Jake Gyllenhaal é um dos melhores atores da sua geração em Hollywood. Altamente versátil, ele consegue interpretar diferentes papéis com a mesma competência, já o rendendo indicação ao Oscar de "Melhor Ator Coadjuvante" em 2006 pela obra-prima "O Segredo de Brokeback Mountain". De lá pra cá, mais de uma década depois, o ator não passou mais perto de ganhar uma estatueta dourada.
Mas não foi por falta de tentativas. O The Guardian escreveu um artigo sobre o "desespero" (vou chamar de "vontade") do ator em conseguir ao menos ser indicado ao escolher papéis que se encaixem na forma de bolo do Oscar. Só nos últimos anos, Gyllenhaal escolheu quatro papéis que fazem arrepiar e epiderme dos votantes da academia: em 2014 ele emagreceu a níveis quase esqueléticos para viver o insano protagonista de "O Abutre"; em 2015 fez o inverso, ganhando músculos para o boxeador de "Nocaute"; em 2016 fez o papel duplo do homem abandonado em "Animais Noturnos"; e agora em 2017 com o cadeirante sobrevivente a um atentado em "O Que te Faz Mais Forte" (Stronger).
O que os três primeiros (e, pelo andar carruagem, o último também) têm em comum: todos são formas do ator demonstrar como é capaz de fazer personagens difíceis e todos foram esnobados pelo Oscar. Sua atuação em "O Que te Faz Mais Forte" parece fadada ao mesmo destino, sendo ignorada nas principais premiações da temporada - o termômetro mais forte das categorias de atuação, o Screen Actors Guild (SAG), não colocou Jake entre os indicados.
Não entenda errado: Jake é talentosíssimo e merece vários louvores (ele está assombroso em "O Abutre", e até em filmes menores sua atuação é digna de destaque, como em "O Homem Duplicado"). Querer um Oscar jamais é algo errado, mesmo ator nenhum tendo a coragem de dizer que aceitou o papel para colocar o careca dourado na estante. O Oscar é, querendo ou não, a maior premiação do planeta, e colocar as mãos em um é abrir portas que podem mudar toda uma carreira. Em contra partida, eles nem precisam assumir: papéis super-desafiadores, que envolvem mudanças drásticas na aparência, dura preparação de personagem e, se puder, um plano de fundo de superação, são os ingredientes da receita perfeita para chegar lá. Como diz a publicação, a plateia pode sentir o cheiro.
Só que não podemos viver nossa vida em torno de uma premiação, que, sejamos sinceros, não é parâmetro absoluto de qualidade - a quantidade de atuações ruins com prêmios em casa é assombrosa. Passado esse breve, mas necessário, relatório sobre o estágio atual da carreira de Gyllenhaal, podemos entrar em "O Que te Faz Mais Forte". A cinebiografia conta a história de Jeff Bauman, que perdeu as pernas no atentado terrorista na Maratona de Boston em 2013. Seguimos o homem tentando viver após a tragédia e como ela afeta sua relação com Erin (Tatiana Maslany, da série "Orphan Black").
Assim como - quase - todas as cinebiografias, os acontecimentos na tela são previsíveis - quando não totalmente óbvios. Filmes no molde de "O Que te Faz Mais Forte" seguem quase uma fórmula padrão para representar na tela a vida do personagem principal. E se essa vida for envolta de superação então, tudo fica ainda mais evidente.
Quem vai assistir ao filme em questão vai esperando ver uma história de superação, e, por um hora e meia de duração, não é exatamente isso que o público recebe. O passo a passo é seguido: temos uma breve apresentação de personagens e seus contextos, partindo logo para o atentado - realizado de maneira bastante competente e sem pudores - para, assim, embarcarmos na realidade de Jeff.
Ao contrário do que se espera, não temos um festival de chororô melodramático. O próprio Jeff brinca com a situação enquanto vemos sua recuperação médica, bem dolorosa. Há forte carga emocional pela sua nova vida e as dependências básicas geradas pelo atentado, que acabam com o psicológico do protagonista. A sua rocha é Erin, que se vê num momento complicadíssimo: ela havia terminado com Jeff, e ele, numa tentativa de reatar a relação, vai à maratona ver a ex participar. Na cabeça de Erin ela é quase a culpada pela tragédia com Jeff, afinal, ele só estava no local por causa dela. Todo esses fatos fazem com que os dois reatem o namoro, sem uma áurea de coitadismo ou piedade. Erin realmente quer estar ali.
