É um privilégio poder acompanhar um artista do início e vivenciar seu apogeu. Margot Robbie até parece que tem muitos anos de carreira, mas a australiana só despontou no cinema em 2013 com "O Lobo de Wall Street", pouco mais de quatro anos atrás. De lá pra cá ela estrelou dois grandes blockbusters, o já esquecido "A Lenda de Tarzan" e o fatídico "Esquadrão Suicida", ambos em 2016. Se quase ninguém mais lembra que ela foi a Jane no primeiro, sua Arlequina gerou iconicidade tanto pelo visual quanto pela ótima atuação, uma das poucas coisas que se salvam no caos que foi "Esquadrão Suicida".
De "Suíte Francesa" (alguém soube que esse filme existiu?) até "Eu, Tonya" (I, Tonya), do início até ser uma das favoritas à indicação ao Oscar de "Melhor Atriz", Robbie conseguiu chegar no topo com rapidez e agilidade. E também pudera. Há bastante talento por trás daquele lindo rostinho, e em "Eu, Tonya" ela consegue provar sem deixar rastros de dúvidas.
"Eu, Tonya" é uma cinebiografia baseada na vida de Tonya Harding. Pro público brasileiro ela pode ser uma anônima, mas nos Estados Unidos protagonizou um dos maiores escândalos esportísticos do país. Todavia, além de ser lembrada negativamente pelo evento, Tonya foi a primeira mulher, na década de 90, a conseguir realizar dois triple axel numa competição, um dos saltos mais difíceis da patinação no gelo. O longa visa então mostrar a ascensão e queda de sua protagonista.
O primeiro chamariz de qualquer cinebiografia é: como o ator principal fará para encarnar o personagem. Sendo esse real, a composição imagética e performática do ator é o que garantirá, no mínimo, sucesso do foco principal da obra. E personagens reais transpostos para a tela são sempre envoltos de glórias e, geralmente, indicações ao Oscar. Eddie Redmayne como Stephen Hawking em "A Teoria de Tudo" (2014), Meryl Streep como Margaret Thatcher em "A Dama de Ferro" (2011), Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln em "Lincoln" (2012), Philip Seymour Hoffman como Truman Capote em "Capote" (2005), Marion Cotillard como Édith Piaf em "Piaf: Um Hino Ao Amor" (2007)... Todos papéis vencedores do Oscar.
O que todos têm em comum: a produção conseguiu deixá-los bastante parecidos com seus respectivos personagens - quando não assustadoramente iguais (ainda me choca lembrar como Day-Lewis estava a própria reencarnação de Lincoln). Um dos principais atributos, além do visual, é a voz do personagem - algo que Natalie Portman alcançou com perfeição ao viver Jacqueline Kennedy em "Jackie" (2016). Portman não venceu "Melhor Atriz", assim como Robbie eventualmente não vencerá com "Eu, Tonya", mas ambas conseguem criar suas versões de suas mulheres aliando traços iguais às suas próprias particularidades.
Robbie não parece tanto com a real Tonya fisicamente, entretanto, seus trejeitos de fala e os figurinos reproduzidos pela produção são o mais próximo do real possível. O trabalho de cabelo e maquiagem ajudam a retirar a real faceta da atriz e aproximar das características de Tonya, mas a falta de extrema semelhança é totalmente compensada pela entrega da atriz e as escolhas técnicas e narrativas do longa. Margot Robbie nem sequer conhecia a história real antes de ler o roteiro - e terminou achando que era ficção, que só dá peso à sua atuação por não ter familiaridade com o material.
"Eu, Tonya" recebe um trato de mockumentário - montado como se fosse um documentário real. A fita é dividida entre os depoimentos de três principais personagens envoltos da história: Tonya; Jeff, seu marido (Sebastian Stan) e LaVona, sua mãe (Allison Janney). Para dar um resumo na história, os acontecimentos foram: Tonya estava no auge da carreira de patinação e tinha como principal rival Nancy Kerrigan (interpretada por Caitlin Carver). Seu marido, juntamente com o guarda-costas, bolam um plano para machucarem Nancy e a tirarem do caminho das competições, garantindo que Tonya ganhe a medalha de ouro. O atentado foi um estouro na mídia e um circo foi formado. Moral da história: até hoje não se sabe com certeza se Tonya tinha ciência ou não dos planos para o atentado.
Ficaria muito fácil - e tendencioso - expor uma versão dos fatos, a da protagonista. Craig Gillespie, diretor do longa, juntamente com o roteirista Steven Rogers, bolam quase que um documento - dramatizado, claro - sobre diferentes pontos de vista que criam um todo. Os três peões do jogo dão seus relatos enquanto a montagem faz com que eles se desmintam a todo o momento. Tonya afirma que foi severamente abusada, física e psicologicamente, pela mãe quando criança. O filme remonta os momentos baseados nas falas da protagonista e em seguida mostra o lado da mãe, que afirma: "eu nunca fiz isso".
