Atenção: a crítica contém spoilers e alto teor de material radioativo.
Vou contar para você uma história que aconteceu comigo. Estava em um domingo preguiçoso num dos shoppings da minha cidade. Nesse shopping havia, à época, um cinema bastante sucateado, que resistia com sessões dubladas de filmes há muito batidos nos principais cinemas. Porém, no domingo em questão, havia uma fila gigantesca em sua porta, uma cena que eu jamais tinha visto na vida.
Aquele cinema era a última opção de uma diversão do domingo, então o que levara aquele contingente que nem nos dias áureos havia aparecido por ali? Me aproximei para descobrir e a resposta era: uma sessão do filme "Deus Não Está Morto" (God's Not Dead), logo ali, naquele cinema. Lá em 2014, quando esse evento aconteceu, já tinha visto um burburinho sobre a obra pela internet, que vinha causando um tsunami de comentários negativos por parte da crítica. Decidi arriscar após ver a sinopse.
Jeffrey Radisson, um professor de Filosofia (Kevin Sorbo), inicia o semestre dizendo que em sua aula a existência de deus não é permitida e obriga a todos os alunos escreverem "Deus está morto" em um papel ("Na minha sala tem só um deus, e sou eu"), iniciando uma briga com Josh (Shane Harper), um aluno cristão ("Sinto que deus quer alguém para defendê-lo"), que se recusa a fazer o que o professor pede. Jeffrey decide então traçar um "duelo" de argumentos com o garoto, deixando o resto da sala como juri, a fim de decidirem se de fato deus está ou não morto.
Tudo isso soa patético, eu sei. Porém dali poderia render discussões interessantes - e realmente queria saber onde esse "duelo" iria parar - apesar de o título já entregar o final, um spoiler óbvio. Deixando de lado qualquer parcialidade ideológica, logo de cara o filme mostra a que veio. O roteiros constrói todos os seus personagens, repito, todos, mais uma vez, todos os personagens de forma que os façam seguir os rumos de Josh, o aluno "advogado" de deus.
O professor é ateu, arrogante, prepotente, cruel e maniqueísta. Sua fórmula de ensino é um absurdo (um professor universitário de Filosofia querer abranger toda a matéria com base no ateísmo e obrigar a todos a aceitarem ou caírem fora é ridículo). Todas as pessoas ao seu redor são católicas reprimidas por sua superioridade ateia. Já Josh é bondoso, complacente, corajoso, líder a ser seguido. Prefere terminar com a namorada a deixar deus sem um defensor na aula (?). Mesmo com todos os percalços, sendo inclusive ameaçado pelo professor, ele não desiste, porque sabe que o altíssimo está ao seu lado.
O filme também tece núcleos coadjuvantes que previsivelmente chegarão a um mesmo lugar, como o empresário rico e perverso (e ateu), a repórter ambiciosa e odiosa (e ateia), a filha batalhadora com uma mãe enferma (e cristã), a jovem reprimida pelo pai (e cristã), etc. A trama se divide nisso: ateus são malvados, cristãos são bondosos (e subjugados pelos ateus malvados), em um binarismo "preto e branco" gritante - não há espaço para sutilezas, a mensagem deve ser introduzida garganta abaixo da forma mais mastigada possível.
Então começa o embate entre o professor e o aluno - sem esquecermos que tudo começa graças ao "Deus está morto" escrito na primeira aula, uma atividade absolutamente desnecessária, afinal, qual a necessidade disso? É cômica a forma como os alunos seguem as ordens do professor sem titubear, menos Josh, claro, que deve convencer sobre a existência de deus base da lábia. Os argumentos usados por ele ou são destruídos pelo professor (que pateticamente se incomoda em demasia com um calouro de universidade) ou furados por si só, como a máxima "Como você pode odiar deus se você diz que ele não existe?".
Ora, existem pessoas que amam unicórnios, e, prepare-se para o choque, unicórnios não existem. Há uma infinidade de coisas, lugares e pessoas que "não existem" e geram os mais diversos sentimentos nos seres humanos, criaturas curiosas que são capazes de tecer emoções a partir do que tais inexistentes coisas representam para eles - e amá-las ou odiá-las não as fazem existir. O tal argumento do brilhante aluno é um pilar concreto para a comprovação da existência de deus, todavia um professor de Filosofia, que cita os mais diversos filósofos e pensadores da história, não foi capaz de pensar em um mísero contra-argumento, porque perante tamanha verdade divina do aluno, não houve resposta.
Querendo soar crítico e filosófico, "Deus Não Está Morto" não abre mão das jogadas mais apelativas e sem sentido possíveis com várias frases de efeito, quando, por exemplo, Josh fala absurdos como "A Ciência apoia a existência de deus" e "Sem deus não há nenhuma razão para ser moral". Não é nem preciso estar no patamar acadêmico do professor para imediatamente pensarmos em inúmeros contra-argumentos para tais baboseiras - a ligação "deus" e "moralidade" rende livros. É interessante - e alarmante - a maneira como tanto o professor quanto os outros alunos são massa de manobra que o longa tenta (e consegue) emular a partir da alienação da plateia. Parece que não existe pensamento crítico na cabeça de ninguém além da de Josh.