O principal acerto da maior parte do longa é a recusa de Jeff em ser chamado de herói. Sua história é midiatizada de maneira exacerbada, com ele virando símbolo para sua cidade, mas ele questiona: "Eu sou um herói só por ter minhas pernas arrancadas?". E esse questionamento faz toda a diferença. Se olharmos para a verdade nua e crua, Jeff, ao seguir sua vida, faz nada de socialmente revolucionário. Para as outras pessoas, sim, ele é um herói por não ter "deixado os terroristas vencerem", e seu desejo de continuar vivendo é a fonte máxima de inspiração.
O comportamento "anti-heroico" do protagonista, juntamente com a exploração dos meandros da sua relação com Erin, vão costurando um interessante filme sobre um recomeço após uma tragédia, o impacto na interação interpessoal - e pessoal -, e a representação da deficiência, no entanto, nos trinta minutos finais, tudo é jogado no lixo para abraçar sem medo o "pornô de inspiração", com direito a imagens do protagonista na frente de bandeiras norte-americanas gigantescas, estádios de basebol e violinos ao fundo na trilha sonora.
Mas o que seria um "pornô de inspiração"? O termo pode soar bem sensacionalista, mas há uma explicação eficiente. Cunhado pela ativista Stella Young, ele quer dizer que a imagem das pessoas com deficiência é objetificada para o prazer dos não-deficientes - assim como a pornografia, produto que objetifica o sexo para o bel-prazer do espectador. Você com certeza já deve ter visto imagens com deficientes e a legenda "Qual a sua desculpa?", ou o slogan do filme, "A força nos define", exatamente a força física, o ato do protagonista usar seus músculos para poder andar, e tais construções são péssimas.
Devo me apropriar do conceito de Young para explicar como "O Que te Faz Mais Forte" se encaixa na ideia. O que a obra quer dar ao público? Uma mercadoria que vá inspirá-lo (no próprio pôster temos "Baseado numa inspiradora história real"). E o público espera exatamente isso, sentar numa cadeira e ser inspirado por duas horas. Nós aprendemos a ver pessoas com deficiência pela ótica de objetos de inspiração, afinal, a partir do momento que alguém é deficiente, seja isto um fato acarretado durante sua vida ou vindoura do próprio nascimento, ele se torna excepcional.
Young afirma: esse tipo de abordagem objetifica o grupo de pessoas com deficiência em benefício das pessoas "normais". "O Que te Faz Mais Forte" é um produto para motivar a plateia quando as construções desenvolvidas pelos trintas minutos finais fomentam o pensamento de "Minha vida poderia ser pior do que é, afinal, eu tenho minhas pernas". Essa leitura é algo quase automático, já que fomos moldados para pensarmos assim, todavia, o que estamos dizendo é "Não importa o quão ruim é minha vida, eu poderia ser aquela pessoa". E se você fosse aquela pessoa? Não seria péssimo você ser um parâmetro de vida ruim e viver como forma de fazer as pessoas "normais" se sentirem melhores consigo mesmas? Viver como fonte de inspiração de algo que você não pediu?
Jeff é abordado por vários estranhos, que o chamam de "herói" e dizem que ele os motiva. Eles estão, basicamente, parabenizando Jeff por acordar de manhã e viver sua vida, apesar dos pesares. E isso é uma maneira claríssima de objetificação. É como se esses estranhos estivessem dizendo "Parabéns por você seguir em frente, eu não conseguiria. Você me mostra que minha vida não é tão ruim assim, obrigado". O que na cabeça de quem fala é um grande elogio na verdade é reflexo de todos os materiais objetificadores, que colocam as expectativas sobre os deficientes num patamar tão baixo que só o ato de acordarem e viverem os fazem ser incríveis.
Enquanto o protagonista luta contra esse modelo social de deficiência, detestando a exposição e ignorando a Oprah (!), a obra é um grande produto contra essa objetificação e forte debatedor da regra vigente, deixado totalmente de lado quando o protagonista tem uma epifania moral e decide seguir o modelo, que derruba todos os ótimos 90 minutos anteriores.
