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Crítica: "Eu Não Sou um Homem Fácil" garante reflexão sobre igualdade de gênero, mesmo se limitando

Original Netflix nos leva a um mundo governado pelas mulheres. O que disse machista???
Damien (Vincent Elbaz) é um homem que carrega todos os arquétipos do patriarcado: machista, assediador, joga cantadas em qualquer ser humano do gênero feminino que encontra pela frente e é louvado pelos outros machos da espécie pelo alto índice de "pegações" que possui. Damien é o rei de sua selva. Porém, após um acidente, ele acorda num mundo virado às avessas: são as mulheres que mandam e desmandam. Ele vai então provar do universo matriarcal enquanto, claro, aprende uma coisa ou duas.

"Eu Não Sou um Homem Fácil", de Éléonore Pourriat, é uma das novidades da Netflix - e um dos poucos filmes em francês do catálogo original. A obra, derivada de um curta da diretora, não é de difícil conexão, gerando déjà vu rapidamente ao esbarrarmos na premissa. O Cinema já explorou diversas vezes o macete de trocar os personagens de lugar ou situação para que uma epifania moral ou social aterrisse em suas cabeças: desde "Sorte no Amor" (2006) até o nacional "Se Eu Fosse Você" (2006), esse sub-sub-gênero quase sempre, também, abraça a comédia como gênero base.


Das comédias pastelão das matinês da tevê até os legítimos nomes da Sessão da Tarde, esses filmes visam, além de entreter, inserir as mesmas epifanias dos personagens na cabeça do público, o que geralmente é bem vindo. "Homem Fácil" não foge à essa regra. É escancarado o seu objetivo: criticar o patriarcado, o machismo e a misoginia. Resumindo, a desigualdade de gênero.

O que observei em muitos comentários sobre a obra foi a maneira que ela é absorvida a partir do parâmetro de língua. Por ser em francês, o filme automaticamente ganha um status mais "cult" - ou menos "pipoca", como queira. Se fosse exatamente o mesmo roteiro, porém em inglês e com um George Clooney e uma Sandra Bullock como protagonistas, o todo seria degustado de maneira diferente - e eu não estou isento a esse fenômeno. É curioso notarmos esse efeito, como se o nível de acesso da língua ditasse também a percepção do todo - um filme em croata?, uau, que culto. Mas lá na Croácia, os diferentões somos nós falando português. Pequena pontuação cultural que vale a pena ser levantada, voltemos ao filme.


A própria maneira que leva Damien para o "mundo invertido" é um traço de comédia absoluto: ele, ao se distrair com uma mulher na rua, bate com a cabeça num poste, desmaiando. A placa no dito poste, que antes exibia o nome masculino da rua, vira feminino quando o protagonista reacorda. E lá os homens dão dois beijinhos ao encontrar outras pessoas, usam roupas curtíssimas e são "paquerados" pelas mulheres, estas dirigindo carrões luxuosos e sendo as chefes das empresas. Abro um parênteses válido aqui: o filme se limita a mostrar homens heterossexuais nos poucos personagens desenvolvidos para retirar a ideia de "trejeitos" com homossexualidade. Mesmo "afeminados", eles são héteros, uma discussão mais abrangente sobre expressão de gênero, uma construção.

Sutileza não é o forte de "Homem Fácil", já deu para perceber. As situações são as mais gritantes possíveis para a obra não ter dúvidas de que a plateia entenderá o que ela quer dizer, com exceção de pequenos momentos, quando por exemplo, num jogo de poker, a carta mais importante não é o rei, e sim a rainha (!). Esses detalhes diminutos são muito mais eficientes e inteligentes que os mais escancarados, além de dar beleza ao roteiro.


Ao mesmo tempo em que as situações são gritantes, há algumas perdas de oportunidades. Os estudos sobre o gênero humano são vastos e complexos, e um dos principais artefatos de padronização de gênero é o vestuário. A produção poderia ter colocado os extremos: homens de vestidos, salto, maquiagem e afins. Enquanto as mulheres nesse mundo invertido usam ternos, os homens usam roupas masculinas, porém curtas, e possuem trejeitos femininos. A mensagem da construção de gênero não é tão efetiva pelas escolhas curtas do longa, talvez por medo de levar a mensagem longe demais e afastar o público.

Curiosamente, um viés inesperado é que Damien, ao mesmo tempo em que odeia ser subjugado socialmente, ama a libertação sexual feminina. São elas que se gabam da farta quantidade de machos que "pegam", e ele está mais que disposto a entrar para a conta. O homem sempre encontra uma forma de se beneficiar, não importa em qual universo. Porém, seus pelos, comuns aqui, são abomináveis do lado de lá, e uma mulher se nega a transar com ele por causa dos fios, uma crítica certeira para a idealização do corpo feminino: liso.

Outra inversão dos valores bastante simples e criativa é a maneira como os mamilos são vistos de acordo com o gênero. Os mamilos femininos são expostos com louvor, enquanto os masculinos são, até mesmo após o banho, enrolados com a toalha - da maneira como as mulheres do nosso mundo fazem. E as propagandas são com homens desnudos em poses sexualizadas, para satisfazer o apetite feminino.


É então que os homens se reúnem para criar grupos "masculinistas", reivindicando o direito de igualdade entre os gêneros e protestando com mamilos de plástico, o símbolo mor do poder feminino - ao mesmo tempo em que são hostilizados pelas mulheres, que gritam "Vocês não têm uma cozinha para limpar?". No meio de tudo isso, nosso protagonista se apaixona por Alexandra (Marie-Sophie Ferdane), famosa escritora que decide usar o cara como inspiração para seu próximo romance. Porém ela é a mais picareta possível, usando Damien afetiva e sexualmente apenas para escrever sobre esse estranho homem masculinista que, ao mesmo tempo, ama a dominação feminina. Como a boa Sessão da Tarde que a obra é, isso gerará as maiores encrencas.

A produção encontra o Olimpo, mesmo rasamente, quando expõe que o gênero é uma construção imposta. Achamos que todas as características ditas "masculinas" e "femininas" são detalhes inerentes do nascimento humano - de acordo com sua genitália -, entretanto, nossa existência é muito mais complexa que essas caixinhas para rotularmos uns aos outros. Toda essa discussão não consegue encontrar alta voz durante a película, sendo um produto de raciocínio extraído de fontes anteriores. O roteiro de Pourriat e Ariane Fert, no intuito de comercializar o filme, acaba cedendo à superficialidade em nome de um maior alcance de ingressos - ou, já que estamos falando de Netflix, maior número de streamings.

"Eu Não Sou um Homem Fácil" não é lá uma sessão tão memorável, terminando mais como uma reflexiva, porém limitada obra. Seus convencionalismos, didatismos gritantes e críticas fáceis são superadas pela enorme boa vontade de fazer o espectador pensar em como seria o oposto desse nosso espelho. Fazer com que os homens experimentem o que as mulheres passam diariamente - opressão, subjugação, objetificação, silenciamento, sexualização e etc - é cinematograficamente importante. Caso não abraçasse tanto a comédia e fosse um trabalho que se levasse mais a sério, sem dúvidas teria chances de figurar entre os melhores do ano ao mostrar que não importa qual gênero esteja no topo da pirâmide, de qualquer forma a desigualdade prejudicará o corpo social. Apenas uma realidade igualitária será benéfica e, assim, ajudará a essa espécie tão louca a viver de forma melhor.

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