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Crítica: "Relatos Selvagens" é o guia prático de sobrevivência na selva de pedra que é a modernidade

Em seis contos geniais, o argentino indicado ao Oscar retrata como nós vivemos à beira do caos e como podemos perder a cabeça ao virar uma esquina
O cinema argentino é a galinha dos ovos de ouro da América Latina: o país é o único da região a conseguir ganhar algum Oscar – e não foi apenas um, mas dois: “A História Oficial” em 1986 e “O Segredo dos Seus Olhos” em 2010 levaram o careca dourado de “Melhor Filme Estrangeiro”. Há outros expoentes latinos na premiação, como o mexicano Alejandro González Iñárritu ganhando “Melhor Diretor” em 2015 e 2016 por “Birdman: Ou a Inesperada Virtude da Ignorância” e “O Regresso”, respectivamente, ou Fernanda Montengro concorrendo a “Melhor Atriz” em 1999, se tornando a única atriz brasileira na história a concorrer ao prêmio, porém o único país da América Latina com Oscar dado a um filme que o representa é a Argentina.

Até nas nomeações nossos hermanos levam a melhor: sete deles contra quatro nossas em “Melhor Filme Estrangeiro”. Mesmo com filmes fortes e aclamados pela crítica, como os nacionais “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (na edição de 2015) e “O Silêncio Ao Redor” (em 2014), a última vez que chegamos perto do prêmio foi em 2008 quando “O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias” ficou entre os semifinalistas – mas indicação mesmo não vemos desde 1999, quando a obra-prima “Central do Brasil” perdeu para “A Vida é Bela” – gosto amargo até hoje. Agora que estamos voltando aos eixos e indicando filmes com chances reais na competição, ou alguém já esqueceu que “Dois Filhos de Francisco” e “Lula, o Filho do Brasil” foram escolhidos como nossos representantes em 2006 e 2011? Esquecer seria uma boa ideia.

E em 2015, a Argentina foi indicada novamente, com “Relatos Selvagens”. O filme, um dos favoritos ao prêmio desde a estreia no Festival de Cannes – que foi ovacionado de pé por 10 minutos, mostrou-se aposta certeira ao ser indicado a “Filme Estrangeiro”, mas injustamente perdeu para o plástico polonês “Ida”. Saindo da hegemonia do Oscar, o filme levou mais de 40 prêmios ao redor do mundo, além do principal: aclamação crítica e do público.


“Relatos Selvagens” é uma antologia, ou seja, trata-se de um filme montado em contos: são seis relatos (realmente selvagens) que funcionam como curtas independentes, unidos unicamente pelo conceito de violência e vingança que o filme propõe dissecar. Cada história mostra um lado da instável natureza humana e como lidamos com situações corriqueiras na base da pressão e do estresse.

O primeiro segmento se chama “Pasternak” e conta a história de um voo aparentemente normal que aos poucos vai se revelando uma surpresa desagradável para seus tripulantes. Num estilo bem Pedro Almodóvar, um dos maiores cineastas espanhóis (e co-produtor de “Relatos Selvagens”), o curta é divertidíssimo e rende uma crítica bem forte: sobre as decepções que a vida nos traz, acumulando-se e fazendo com que nossas frustrações nos joguem num estado psicótico de vingança contra o mundo - aqui, de forma quase literal.

O humor negro do primeiro curta é deixado de lado no próximo, “Os Ratos”. Ele conta a história de uma garçonete (Julieta Zylberberg) que atende o homem que arruinou sua vida – sem ele saber quem ela é. Mesmo com a fome de vingança exalando dos seus poros, a moça consegue manter sua civilidade e decide não atentar contra o agiota, porém sua chefe (Rita Cortese) não é tão racional assim, resolvendo por um fim na vida do cara.