Não podemos então tirar boas lições da vida de deficientes? Sim, podemos, assim como podemos aprender com qualquer forma de vida, mas estamos aprendendo da forma errada. O longa mostra como é possível vivermos depois de uma tragédia, encontrando forças no aparato emocional que temos com família e amigos, e as dificuldades motoras de um deficiente físico, algo que talvez nem tenhamos total ciência, e esses pontos são bons de serem explorados pelo cinema, mas a maneira que a deficiência é desbravada no último ato incomoda e cai exatamente na bandeira levantada por Young, que dizia: "Eu não sou sua inspiração, muito obrigada".
"O Que te Faz Mais Forte" nem precisa ser repudiado por trazer a "pornografia de motivação" - a obra talvez nem saiba dos processos de construção de significados feitos em cima da deficiência (o próprio título já demonstra), entretanto, quando chega tão perto de se tornar um exemplo de como não objetificar esse grupo e desiste de tudo em nome de uma moral ufanista e sentimentaloide, se torna "mais um". Feito sem medo de ser feliz para agradar as massas, o filme acaba mais deficiente que seu protagonista, um Jake Gyllenhaal sedento por prêmios. A sede continua.
Só que não podemos viver nossa vida em torno de uma premiação, que, sejamos sinceros, não é parâmetro absoluto de qualidade - a quantidade de atuações ruins com prêmios em casa é assombrosa. Passado esse breve, mas necessário, relatório sobre o estágio atual da carreira de Gyllenhaal, podemos entrar em "O Que te Faz Mais Forte". A cinebiografia conta a história de Jeff Bauman, que perdeu as pernas no atentado terrorista na Maratona de Boston em 2013. Seguimos o homem tentando viver após a tragédia e como ela afeta sua relação com Erin (Tatiana Maslany, da série "Orphan Black").
Assim como - quase - todas as cinebiografias, os acontecimentos na tela são previsíveis - quando não totalmente óbvios. Filmes no molde de "O Que te Faz Mais Forte" seguem quase uma fórmula padrão para representar na tela a vida do personagem principal. E se essa vida for envolta de superação então, tudo fica ainda mais evidente.
Quem vai assistir ao filme em questão vai esperando ver uma história de superação, e, por um hora e meia de duração, não é exatamente isso que o público recebe. O passo a passo é seguido: temos uma breve apresentação de personagens e seus contextos, partindo logo para o atentado - realizado de maneira bastante competente e sem pudores - para, assim, embarcarmos na realidade de Jeff.
Ao contrário do que se espera, não temos um festival de chororô melodramático. O próprio Jeff brinca com a situação enquanto vemos sua recuperação médica, bem dolorosa. Há forte carga emocional pela sua nova vida e as dependências básicas geradas pelo atentado, que acabam com o psicológico do protagonista. A sua rocha é Erin, que se vê num momento complicadíssimo: ela havia terminado com Jeff, e ele, numa tentativa de reatar a relação, vai à maratona ver a ex participar. Na cabeça de Erin ela é quase a culpada pela tragédia com Jeff, afinal, ele só estava no local por causa dela. Todo esses fatos fazem com que os dois reatem o namoro, sem uma áurea de coitadismo ou piedade. Erin realmente quer estar ali.
O principal acerto da maior parte do longa é a recusa de Jeff em ser chamado de herói. Sua história é midiatizada de maneira exacerbada, com ele virando símbolo para sua cidade, mas ele questiona: "Eu sou um herói só por ter minhas pernas arrancadas?". E esse questionamento faz toda a diferença. Se olharmos para a verdade nua e crua, Jeff, ao seguir sua vida, faz nada de socialmente revolucionário. Para as outras pessoas, sim, ele é um herói por não ter "deixado os terroristas vencerem", e seu desejo de continuar vivendo é a fonte máxima de inspiração.
O comportamento "anti-heroico" do protagonista, juntamente com a exploração dos meandros da sua relação com Erin, vão costurando um interessante filme sobre um recomeço após uma tragédia, o impacto na interação interpessoal - e pessoal -, e a representação da deficiência, no entanto, nos trinta minutos finais, tudo é jogado no lixo para abraçar sem medo o "pornô de inspiração", com direito a imagens do protagonista na frente de bandeiras norte-americanas gigantescas, estádios de basebol e violinos ao fundo na trilha sonora.
