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Crítica: "A Deusa da Vingança" é um quebra-cabeça mitológico sem respostas fáceis

Junto com "Mãe!", esse é o "amei, mas entendi nada" do ano - e nós tentamos explicar
Começar este texto com um aviso de spoiler seria simplório demais, então vamos lá: o texto em questão contém explicações pessoais sobre "A Deusa da Vingança" (Sam Was Here), longa que acaba de chegar no catálogo da Netflix e tem feito muita gente quebrar a cabeça. Recomendo que você vá agora assisti-lo - são só 70 min de filme, rapidinho - e logo em seguida retorne para, juntos, tentarmos entender o que diabos se passa ali. Caso você já tenha feito todos esses passos, siga em frente.

Como apenas 1:10h pode estar fazendo tantas pessoas amarem e odiarem um filme? "A Deusa da Vingança" segue um dia na vida de Sam (Rusty Joiner), um vendedor ambulante que chega numa cidadezinha no meio do deserto. Mas deserta também está a cidade: nenhuma das casas parece conter uma alma viva, assim como todos os lugares por que ele passa. Sam liga para o seu chefe, pedindo para ir embora dali, e para sua esposa, dando sinal de vida, porém ninguém atende. Ele se sente a última pessoa do planeta.

As suas únicas companhias são seu page, que passa o dia recebendo mensagens anônimas o chamando de "Porco pedófilo" (que Sam ignora com certa desconfiança), e o rádio, mais especificamente o "Programa do Eddy", uma espécie de programa policial pro qual as pessoas ligam para denunciar ou reclamar de absolutamente qualquer coisa. Sam se distrai com uma caçada de um serial killer que está foragido pelas redondezas, ouvindo a população ligando para Eddy e temendo por suas seguranças. Mas onde estão todas essas pessoas?

Enquanto segue até um motel para passar a noite, o protagonista percebe uma brilhante luz vermelha no céu, que permanece imóvel e enigmática - ele nem ao menos tem alguém para perguntar "O que pode ser aquilo?". Christophe Deroo, em contrapartida, dirige o filme dando pinceladas não-diegéticas, ou seja, com apenas o público tendo ciência: no motel, tão vazio quanto o resto da cidade, há alguém escondido num dos banheiros, mesmo com as súplicas de Sam para algum atendente aparecer. Se para o homem tudo está muito estranho, para nós, que temos mais informações que ele, a situação está bizarra.


A atmosfera do longa é construída de maneira exemplar - ajudada pela estonteante fotografia de Emmanuel Bernard; o afiado design de produção de Barnabe Nuytten; e a bela montagem de Camille Guyot, todos em seus primeiros trabalhos em um longa-metragem. É impossível não se sentir desconfortável com o passar da duração e as peças se encaixando de forma hermética e não conclusiva. Desde a estranha luz no céu até o cômico programa do rádio, tudo conspira para que entremos na onda do filme e sigamos os passos de Sam em busca de alguma explicação. E manter o interesse da plateia é primordial em qualquer obra.

Quando Sam finalmente encontra um ser vivo, um policial, parece que a solidão acaba, todavia, o pesadelo começa de verdade quando o tal policial atira no protagonista, forçado a fugir. Todo o desenvolvimento de Sam é feito de maneira que sintamos a mais pura simpatia pelo personagem - suas tentativas frustradas de venda, sua preocupação com a família e até mesmo o dinheiro deixado pelos lugares vazio por que passa (junto com um bilhete dizendo "Sam esteve aqui") são mecanismos de afeto para o público - então tal violência gratuita ativa um alerta máximo na nossa mente de maneira tão urgente quanto na de Sam, tendo que lutar pela sua vida.

"A Deusa da Vingança" entra aqui num mote bastante conhecido dentro do cinema de terror: o protagonista sendo perseguido por vilões mascarados. Desde os clássicos "O Massacre da Serra Elétrica" (1974), "Halloween: A Noite do Terror" (1978) e "Sexta-Feira 13" (1980), até os modernos, como "Pânico" (1996), "Os Estranhos" (2008) e "A Morte Te Dá Parabéns" (2017), a figura do vilão por trás de uma máscara é elemento eficiente para a construção da atmosfera, principalmente se a máscara em questão conseguir gerar algum medo. É certo que psicopatas mascarados já deram uma saturada, porém "A Deusa da Vingança" não se utiliza disso como apoio principal de sua narrativa.