"Deus Não Está Morto" se utiliza do cinema da forma mais podre possível ao lançá-lo como tribunal forjado entre a existência ou não da tal divindade, algo ridículo por si só. Toda a trama da película cai por terra quando percebemos o elementar: cada pessoa acredita no que quiser e discutir sobre isso, o ato puro de "acreditar", leva ninguém a lugar nenhum. Mas lógico, a obra não está aqui para realmente gerar um debate relevante sobre o tema, e sim ser uma propaganda parcialíssima e ufanista pró-cristianismo. É só notar a quantidade de vezes que a frase "Deus é bom" é repetida durante a projeção sem grande propósito - como quando ele - sim, deus - faz o motor de um carro voltar a funcionar. Oh, glória!
E a picaretagem não para por aí. Segundo "Deus Não Está Morto", toda crença além do cristianismo é algo ruim e deve ser "consertada", não importa se você acredita em outra religião ou em absolutamente nada. Orientais e muçulmanos no filme são literalmente convertidos pois o deus certo é o deus cristão, desrespeito cultural/religioso sem precedentes. O final escolhido para professor é a cereja do bolo: ele é atropelado e morto (!) depois de "perder" o debate com Josh, mas sem antes ser convertido por um reverendo (!) no meio da chuva (para criar um climão ainda maior). Só assim ele pôde morrer em paz - e com o lugar no paraíso garantido - enquanto todos os teístas vibram, cantam e pulam em um show gospel. Não há amor como o amor do povo de deus.
O que poderia, e deveria, ser uma discussão edificante sobre os mistérios da fé e seus impactos nos seres humanos serviu só e somente só para ludibriar, nesse filme oco em conteúdo, mas recheado de prepotência odiosa. Um dos argumentos bastante vistos em "defesa" da obra é que ela é uma "resposta" para repressão por partes dos ateus. Claro, a minoria está "oprimindo" a esmagadora maioria. A produção caminha sobre uma auto-indulgência tremenda, como se fosse um grito em meio ao silêncio esmagador deferido pelo ateísmo, um sopro de esperança para aqueles poucos que ainda acreditam nos preceitos do deus católico. Mais fantasioso que todos os "Harry Potter" juntos, aparentemente.
Agora façamos um breve exercício mental. Imaginemos um filme onde brancos são retratados da forma que os cristãos da discorrida produção e os negros da forma dos ateus/outras religiões. Ou héteros e gays, respectivamente. Iria gerar revolta generalizada. E o que essas premissas diferem de "Deus Não Está Morto"? Nada. É alarmante notarmos como filmes assim são bancados e como há pessoas favoráveis a consumir e, pior, aprová-lo.
Agora façamos um breve exercício mental. Imaginemos um filme onde brancos são retratados da forma que os cristãos da discorrida produção e os negros da forma dos ateus/outras religiões. Ou héteros e gays, respectivamente. Iria gerar revolta generalizada. E o que essas premissas diferem de "Deus Não Está Morto"? Nada. É alarmante notarmos como filmes assim são bancados e como há pessoas favoráveis a consumir e, pior, aprová-lo.
"Deus Não Está Morto" é um produto que encontrou seu público, parcela ávida para se ver representada no cinema, o que em tese é bastante válido. Os nichos mercadológicos fazem parte da arte que é o Cinema, arte essa que visa o lucro. Assim como a música gospel é tão forte não só nos EUA - o disco mais vendidos de todos os tempos no Brasil é "Músicas para Louvar o Senhor" do Padre Marcelo Rossi - "Deus Não Está Morto" foi uma amostra do poder da religião na Sétima Arte, com sua bilheteria arrecadando mais de 32X o valor gasto na produção. A propaganda está cada vez mais requintada, contudo, no caso em questão, maquiada para esconder seu ódio. "Deus Não Está Morto" não é o pior filme já feito por ser uma produção cristã, e sim por ser uma propaganda de intolerância e manipulação.
Eu sou ávido defensor da subjetividade que engloba o Cinema. A esmagadora maioria dos filmes são passíveis de opinião, gostar ou não deles depende de você, da sua bagagem cultural, do seu conhecimento adquirido. Todavia, há casos específicos que extrapolam a cerquinha da subjetividade e são existencialmente ruins graças ao conteúdo - "Deus Não Está Morto" encontra-se aqui. Todo o recheio é tão desastroso que dá até pra esquecer de comentar como a parte técnica também é péssima: fotografia feia, trilha sonora horrorosa, montagem nível "Malhação" e por aí vai. Não existe uma só qualidade a ser retirada da película.
Sem perceber, "Deus Não Está Morto" é exatamente igual ao professor: arrogante, intolerante, insuportável, odioso e, acima de tudo, burro. Graças a deus (pausa) é um marco e exemplo atemporal de massacre da crítica, que não foi enganada por esse material asqueroso que deve eternamente servir de exemplo de como não propagar uma ideologia e, principalmente, como não se fazer um filme. Deus deve estar morto. De vergonha.
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