Desde que “Guerra Ao Terror” levou o Oscar de “Melhor Filme” em 2009, surgiu na premiação uma cota definitiva para filmes de guerra no estilo nesse século, seguido, quatro anos depois, por “A Hora Mais Escura” (2012). O que esses filmes têm em comum? Além de serem dirigidos pela mesma pessoa, Kathryn Bigelow (única mulher a vencer o Oscar de “Melhor Direção” pelo primeiro), os dois tratam da supremacia dos Estados Unidos nas guerras contemporâneas, sempre com enfoque no Oriente Médio. O último filme a percorrer esse território e chegar ao Oscar foi “Sniper Americano” (American Sniper), que segue a mesma cartilha sem tirar nem por.
“Sniper Americano” é dirigido pelo badaladíssimo Clint Eastwood, diretor duas vezes vencedor do Oscar (por “Os Imperdoáveis” em 1993 e “Menina de Ouro” em 2005). Queridinho da Academia, o coroa de 87 anos larga seus famosos faroestes pelo chumbo-grosso militar, mas diferenciando-se de Bigelow num ponto interessante: ele traz um estudo de personagem do protagonista Chris Kyle (interpretado por Bradley Cooper), tudo baseado na história real do atirador.
Logo nos primeiros minutos de filme somos enviados à infância e juventude de Kyle, e notamos que desde sempre ele é naturalizado em questão da violência. Seu pai o levava para caçar e, mecanicamente, o ensinava a ovacionar a arma, além de criar os filhos sob a curta rédea do machismo. São nuances que sustentarão as motivações futuras do protagonista, que, mesmo sendo mostradas de forma escancarada, ajudarão a dar peso a mentalidade do personagem.
Eastwood quis, assim como (quase) todos os filmes bélicos, trazer uma mensagem anti-guerra, vindo com a ideia de mostrar os danos que a violência orquestra, com foco para aqueles que retornam do conflito, principalmente em Kyle, porém, “Sniper Americano” bate de cara no primeiro muro: deita-se num patriotismo exacerbado. É só olhar para título, que poderia facilmente ser “O Sniper” ou “O Atirador”, mas não, ele não é só um atirador. Sua função vem carregada por uma adjetivo para qualificar e diferenciá-lo: ele é americano. É uma característica que merece ser destacada, e não um mero detalhe. Obviamente, a bandeira azul, branca e vermelha inunda quase que o filme em sua totalidade.
Kyle, o sniper real, matou mais de 150 pessoas em suas operações. Cento e cinquenta. Incontáveis vezes durante a projeção ele é chamado de "lenda", "mito", "herói" (pelos compadres americanos, claro). A repetição é tanta que praticamente se torna um processo de ufanismo – quanto mais você repetir algo, mais “verdade” aquilo se torna, mais concreto. Aqui vemos uma alarmante inversão do papel do herói: agora ele não luta em prol de vidas, ele as tira - o fraco "Até o Último Homem" pelo menos fez um bom trabalho ao dar o rótulo de "herói" para alguém que mereça. Mas, de acordo com a ideologia impregnada pelos personagens, ele é um herói por tirar as vidas “certas”.
Há o argumento de defesa que o filme não idolatra o sujeito por matar muitos, ele retrata a idolatria, uma guerra como ela é. Mesmo tendo fundo de verdade, isso não se encaixa perfeitamente no filme porque ele não demonstra sinal algum de “julgamento”. Os árabes são repetidamente chamados de “malditos selvagens”, então poderíamos dizer que não são “todos” os árabes, só os “terroristas”? Não, pois há nenhum símbolo, signo ou estratégia narrativa que demonstre essa separação. Ao apenas mostrar sem “tomar partido”, o filme generaliza e dá vez e voz à uma ideologia, reforçando-a.
Explicando melhor: ao fazer uma abordagem escancarada da fobia contra o islamismo, o filme fomenta um óbvio negativo ao invés do óbvio positivo, que é a real intenção dele, no caso, a de mostrar que na guerra não há vencedores, todos são vítimas. Esse viés existe sim, porém é soterrado pelas enormes cenas de combates, o que diminui pesadamente sua boa vontade e dá (muita) corda para tais deficiências.
