Na minha crítica de "Me Chame Pelo Seu Nome" eu aponto que estamos vivendo um grande momento para o cinema LGBT, com a indústria cada vez mais criando filmes com a temática e aceitando-os entre a fatia mainstream. Os críticos internacionais estão deitando para tais obras: pelo terceiro ano seguido temos filmes LGBTs entre os mais aclamado do ano no Metacritic: "Carol" em 2015, "Moonlight: Sob a Luz do Luar" em 2016 e "Uma Mulher Fantástica" em 2017, feito inédito na história. Jamais tivemos um filme lésbico, gay e trans - respectivamente - entre os melhores dos melhores. E todos os três são absolutas pérolas da Sétima Arte e com suas aclamações mais que merecidas.
"Uma Mulher Fantástica" (Una Mujer Fantastica) possui um grande diferencial dos outros dois filmes: sua protagonista, Daniela Vega, é uma mulher trans - Cate Blanchett, Rooney Mara e Trevante Rhodes, protagonistas de "Carol" e "Moonlight", não são homossexuais. Há muito a discussão sobre representatividade e atores héteros interpretando personagens LGBT - Felicity Huffman em "Transamérica" e Jared Leto em "Clube de Compras Dallas" são outros bons exemplos (se você se questionar "e o Eddy Redmaine em 'A Garota Dinamarquesa'?", foque que falei "bons exemplos"), e essa é uma discussão necessária, porém, quando bem feito, desenvolvendo o assunto de forma competente, o filme não merece ser diminuído por isso. A mensagem é mais importante que a sexualidade/identidade de gênero do ator.
Porém "Uma Mulher Fantástica" não passa por essa discussão ao trazer a revelação Vega, em seu primeiro papel. Ela vive Marina, uma mulher trans feliz com seu namorado, Orlando (Francisco Reyes), um homem cis. O casal leva uma vida normal, com o cara jantando com a namorada no aniversário dela, voltando para casa, fazendo sexo e tudo mais. Nada de diferente de um casal cis-hétero, e aqui temos uma representação bem correta do amor trans.
Orlando, 30 anos mais velho que a namorada, não possui o menor problema com a transsexualidade de Marina (e deveria possuir?), e o filme mostra o relacionamento por meio de lentes naturalistas e contemplativas. A cena de sexo dos dois é feita de maneira terna, sem fetichismos para a plateia, sem soar como se o corpo de Marina estivesse ali para a curiosidade mórbida do público. É uma construção como a de Elio e Oliver em "Me Chame", feita sem grandes exclusividades pela fuga do padrão.
Só que o namorado subitamente morre, o que vai trazer à superfície uma realidade opressora que Marina tentava evitar. Logo no hospital, ao dizer seu nome social, o médico pergunta se aquilo era um "apelido". A áurea de desconforto escorre pela tela, com o médico pisando em ovos ao perguntar se ela era parceira do falecido, como se isso fosse uma vergonha a ser revelada em sussurros. Com a chegada da polícia a coisa piora: o policial se recusa a chamar Marina pelo nome social e se refere à ela sempre no masculino. "Meu nome é Marina Vidal", ela reforça, em vão.
O público tem ciência dos acontecimentos, mas, para os médicos e a polícia, a morte de Orlando não foi apenas um evento natural. Enquanto Marina o levava ao hospital, o homem cai da escada. Os machucados são provas de que aconteceu mais do que ela afirma, e a suposição é levantada não só pelos trâmites práticos, mas porque a mulher é uma transexual. Essa população ainda está com a reputação plantada com a prostituição, e a cena da morte de Orlando parece, para as autoridades, um caso de agressão.
Nada é realmente dito, todavia, a atmosfera construída pelo filme grita tais preconceitos. Uma detetive da divisa de crimes sexuais não é tão sutil: já chega perguntando se Orlando pagava Marina e detalhes da intimidade do casal. O que poderia ser apenas procedimento padrão sai da boca da mulher como ataque velado, como se ela não acreditasse na palavra de Marina e quisesse arrancar uma confissão de prostituição. E essa é a realidade de uma pessoa trans, encurralada ao não poder contar com os órgãos de regimento da sociedade: até eles negam sua existência.
