Quatro anos separam o primeiro hit de Lorde, “Royals”, do disco lançado pela cantora e compositora neozelandesa nesse ano, “Melodrama”.
Neste tempo, a jovem viu sua realidade mudar da água pro vinho, indo da pacata Auckland para a iluminada Nova York e trocou seu círculo de amigos de nomes como seu produtor e anônimo Joel Little para o esquadrão de cantoras, atrizes, modelos e celebridades que desfilam ao lado da estrela pop Taylor Swift.
Se em seu álbum de estreia, “Pure Heroine”, era sua adolescência e recém-descoberta fama que inspiravam suas letras, aqui o mundo megalomaníaco que foi inserida se tornou o laboratório para as suas novas composições, essencialmente mantendo o misto de desprendimento e obsessão daquela que nunca se imaginara na realeza, somados a vulnerabilidade e maturidade da menina que, antes dos 18, perdia o controle de tudo o que não tinha para se tornar o centro das atenções.
Esse é seu Melodrama.
“Green Light”
Escolhida como primeira faixa para nos contar essa história, “Green Light” é a música perfeita pra falarmos de uma transição. O título se refere ao verde de um semáforo, sinal para seguir em frente, enquanto sua letra fala de um ex-relacionamento que não foi tão sincero o quanto ela gostaria, mas agora só precisa dar a abertura necessária pra que ela se veja livre dele.
Musicalmente falando, a estrutura da canção é essencial para construir a sua narrativa, começando quase que acapela, ao som de um tímido piano, até que cresce sob batidas tão dançantes quanto algum hit lançado pelo Calvin Harris na época em que Lorde convencia todos a trocarem seu pop genérico por seu trip-hop anti-pop.
“Sober”
Com sinal verde para essa nova empreitada, ela e o produtor Jack Antonoff, também vocalista da banda Bleachers e baixista da fun., constroem uma verdadeira obra de arte tão eletrônica quanto orgânica, que dá o tom para a sua redescoberta, num momento em que a cantora dança enquanto não sabe se está no seu melhor momento ou apenas perdendo a cabeça.
Recomeços tendem a ser complicados, principalmente quando não se sabe aonde quer chegar, e em “Sober” é sobre isso que ela canta, aos passos que se devaneia com um novo amor e, após passar os efeitos da última noite, não sabe exatamente como isso a faz sentir. “Ao amanhecer, você estará dançando com todas as dores de seu coração e com a traição e com as fantasias de que está partindo. Mas nós sabemos que, quando estiver acabado, você estará dançando conosco.”
“Homemade Dynamite”
Ainda não amanheceu e, no ápice de sua noite, é com Tove Lo que Lorde se permite o êxtase, no que resultou numa das melhores experimentações desse disco. A música fala sobre uma alma com quem ela esbarrou e, apesar de não conhecer bem, se identificou totalmente. Elas dançam, piram e aproveitam a noite como se não houvesse amanhã, explodindo a porra toda como bombas caseiras.
Nesta faixa, a produção é feita sob um pop em desconstrução, com quês de Flume (“Never Be Like You”) e Lady Gaga (“Paparazzi”), até que, em seu refrão, inevitavelmente nos remete ao clássico das Runaways, “Cherry Bomb”. “Nossas regras, nossos sonhos, nós estamos cegas. Colocando tudo para o ar com uma dinamite caseira.”
“The Louvre”
Outro ponto alto de “Melodrama”, essa faixa é aberta com uma guitarra que quebra a atmosfera entusiasmada de “Homemade Dynamite” pra dar lugar a uma desajeitada declaração de amor; amor esse que ela tem ciência sobre não durar muito tempo, mas que a faz se sentir bem agora, e isso é o que importa. “Transmita esse ‘boom, boom, boom, boom’ e faça-os todos dançarem com isso.”
Com dedo do Flume, lembrado na faixa anterior, a música passeia entre cordas e sintetizadores, numa construção que, segundo a própria cantora, foi inspirada pelo disco “Blonde”, de Frank Ocean. Tanto lírica quanto sonoramente, a faixa também nos remete a “I Could Say”, de uma liricista que em muito nos lembra Lorde por sua acidez poética, Lily Allen, presente no disco “It’s Not Me, It’s You”.