A história por si só garante um suspense de como a trama se desenrolará, nos colocando na velha, e sempre certeira, situação: o que nós faríamos ali? A garçonete e sua chefe são o contraponto social: a moça, mesmo estando inserida naquela realidade precária, ainda preza por seus valores. A chefe não, aceita a condição e dança conforme a música, entoando diálogos memoráveis, como “Eu me sentiria mais livre na cadeia. Aqui fora é uma merda”, ou “Como não acreditar que ele concorre a prefeito? São os filhos da p*ta que governam o mundo”. Esta se tornou uma pessoa amargurada – e até cruel – pelo meio em que vive, tão cruel quanto, numa exposição de que sim, o meio afeta o indivíduo de formas bem profundas.


Outro ponto interessante do segmento é como a fotografia e direção de arte são elementos primordiais na composição da narrativa e do clima da cena. Enquanto a cozinha é composta por tons frios de azul e verde, o salão vem em cores quentes como vermelho e amarelo, criando a ideia de que é na cozinha que se passa os dilemas, enquanto o salão fica para o embate e o confronto.

O terceiro (e melhor) segmento da obra se chama “O Mais Forte”. Nele, Diego (Leonardo Sbaraglia) dirige pelo deserto tranquilamente quando encontra com um carro na estrada. Este, bem velho e caindo aos pedaços, impede propositalmente a passagem de Diego, que se estressa, xinga o motorista (Walter Donado) e dá o bom dedo do meio. O jogo vira quando o lustroso carro do protagonista fura o pneu e é alcançado pelo motorista, que decide se vingar da afronta anterior.

Cenário bem corriqueiro: motorista engraçadinho bloqueia a passagem de alguém – quem nunca presenciou (ou até mesmo fez) o que Diego aprontou com o motorista? Ambos estão errados, sim, mas o ato de Diego é banal perto da fúria que ele recebe como vingança, claramente vinda de um homem desequilibrado que não é tão estranho nos dias de hoje.


A Teoria do Caos então é aplicada de forma incisiva aqui: um pequeno ato gera uma avalanche de desordem emocional que desencadeia em situações absurdas e – para nós – hilárias enquanto os homens afundam cada vez mais na barbárie. E não é curioso, para não dizer assustador, como torcemos para que a situação piore cada vez mais? Quando o motorista reaparece, desejamos uma retaliação. Depois, esperamos ansiosos pela vingança de Diego, que gera mais conflitos, nos jogando numa teia alucinante que sozinha valeria um filme inteiro.

O segmento mostra que não importa quem você seja ou de onde você venha, basta um estímulo para nos descontrolar e virarmos o mesmo animal. O motorista vinha num carro surrado, com roupas velhas e aparência maltrapilha, enquanto Diego possuía carro novo e caro, vinha com seu terno e óculos escuros confortavelmente no ar-condicionado. Moral da história? Ambos se transformaram em bestas sem razão pelo impulso da raiva.

O próximo curta se chama “Bombita” e narra o dia de Simón, um engenheiro especialista em demolições que vê sua própria vida ser demolida. Ele tem que pegar o bolo de aniversário de sua filha e chegar às 17h na festa, porém, ao estacionar na confeitaria, o carro é guinchado, fazendo com que ele perca o horário e desencadeie uma série de complicações.

Ricardo Darín, novo rei do cinema argentino, estrela o segmento. Dos últimos 14 filmes selecionados pelo país como representante ao Oscar, sete tinham Darín como protagonista. O ator há muito já comprovou ser um dos melhores da atualidade e não desaponta no curta, fazendo uma transposição perfeita entre o pacato cidadão e pai de família até o completo descontrole.


O monstro que Simón enfrenta é o mesmo que todos nós enfrentamos: o trânsito, o tempo, a burocracia, as filas, as contas; ferramentas bem eficientes para extinguir a paciência de qualquer um. As características da metrópole, que possuem regras nem sempre claras ou justas, vão derrubando o muro da civilidade do protagonista, levando a situação ao extremo, gerando um efeito curioso: as pessoas começam a apoiar Simón, mesmo estando numa posição claramente errada.

