenas bem perversas. Os irmãos começam jogos físicos com a mãe, que vão desde amarrá-la na cama até cenas mais fortes como a da super cola, que desencadeia num dos momentos mais tensos do filme. E, graças ao lento desenvolvimento, todo o clímax é milimetricamente justificado, com ações e reações corretas que nos faz mudar de lado diversas vezes, hora apoiando a dúvida dos irmãos, hora sentindo pena pelo sofrimento da mãe. Ao que parece, a culpa que a mãe sente pela morte do Lukas é a fonte do ódio que ele sente por ela, angariado pelas ações de Elias, o único que pode fisicamente fazer algo ali. Se ela teve culpa pela morte do garoto ou se ele tem alguma mágoa não revolvida com ela, não sabemos. O que é certo é que Lukas se transforma numa entidade demoníaca que assombra a mãe por meio do irmão.
O embate “mãe vs. filho” é algo universalmente poderoso, afinal, é a quebra da maior ligação natural que existe. O Complexo de Édipo ao contrário dos irmãos é explorado de forma genial pelos diretores: os filhos aqui não desejam a mãe, eles punem a figura materna de todas as formas, o que os colocam num posto que foge também da imagem infantil. Suas ações os “adultizam”, mesmo com o ar pueril ainda existir entre os dois. Eles brincam, eles dormem, eles comem, eles vivem como crianças, mas na hora do enfrentamento contra a mãe, os papéis mudam.
O longa não conseguiria o mesmo efeito sem as atuações brilhantes dos três protagonistas. Todos possuem química em tela, tanto nos momentos afáveis quanto nas horas cruéis. Seja pelo roteiro mirabolante, pela condução seca e perversa ou pela fotografia belíssima, “Boa Noite Mamãe” é o filme de terror que nós estávamos precisando - e não por sustos ou criaturas sobrenaturais que tanto estamos acostumados, mas por criar um clima austero e perigoso que exala da tela e intoxica. Cinema no seu mais alto esplendor.