Mas nada disso chega perto do pior obstáculo que a protagonista terá que enfrentar: a família de Orlando. Desde o raivoso filho, que culpa Marina pela morte do pai, até a ex mulher, que carrega uma ofensa por ter sido "trocada" por uma "aberração". A mulher aqui é, talvez, o pior tipo de intolerante: aquele que vomita preconceito "educado". "Me desculpe se isso soar rude, mas eu acho o relacionamento de vocês uma perversão. Quando olho para você, eu vejo uma quimera", ela fala cheia de boas maneiras para Marina. E é assim mesmo que a protagonista é vista: como um animal disforme, incongruente.
Uma das principais reclamações em relação ao filme é a maneira como Marina lida com todos esses ataques: ela faz nada. Fica estampado em seu rosto o quanto tudo aquilo a machuca, no entanto ela prefere não comprar briga. É de se esperar que o público deseje que ela rode a baiana e dê um ataque - eu esperei ansioso que ela pulasse no pescoço da tal ex-mulher -, mas a realidade da protagonista é bem diferente da nossa. Dá para entender o motivo de ela não descer na porrada: ela quer evitar maiores problemas. Uma pessoa trans indo à delegacia após bater em uma pessoa (cis) vai acabar sobrando para quem?
A frustração não-diegética da plateia, sufocada por se tornar cúmplice passivo de tais agressões psicológicas, é reflexo do sofrimento de Marina: estamos presos diante de uma realidade que não conseguimos interferir, amarrados numa camisa de força. Tudo é revoltante, e nos vermos nessa posição impotente torna a mensagem do filme ainda mais forte. A protagonista é um espécime estranho que o corpo social quer eliminar a todo momento. Ela, claro, luta pela sobrevivência, metaforizada na cena em que anda numa rua e um vendaval tenta pará-la: Marina está nadando contra a maré.
A mulher é negada do ato de se despedir do namorado ao ser proibida de ir ao velório do falecido. Ela não é socialmente permitida nem de passar pelo próprio luto, entretanto não desiste tão fácil assim e vai procurar meios para burlar a ordem restrita da ex-mulher de não ir ao velório para não perturbar as filhas (?), o que inevitavelmente não acabará bem - momento onde a obra sai do plano psicológico para ir ao campo físico, na cena mais terrível de sua duração.
Uma sequência primordial aqui é o momento em que Marina deve passar pelo exame de corpo e delito. Denunciando o nosso despreparo para lidar com a transexualidade, o médico a fazer o exame não sabe como deve chamá-la, no masculino ou feminino. E o exame em si é gritantemente desconfortável, quando a mulher é obrigada a se despir para fotos na frente de estranhos. É uma violação elementar de Marina, a exposição da propriedade máxima que é o corpo.
O longa foi o selecionado do Chile ao Oscar 2018, garantindo a segunda indicação de país na categoria "Melhor Filme Estrangeiro" ("No" foi indicado em 2013), sendo o primeiro filme de ficção protagonizado por uma atriz trans a ser indicado ao Oscar, quebra necessária de uma barreira - algo que o magnífico "Tangerine" não conseguiu em 2015. Notável também pontuar que, também esse ano, o doc "Strong Island", do diretor trans Yance Ford, recebeu indicação a "Melhor Documentário". Vega, que se entrega de carne e osso ao papel, foi cotada ao Oscar de "Melhor Atriz" e, mesmo não conseguindo a indicação, entrega um triunfo ao dar verdade absoluta à obra. Os maiores rivais da película na premiação são os igualmente brilhantes "Sem Amor" (da Rússia) e "A Arte da Discórdia" (da Suécia) e, caso vença, será o primeiro com temática trans a levar o Oscar para casa.
"Uma Mulher Fantástica" é um filme revoltante e que não só vai como deve gerar indignação, porém altamente urgente ao tramar um enredo que expõe transfobia, ódio e ignorância de maneiras tão diversas - e se "Moonlight" é um representante absoluto sobre o ser negro e gay, aqui temos o panteão da realidade trans no cinema, arte que deve ser usada para escancarar os problemas na interação humana, não apenas entreter. Marina luta dia após dia pelo direito de ser quem é, e imagine o quão exaustivo é ter que entrar em batalhas constantes para ser respeitado enquanto ser humano. O título aqui é um daqueles spoilers que ficamos gratos em receber, e nossa protagonista é muito mais que fantástica. É complexa. Forte. E, acima de tudo, mulher.