Acompanhamos o dificílimo amadurecimento da protagonista e notamos que o filme pega características que remetem a três grandes longas: "O Lobo de Wall Street", "Whiplash: Em Busca da Perfeição" (2014) e "Cisne Negro" (2010). A narrativa de "I, Tonya" é costurada com diversas quebras da quarta parede, assim como em "O Lobo". Os personagens, no meio das cenas, conversam com o expectador, xingam, dão opiniões e externalizam seus pensamentos sobre o que está se passando. Juntamente com a elétrica trilha-sonora e a incrível montagem, o ritmo da película é acelerado, sarcástico e recheado de gags visuais divertidíssimas.
Se em 2014 tivemos a monstruosidade que foi o Terence Fletcher em "Whiplash", que carimbou um mais que merecido Oscar de "Ator Coadjuvante" para JK Simmons, em 2017 temos a avassaladora LaVona de Allison Janney. A veterana, que jamais foi indicada ao Oscar (mas agora isso será reparado), cria uma personagem que rouba a cena a todo o momento pelas excentricidades e cruezas. Ela, assim como Fletcher, maltrata, humilha, intimida e leva sua pupila aos extremos em busca da perfeição, e acha que seus métodos são válidos caso crie uma vencedora. É impressionante a força magnética que a atriz alcançou, fazendo com que ansiemos pela próxima cena em que apareça mesmo com uma personagem tão desprezível - algo feito com extrema competência por Simmons.
E o traço de "Cisne Negro" presente em "Eu, Tonya" é: assim como os números de balé são o ponto alto do primeiro, as sequências de competição da protagonista guardam o coração acelerado da película. Robbie, assim como Portman com o balé clássico, não era uma patinadora profissional, então nas cenas com técnicas avançadas ambas foram substituídas por uma dublê, apenas introduzindo seus rostos na pós-produção. A grande diferença é a qualidade dessa substituição.
Enquanto em "Cisne Negro" esse trabalho é tão perfeito que, antes da polêmica do casting da dublê, era impossível reparar quando não era Portman na tela, a coisa é gritante em "Eu, Tonya". O CGI é perceptivo e em alguns momentos bem pobre, que diminui a qualidade das sequências, compensadas pelo magnífico trabalho fotográfico, explorando a mise-en-scène com maestria. A cena em que ela consegue realizar o primeiro triple axel é milimetricamente feita (com exceção dos efeitos já citados), e entrega o melhor momento da fita.
Para sermos justos, é importante pontuar que, enquanto "Cisne Negro" é produzido pela Fox, uma das maiores produtoras do planeta, "Eu, Tonya" é um filme independente, adquirido pela Neon, uma distribuidora anã perto da Fox. Mesmo os orçamentos sendo parecidos - $13 milhões de "Cisne" e $11 de "Tonya" -, esse foi financiado de modo mais difícil, com a própria Margot e o roteirista entrando com dinheiro para sua realização. Então é entendível a discrepância dos efeitos especiais, uma das técnicas mais caras de pós-produção. Dá para dar um desconto.
E o último elemento da cartilha de cinebiografias preenchido com competência por "Eu, Tonya" é a reconstituição dos fatos mais famosos. A última competição da protagonista, quando ela tem problemas com um dos patins, é refeita com alguns detalhes tão iguais que parecem apenas os momentos reais colocados no meio da ficção, como a narração dos jornalistas - algo repetido na cena do ataque contra Nancy. Os movimentos de Margot (e da dublê) copiam os de Tonya para tanto gerar a lembrança de quem conhece o caso quanto para elevar o nível da produção ao demonstrar preocupação pela dramatização.
Mas é evidente, o palco é inteiro de Robbie. A atriz brilha sem aparente esforço, e exala profundidades de uma personagem tão difícil, na melhor atuação de sua curta carreira. Abusada de todas as formas pela mãe e o marido, a personalidade bruta e seca de Tonya é mais que justificada quando ela mesma fala "A violência sempre foi tudo o que eu conheci", o que gera a melhor cena que-não-aconteceu-exatamente-na-vida-real, quando ela explode com uma jurada. É assustador pensar que se trata de fatos, de ver como alguém realmente passou por toda aquela violência doméstica e de como sua vida foi permanentemente abalada pelos mesmos autores.
Por se tratar de uma cinebiografia, "Eu, Tonya" acaba podado em termos de originalidade, preenchendo a tal cartilha que inevitavelmente deve ser marcada para o sucesso de seu formato. Todavia, a obra não se limita a dar o básico, nadando num mar de criatividade nos aspectos que possuam flexibilidade para fugir do óbvio e entregar um produto que se destaque. Carregado com uma épica luta de braço de Margot Robbie e Allison Janney, "Eu, Tonya" é um retrato irônico e violentamente emocionante sobre a criação de ídolos e como a verdade é um volátil porto-seguro que pode significar nada para você.
"Eles só queria alguém para amar e odiar". Tonya Harding era esse alguém perfeito.
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