Mas o que seria um "pornô de inspiração"? O termo pode soar bem sensacionalista, mas há uma explicação eficiente. Cunhado pela ativista Stella Young, ele quer dizer que a imagem das pessoas com deficiência é objetificada para o prazer dos não-deficientes - assim como a pornografia, produto que objetifica o sexo para o bel-prazer do espectador. Você com certeza já deve ter visto imagens com deficientes e a legenda "Qual a sua desculpa?", ou o slogan do filme, "A força nos define", exatamente a força física, o ato do protagonista usar seus músculos para poder andar, e tais construções são péssimas.
Devo me apropriar do conceito de Young para explicar como "O Que te Faz Mais Forte" se encaixa na ideia. O que a obra quer dar ao público? Uma mercadoria que vá inspirá-lo (no próprio pôster temos "Baseado numa inspiradora história real"). E o público espera exatamente isso, sentar numa cadeira e ser inspirado por duas horas. Nós aprendemos a ver pessoas com deficiência pela ótica de objetos de inspiração, afinal, a partir do momento que alguém é deficiente, seja isto um fato acarretado durante sua vida ou vindoura do próprio nascimento, ele se torna excepcional.
Young afirma: esse tipo de abordagem objetifica o grupo de pessoas com deficiência em benefício das pessoas "normais". "O Que te Faz Mais Forte" é um produto para motivar a plateia quando as construções desenvolvidas pelos trintas minutos finais fomentam o pensamento de "Minha vida poderia ser pior do que é, afinal, eu tenho minhas pernas". Essa leitura é algo quase automático, já que fomos moldados para pensarmos assim, todavia, o que estamos dizendo é "Não importa o quão ruim é minha vida, eu poderia ser aquela pessoa". E se você fosse aquela pessoa? Não seria péssimo você ser um parâmetro de vida ruim e viver como forma de fazer as pessoas "normais" se sentirem melhores consigo mesmas? Viver como fonte de inspiração de algo que você não pediu?
Jeff é abordado por vários estranhos, que o chamam de "herói" e dizem que ele os motiva. Eles estão, basicamente, parabenizando Jeff por acordar de manhã e viver sua vida, apesar dos pesares. E isso é uma maneira claríssima de objetificação. É como se esses estranhos estivessem dizendo "Parabéns por você seguir em frente, eu não conseguiria. Você me mostra que minha vida não é tão ruim assim, obrigado". O que na cabeça de quem fala é um grande elogio na verdade é reflexo de todos os materiais objetificadores, que colocam as expectativas sobre os deficientes num patamar tão baixo que só o ato de acordarem e viverem os fazem ser incríveis.
Enquanto o protagonista luta contra esse modelo social de deficiência, detestando a exposição e ignorando a Oprah (!), a obra é um grande produto contra essa objetificação e forte debatedor da regra vigente, deixado totalmente de lado quando o protagonista tem uma epifania moral e decide seguir o modelo, que derruba todos os ótimos 90 minutos anteriores.
Não podemos então tirar boas lições da vida de deficientes? Sim, podemos, assim como podemos aprender com qualquer forma de vida, mas estamos aprendendo da forma errada. O longa mostra como é possível vivermos depois de uma tragédia, encontrando forças no aparato emocional que temos com família e amigos, e as dificuldades motoras de um deficiente físico, algo que talvez nem tenhamos total ciência, e esses pontos são bons de serem explorados pelo cinema, mas a maneira que a deficiência é desbravada no último ato incomoda e cai exatamente na bandeira levantada por Young, que dizia: "Eu não sou sua inspiração, muito obrigada".
"O Que te Faz Mais Forte" nem precisa ser repudiado por trazer a "pornografia de motivação" - a obra talvez nem saiba dos processos de construção de significados feitos em cima da deficiência (o próprio título já demonstra), entretanto, quando chega tão perto de se tornar um exemplo de como não objetificar esse grupo e desiste de tudo em nome de uma moral ufanista e sentimentaloide, se torna "mais um". Feito sem medo de ser feliz para agradar as massas, o filme acaba mais deficiente que seu protagonista, um Jake Gyllenhaal sedento por prêmios. A sede continua.