“Liability”
“Eu sou um pouco demais para qualquer um”, ela entoa nesta, que é uma das faixas mais simples e, ao mesmo tempo, complexas de todo o disco. Ao piano, “Liability” é sobre a responsabilidade depositada em nós quando estamos num relacionamento, ao passo em que nos dão o peso de alcançar as expectativas de outra pessoa e, consequentemente, se ver como o problema caso algo não saia como o esperado.
Essa faixa nasceu depois que Lorde pegou um táxi enquanto ouvia “Higher”, do último disco da Rihanna, e neste ponto, é possível perceber a forma como as faixas se conversam, sendo a de Rihanna uma ligação bêbada na madrugada pra falar sobre o quanto aquela pessoa te faz sentir especial e, no caso dessa canção, uma conversa na qual “o problema não é você, sou eu”. “Todos vocês me verão desaparecer pelo sol.”
“Hard Feelings/Loveless”
“Em três anos, eu te amei todos os dias e isso me deixou fraca, porque pra mim era real. Sim, pra mim era real.” O relacionamento chegou ao fim, como ela esperava, e no mesmo estúdio em que Taylor Swift gravou o seu disco “1989”, ela se debruça a cantar sobre esse término e, como sua amiga, não poupa a dedicatória: “(...) é tarde demais e essa música é para você”.
Dividida em duas partes, o primeiro lado de “Hard Feelings” volta a explorar o inexplorado da música pop, com um arranjo que se bagunça entre sintetizadores e percussões, nos lembrando da forma desritmada em que ela se lançou com “Royals”.
No lado B, “Loveless”, o sol já está se pondo, mas Lorde se lembra que ainda não deixou a festa. Apesar de conectada a “Hard Feelings”, a faixa tem o papel justamente contrário da anterior, agora se mostrando uma luz no fim do túnel para o qual ela vinha caminhando cada vez mais fundo. “Aposto que você quer ignorar as minhas chamadas agora. Mas adivinha só? Eu gosto disso (...) Nós somos a geração sem amores. A geração sem amores. A geração do todos-fodendo-com-a-cabeça-de-nossos-amados.”
Com uma letra que facilmente resgata o conceito de “New Romantics”, também de Taylor Swift, “Loveless” traz de volta a sonoridade apresentada em seu primeiro EP, “The Love Club”, quase como se, escondida por trás de “Hard Feelings”, fosse um refúgio em que ela se encontra com Ella, seu nome fora dos palcos, para então relembrar os pensamentos daquela que debochava sobre andar com as crianças populares.
“Sober II (Melodrama)”
Quando as luzes se acendem, tudo o que resta são Lorde e seu Melodrama. Numa sonoridade que implode sob um trip-hop, semelhante ao que ela trabalhou em seu primeiro disco, mas agora com uma atmosfera monumental, que beira o gospel, ela volta a se questionar sobre o que está ao seu redor. “Todo esse glamour e o trauma e essa porra de Melodrama.”
Para quem estava decidida a recomeçar, nem tudo pode ter saído como ela gostaria e, nesta altura, ela ressalta, como se nos devesse alguma explicação: “nós te avisamos que isso era um melodrama. Você queria algo que pudéssemos te dar.”
“Writer In The Dark”
Agora em casa, a cantora não conseguiu deixar o seu coração na pista e, enquanto compõe uma nova canção, volta a lidar com as falas daquele que a fez se sentir um fardo. Tanto lírica quanto sonoramente, “Writer In The Dark” se mostra conectada a “Liability”, enquanto ela volta a cantar sobre o quanto será difícil se desvencilhar desses sentimentos, em tempo que demonstra saber onde canalizá-los: nas suas canções.
Eu aposto que você lamenta o dia que beijou uma compositora no escuro. Agora ela vai tocá-lo, cantá-lo e aprisioná-lo em seu coração.
Em seu refrão, “Writer” ganha um coro que nos remete de Bowie ao Queen, dando a faixa força o suficiente para garantir que seremos pegos pelo coração e obrigados a sentir toda a vulnerabilidade que, como pediu em “The Louvre”, ela queria transmitir para que dançássemos sobre. “Eu vou te amar até que a minha respiração pare, até que você chame a polícia atrás de mim.”