Os chavões inquietantes também se mostram em determinadas escolhas de montagem, como por exemplo: logo no início há uma cena mostrando os atentados de 11 de setembro, e imediatamente em seguida há um corte para Kyle na guerra, criando um link de "culpa". Ele assiste aterrorizado ao atentado na televisão e logo em seguida é mostrado em combate, como se estivesse se "vingando".
Mas, incrivelmente, no meio de toda a polêmica no recheio do filme, houve algo que conseguiu atrair a atenção do público: o bebê dos protagonistas. Em uma cena, onde o casal passa por uma discussão de relação, todos os olhares caíram em cima da criança, ou, para ser mais exato, do boneco assustador e artificial que Cooper tem que carregar (e ninar). A passagem é embaraçosa e bizarra, e rendeu toneladas de memes nas redes sociais pela falta de noção em usar algo tão falso - Renesmee bebê em "A Saga Crepúsculo: Amanhecer - Parte 2" (2012) encontrou seu irmão.
Uma das maiores armadilhas do filme é a competência de Eastwood, que conduz tudo com firmeza, derrapando em poucos momentos – como na cena clímax do filme, feita à base de um slow motion tenebroso. Bradley Cooper, em sua terceira indicação ao Oscar seguida (e a primeira merecida – as anteriores foram em “O Lado Bom da Vida” em 2013 e “Trapaça” em 2014), está muito bem como o protagonista, e possui bela química com Sienna Miller, que interpreta sua esposa, fazendo com que o todo se torne bem feito, com tais problemas já citados assimilados de forma mais “agradável” e “suave”, principalmente para o público-alvo: americanos, afinal, é um filme americano sobre a supremacia americana numa premiação americana.
Esse paradoxo acontece também em outro filme famoso: “O Nascimento de Uma Nação”. D.W. Griffith, um dos revolucionários da linguagem cinematográfica, lançou em 1915 esse filminho de três horas entupido de mensagem racista. Por um lado, há o avanço técnico primoroso e uma narrativa pioneira, mas por outro o teor deplorável. É essa a hora de pegar sua balança interior e ponderar os prós e contras – a mesma situação com “Sniper Americano”, uma faca de dois gumes onde você vai se cortar de qualquer forma.
“Sniper Americano” pode até não é um filme de fato preconceituoso (seu diretor afirma veemente que não é), mas acaba por fomentar ideais que, em mãos erradas, tornam-se uma verdadeira arma de disseminação de ódio, já que cada um pode escolher o lado do prisma que lhe convém, e tudo isso lançado em tempos do atentado na Charlie Hebdo, o que cai com peso maior ainda. Fechar os olhos para essa situação é incômodo e preocupante.
O filme teve um lançamento massivo, tornando-se um absoluto sucesso: foram $547 milhões em bilheteria, sendo a maior arrecadação de 2014 nos EUA, a maior cifra de um filme de guerra na história (sem o ajuste inflacionário) e o maior sucesso comercial de Clint Eastwood. Com o impacto no público de forma tão forte, comentários cheios de ódio inflamaram as redes sociais na época do lançamento. “'Sniper Americano' me deu vontade de atirar num maldito árabe”, dizia uma postagem. Outro contava “É ótimo assistir a um filme onde os árabes são interpretados da forma que realmente são: vermes com a intenção de nos destruir”. “O filme me fez gostar 100X mais dos soldados e odiar 1000000X mais os muçulmanos”, dizia mais um.
Mas a “culpa” por uma interpretação “ruim” é do espectador, e não do realizador do filme, certo? É só pensarmos numa situação onde colocamos uma arma na mão de uma pessoa: ele pode desde botá-la de lado ou até mesmo atirar em alguém. A responsabilidade não é diretamente daquele que colocou arma na mão, e sim de quem puxou o gatilho, mas dar o meio é ajudar os fins. É o mesmo com “Sniper Americano”.
E é triste notar que um filme assim é ovacionado – e mais uma vez legitimado – na maior premiação do mundo, o Oscar, com seis indicações (ganhando “Melhor Edição de Som”), enquanto "Selma: Uma Luta Pela Igualdade", que mostra a luta de Martin Luther King contra o racismo, recebeu míseras duas - "Melhor Filme" e "Melhor Canção". Isso não fala muito sobre ideologias. Grita. Berra.
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