Ele se transforma no escapismo social da população, virando um anti-herói contra o sistema, e nós, espectadores, também torcemos por ele. Ele quebra as regras que todos nós temos vontade de quebrar em situações emocionalmente críticas – para nosso deleite e segurança, afinal, não somos nós infringindo a lei. Seu ato abala a tranquilidade social e gera uma turba raivosa, como se as pessoas estivessem numa panela de pressão esperando apenas um empurrão para explodir – e os respingos caem em todos os lados, principalmente na forma que a mídia aborda o caso.

Chegando na reta final vem o segmento “A Proposta”. Um adolescente rico atropela uma grávida, fugindo do local sem prestar socorro. Pelo noticiário, os pais do rapaz (Oscar Martínez e María Onetto) descobrem que a moça e o bebê foram mortos pela negligência, o que arruína a tranquilidade do palácio luxuoso da família.

O que seria algo condenável em qualquer situação, até mesmo se nós estivéssemos sabendo da notícia pelo mesmo noticiário, recebe um viés diferente ao ser abordado o que a família do culpado faz diante daquela crítica situação. A primeira coisa que a mãe fala para o advogado é “Não deixem que o prendam”. Naturalmente é a reação esperada por se tratar da mãe do rapaz, mas se o ocorrido se passasse além dos seus muros, a reação seria bem diferente.


Deixando completamente o humor negro de lado, “A Proposta” é uma crítica à burguesia e sua suprema roleta da solução de todos os problemas na base do dinheiro. Numa vil corrupção pessoal, todos os personagens entram num jogo onde suas dignidades são postas à venda em nome da segurança do garoto rico, que, mesmo não tendo feito o acidente propositalmente, é culpado da morte de duas pessoas.

Ao mesmo tempo que julgamos reputações transformadas em moeda de troca, há um questionamento interessante no curta: até onde somos capazes de ir para salvarmos nossa família? É realmente errado apostarmos tudo em nome de sua integridade? Mais uma vez temos os impulsos nervosos batendo de frente contra as leis que nós próprios criamos, afinal, acobertar um crime também é crime, mas por se tratar de uma “salvação” familiar, a ação de torna “louvável”?

E é um choque familiar o que o último (e maior) segmento do filme trata. “Até Que a Morte Nos Separe” se passa na festa de casamento de Romina (Érica Rivas) e Ariel (Diego Gentile). Toda a felicidade da festividade é obliterada quando Romina descobre, no meio da recepção, que o marido está lhe traindo. E mais: com uma das convidadas da festa.

Recheado com mais camadas de humor negro que o bolo de casamento, o curta é uma epopeia tresloucada de amor e ódio que gira em torno de Romina, que vai do melhor dia da sua vida, passando pelo pior, até que tome o controle da situação ao invés de deixar com que a situação tome controle dela. Mas sua sanidade já estará permanentemente abalada e a confusão está garantida no buffet.


Um dos maiores trunfos de “Relatos Selvagens” é, ao final, não se tornar uma colcha de retalhos com seus segmentos costurados à força uns aos outros. O filme é um todo uniforme, ligados pelo conceito primitivo da humanidade e como nossas máscaras sociais são frágeis, em curtas que são desde elementares e práticos até os mais hiperbólicos, mas absurdamente reais. Essa condução só é tão perfeita graças a Damián Szifron, diretor e roteirista do longa, que sadicamente leva a razão cada vez mais baixo. Palmas fervorosas também para a magnífica fotografia de Javier Juliá e para a trilha sonora impecável e sarcástica do duas vezes vencedor do Oscar, Gustavo Santaolalla.

“Relatos Selvagens” é uma das maiores obras-primas do cinema contemporâneo ao abordar de forma ácida, perspicaz, crítica e sempre divertida como a modernidade vem tirando a paz de todos nós. Burlando língua, país, nação, continente e qualquer fronteira imaginária ou não, o filme é clássico instantâneo que mostra de forma escancaradamente histérica como vivemos numa sociedade à beira do caos, numa era que evoca o lado mais animalesco do homem no simples ato de atravessar uma rua.

Na próxima vez que você virar a esquina, conte até 10 e respire profundamente. Vai que...

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