Cinebiografia concorrendo ao Oscar de “Melhor Filme” é nada de novo. “Selma: Uma Luta Pela Igualdade”, que conta um trecho da vida de Martin Luther King, mas precisamente a partir de 1964 quando ele ganha o Nobel da Paz, concorreu em 2013 merecidamente. Naquela América segregadora ainda com as raízes da escravidão fincadas, mesmo um século depois, negros não podem votar, direito elementar de todo e qualquer cidadão vivente numa democracia. O filme começa com uma tímida Oprah Winfrey tentando mais uma vez conseguir o título de eleitor. Obviamente ele é negado. Esse é só o estopim narrativo de uma luta muito maior.
Acompanhar este pedaço da longa trajetória de Luther King é, inevitavelmente, ver que ainda estamos na mesma trajetória, com ramificações ainda maiores. As conquistas vindouras de sua luta realmente não acabaram com o racismo, mas servem de exemplo de que não são só importantes como estritamente necessárias. Podemos, inclusive, olhar ao nosso redor no exato momento que você ler esse texto para entendermos.
Hoje vemos o nossos ilustríssimos políticos usando de todas as forças para trazer a Idade Média de volta com seus projetos contra o aborto e a adoção de crianças por casais gays, além de abrir caminho para a bancada evangélica e sua definição de família heteronormativa (Inquisição tá batendo na porta). Do que difere esse discurso absurdo do discurso proferido pelos políticos na cara de Luthe King, bravejando que "no meu governo negro não tem vez"? Nada. Olhando para trás vemos tal asneira é chocante, então há de se esperar que as abominações que saem da boca dos atuaus excelentíssimos soem como absurdo algum dia. Só que esse dia deveria ser hoje, já, agora.
Esse paralelo do passado com o presente é evidenciado pela pessoa de Luther King, interpretado com perfeição por David Oyelowo, esnobadíssimo pela Academia. Aliás, todo o filme foi subestimado pela falta de indicações. Além de Oyelowo (que está melhor do que alguns indicados a "Melhor Ator"), a direção firme e condutora soberba das cenas chaves de Ava DuVernay (anos-luz mais eficiente que a de Morten Tyldum, por exemplo) não só merecia como deveria ter sido reconhecida. É só perceber as escolhas sutis de momentos com emoção até os picos no clímax, como a cena da ponte, espetacularmente trágica.
O roteiro é certeiro, sem terrorismos para arrancar lágrimas no tapa, com horror descrito de forma crua e simples - note a cena em que Luther King vai ao hospital visitar o idoso. Não temos trilha chorosa, não temos frases de impacto, não temos rios de lágrimas. É humano e natural, com uma leveza impressionante. E o que dizer de “Glory”, música-tema de John Legend e Common? A canção é um verdadeiro milagre – ela se inicia no exato momento que o filme acaba e é difícil segurar as lágrimas. Ao menos esse Oscar “Selma” levou.
É inegável não torcer o nariz com o “Oscar Branco”, que, mesmo tendo passado por reformulações, ainda é uma realidade. Entre todos os indicados às principais categorias da 87ª edição do Oscar, não houve uma pessoa negra. Além disso, indo mais fundo, mulheres estão apenas nas categorias de atuação feminina - nada de direção, roteiro, montagem... Isso pode parecer banal, mas quer dizer muita coisa, principalmente com “Selma” possuindo qualidades de sobra. É só olhar para a lista de indicações dos outros filmes da principal categoria, alguns com nove e “Selma” com apenas duas, ignorando toda a direção, atuações e roteiro. É algo para questionarmos.
Mesmo com esse deslize lamentável da Academia, é notável que filmes em prol da igualdade racial estão cada vez mais em voga na premiação. Em 2012 tivemos “Histórias Cruzadas” (The Help), em 2013 “Lincoln” (idem) e “Django Livre” (Django Unchained), em 2014 tivemos “12 Anos de Escravidão” (12 Years a Slave). Todos esses filmes ganharam algum Oscar, com o último levando o prêmio máximo. Ah, mas já chega do mesmo tema, né? Enquanto racismo ainda existir, filmes como esses são necessários, principalmente na maior premiação do mundo, mesmo que ela se boicote da forma que fez na edição de 2015.
"Selma" consegue ser mais incisivo que "12 Anos de Escravidão" por um motivo simples: enquanto este é uma sob uma visão de latifundiários e donos de escravos, "Selma" é, acima de tudo, um filme sobre política, e como ela sempre se mostrou falha, parcial e unilateral. É sobre instituições que detém o poder e que o usa contra minorias que deveria proteger - prova de que o conceito puro de "democracia" é um erro dos grandes. Saindo da tela para o solo do mundo real, só chegaremos no "futuro" quando esse quadro mudar e as pessoas perceberem que somos todos iguais. Não é algo difícil, certo?
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