“Supercut”
Conforme transforma suas vulnerabilidades em emoções cantadas, Lorde consegue resgatar a narrativa dançante com a qual abriu o disco e, em “Supercut”, nos leva direto para os versos de outra do seu álbum de estreia: “Buzzcut Season”, na qual cantava sobre como tudo parecia bem enquanto estava ilhada com o seu amor e melhor amigo. Na hiperrealidade em que vivia como se estivesse em um holograma, “onde tudo é bom”.
Desta forma, “Supercut” cresce sob sintetizadores emprestados do disco “Body Talk”, da Robyn, com ela assistindo em sua cabeça aos momentos bons que deixou para trás e, ainda presa na versão em que foi a errada da história, os finais alternativos que poderiam existir se tivesse agido de outras maneiras.
“Essas visões nunca param, essas fitas me envolvem por completo, mas quando tento me aproximar de você, me lembro de que é só uma grande lembrança. (...) Na minha cabeça eu faço tudo certo. Quando você me liga, eu te perdoo e não brigo. São os momentos que assisto no escuro, e os fluorescentes, que ficam guardados no meu coração. Mas é só uma grande lembrança de nós.”
“Liability (Reprise)”
Lorde repete seus últimos passos mentalmente, como quem tenta se lembrar onde deixou algum objeto esquecido, e enquanto reavalia suas atitudes, reprisa as palavras que a atingiram em “Liability”, se permitindo agora uma nova leitura.
Os devaneios da neozelandesa voltam para a festa em que tudo começou, enquanto ela se questiona. “Talvez tudo isso ainda seja a festa. Talvez todas essas lágrimas e o quão fundo respiramos, talvez tudo isso seja a festa. Talvez apenas estejamos fazendo isso de uma forma muito violenta.”
E conforme as palavras ecoam em sua mente, “fardo, demais para mim, fardo, demais para mim”, elas abrem espaço para um coro enfatizar o quanto ela pode estar errando justamente em se ver como o erro. “Você não é o que pensava ser.”
“Perfect Places”
“Toda noite, eu vivo e morro”, começa em “Perfect Places”, que revive a euforia e synths do início do disco. Nesta faixa, a cantora busca sintetizar o que cantou ao longo do álbum, fazendo ainda uma reflexão em torno da sua persona e todo o universo que, quatro anos após “Royals”, continua a entediando.
Nesse tempo em que esteve longe de tudo o que era familiar, ela aproveitou as poucas vezes que pode voltar para sua família e amigos na Nova Zelândia e, distante de todos os exageros da América, era ali que encontrava seu lugar perfeito. “Afinal, que porra são lugares perfeitos?”, canta em seu último refrão.
Entre essas vidas e mortes, a cantora lamenta a perda de seus ídolos, como David Bowie, e ressalta o quanto isso faz com que ela valorize aqueles que ainda estão ao seu lado. “Eu tenho só 19 anos e estou prestes a explodir, mas quando estamos dançando, me sinto bem (...) Todos os nossos heróis estão partindo, agora eu mal posso ficar sozinha. Vamos para lugares perfeitos!”
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Quando a cantora neozelandesa emplacou seus primeiros hits, as gravadoras prestaram mais atenção nos artistas da internet e, não apenas desta forma, começaram a fabricar suas próprias estrelas indies, o que por si só soa contraditório, mas resultou no lançamento de artistas como Halsey, Melanie Martinez, Troye Sivan e derivados. Desta forma, Lorde não poderia simplesmente se repetir, ressurgindo com a mesma sonoridade que ajudou a pavimentar, e assim ela fez, mantendo a essência de seus primeiros trabalhos, em tempo que, musicalmente, evoluiu de maneira significativa.
A parceria com Jack Antonoff, como a própria reconhece, foi crucial para o nascimento de “Melodrama”, que entrega a sua narrativa da honestidade triste e ácida de suas letras aos muitos detalhes de seus arranjos, fazendo dele não só um disco agradável de se ouvir, mas também uma produção que nos permite assisti-lo, ainda que não seja, na teoria, um álbum visual.
Um dos inevitáveis melhores discos do ano, o segundo passo de Lorde pode não contar com a mesma atenção que ela encontrou quando era a próxima grande-coisa-pop, mas nos leva de encontro a mesma intérprete e compositora talentosa que, aos 16, colocava o mundo aos seus pés, agora para nos contar que está mais amadurecida do que nunca e, independente dos números, segura em continuar fazendo a sua arte valer mais do que ser ouvida ou comprada, mas, sim, sentida.