Isso fica claro quando a identidade de seus capatazes é irrelevante para Sam. Ao contrário do que se espera, o protagonista não demonstra querer descobrir quem sejam aqueles perseguidores. Com exceção do primeiro, de que ele meramente olha a identidade, nenhum dos rostos de nenhum dos outros personagens é mostrado de forma explícita na tela.

Sam então encontra cartas para todos os moradores da cidade, enviadas por Eddy, o apresentador do tal programa de rádio, dizendo para a população fugir do protagonista e, caso o encontre, matá-lo, pois ele era o serial killer de que todos estavam atrás. Entretanto, Sam sabe da sua inocência, e, longe de qualquer ligação com o "mundo exterior", se vê preso numa cidade que deseja a sua morte.

Ao contrário de Darren Aronofsky, que saiu explicando "Mãe!" para todos os lados, Christophe Deroo simplesmente disse que entender o longa não é o mais importante, e sim acompanhar sua atmosfera. Claro, falar é fácil, e nós, seres humanos, criaturas sedentas de curiosidade, ficamos desesperados diante do que não faz sentido, do que não tem uma explicação - e "A Deus da Vingança" explica praticamente nada do que se passa no ecrã, o que gerou comentários furiosos de como a obra é uma perda de tempo. Mas vamos entender.


Assim como qualquer obra que permita que a subjetividade do espectador crie seus próprios sentidos, não há uma explicação correta para todo o caos do filme - principalmente quando o diretor se recusa a dar essa explicação. A teoria a seguir é extremamente particular e tão correta (ou errada) quanto qualquer outra das várias que surgiram na internet, então comprá-la ou não cabe a você, leitor, que pode achar tanto que faz total sentido quanto uma viagem sem qualquer lógica.

Sam está no inferno. Todo o trecho de sua vida nada mais é que sua passagem pelas terras de Satanás, personalizado pela figura de Eddy, o rei daquele deserto, já que é o único a conseguir se comunicar com todos. A misteriosa luz vermelha nada mais é que o símbolo desse submundo, que vai brilhando cada vez mais forte até a derradeira hora do acerto de contas.

O próprio título nacional dá uma grande dica. Não se revolte, você, que acha que as produtoras brasileiras inventam títulos absurdos ao destoarem de uma tradução literal - e isso é uma realidade: "A Deusa da Vingança" - bastante distante de "Sam Esteve Aqui", o título americano - não é uma firula para soar bonito e vender o filme em terras tupiniquins. Uma produção franco-americana, o longa recebeu na França o título de "Nemesis", figura da mitologia que era, olha só, a deusa da vingança para os gregos, a entidade responsável pela justiça e por dar o equilíbrio cósmico entre bem e o mal.


O protagonista de fato é culpado pelos crimes de que é acusado, porém não se recorda por estar diante do seu julgamento, e todo o sofrimento que percorre faz parte do pagamento de seus pecados. Eddy liga para Sam e mostra uma gravação de sua esposa, dizendo que Sam já está morto, o que reforça a ideia de que o filme se passa em seu pós-vida. Todas as pessoas determinadas a matá-lo são meros peões do jogo de Lúcifer - ou de Nemesis, ou de Eddy, ou do nome que você queira dar - destinados a causar dor e sofrimento para alguém que fez a mesma coisa em vida.

O roteiro de Deroo e Clement Tuffreau faz a sacanagem de jogar anzóis de apreço do público para com Sam e depois destruir tudo ao colocá-lo como culpado. Não dá para não torcer pelo protagonista, e toda a construção do personagem, atuado com muito poder por Rusty Joiner, que carrega o filme nas costas, é feita de modo brilhante. Todas as nuances e camadas do vendedor abandonado que vira a caça por um bando de malucos ensandecidos no meio do nada são para fazer qualquer um sentir a mínima empatia.

"A Deusa da Vingança" vem sofrendo ataques de um público que não é culpado: estamos acostumados a termos respostas fáceis, entregues de bandeja por um cinema abertamente comercial e que se utiliza de crenças religiosas familiares - como a franquia "Invocação do Mal" (2013-), por exemplo. Quando batemos a cara numa obra que não faz o mínimo esforço para se explicar, soa como algo mal feito, não finalizado e até arrogante, todavia, temos aqui um filme competente em sua proposta e execução ao orquestrar um novo olhar de referências mitológicas de maneira criativa. Basta você tentar ver além da superfície - e as profundezas às vezes assustam.

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