Uma das principais reclamações em relação ao filme é a maneira como Marina lida com todos esses ataques: ela faz nada. Fica estampado em seu rosto o quanto tudo aquilo a machuca, no entanto ela prefere não comprar briga. É de se esperar que o público deseje que ela rode a baiana e dê um ataque - eu esperei ansioso que ela pulasse no pescoço da tal ex-mulher -, mas a realidade da protagonista é bem diferente da nossa. Dá para entender o motivo de ela não descer na porrada: ela quer evitar maiores problemas. Uma pessoa trans indo à delegacia após bater em uma pessoa (cis) vai acabar sobrando para quem?
A frustração não-diegética da plateia, sufocada por se tornar cúmplice passivo de tais agressões psicológicas, é reflexo do sofrimento de Marina: estamos presos diante de uma realidade que não conseguimos interferir, amarrados numa camisa de força. Tudo é revoltante, e nos vermos nessa posição impotente torna a mensagem do filme ainda mais forte. A protagonista é um espécime estranho que o corpo social quer eliminar a todo momento. Ela, claro, luta pela sobrevivência, metaforizada na cena em que anda numa rua e um vendaval tenta pará-la: Marina está nadando contra a maré.
A mulher é negada do ato de se despedir do namorado ao ser proibida de ir ao velório do falecido. Ela não é socialmente permitida nem de passar pelo próprio luto, entretanto não desiste tão fácil assim e vai procurar meios para burlar a ordem restrita da ex-mulher de não ir ao velório para não perturbar as filhas (?), o que inevitavelmente não acabará bem - momento onde a obra sai do plano psicológico para ir ao campo físico, na cena mais terrível de sua duração.
Uma sequência primordial aqui é o momento em que Marina deve passar pelo exame de corpo e delito. Denunciando o nosso despreparo para lidar com a transexualidade, o médico a fazer o exame não sabe como deve chamá-la, no masculino ou feminino. E o exame em si é gritantemente desconfortável, quando a mulher é obrigada a se despir para fotos na frente de estranhos. É uma violação elementar de Marina, a exposição da propriedade máxima que é o corpo.
O longa foi o selecionado do Chile ao Oscar 2018, garantindo a segunda indicação de país na categoria "Melhor Filme Estrangeiro" ("No" foi indicado em 2013), sendo o primeiro filme de ficção protagonizado por uma atriz trans a ser indicado ao Oscar, quebra necessária de uma barreira - algo que o magnífico "Tangerine" não conseguiu em 2015. Notável também pontuar que, também esse ano, o doc "Strong Island", do diretor trans Yance Ford, recebeu indicação a "Melhor Documentário". Vega, que se entrega de carne e osso ao papel, foi cotada ao Oscar de "Melhor Atriz" e, mesmo não conseguindo a indicação, entrega um triunfo ao dar verdade absoluta à obra. Os maiores rivais da película na premiação são os igualmente brilhantes "Sem Amor" (da Rússia) e "A Arte da Discórdia" (da Suécia) e, caso vença, será o primeiro com temática trans a levar o Oscar para casa.
"Uma Mulher Fantástica" é um filme revoltante e que não só vai como deve gerar indignação, porém altamente urgente ao tramar um enredo que expõe transfobia, ódio e ignorância de maneiras tão diversas - e se "Moonlight" é um representante absoluto sobre o ser negro e gay, aqui temos o panteão da realidade trans no cinema, arte que deve ser usada para escancarar os problemas na interação humana, não apenas entreter. Marina luta dia após dia pelo direito de ser quem é, e imagine o quão exaustivo é ter que entrar em batalhas constantes para ser respeitado enquanto ser humano. O título aqui é um daqueles spoilers que ficamos gratos em receber, e nossa protagonista é muito mais que fantástica. É complexa. Forte. E, acima de tudo, mulher.
Nenhum comentário
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.