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Crítica: "Os Iniciados" e as garras da homofobia que aprisionam e sufocam por meio de tradições

Com lançamento cancelado devido à manifestações homofóbicas, o filme é valioso como cinema, como retrato cultural e como obra LGBT
Assim como qualquer subgênero da Sétima Arte, o cinema LGBT cria seus próprios clichês. Como há um montante bem maior de filmes sobre a homossexualidade masculina, seus lugares-comuns são ainda mais evidentes. Você já deve ter cansado desses exemplares dignos da Sessão da Tarde com tragédias, HIV, finais fúnebres e aquela história água-com-açúcar sobre autoaceitação.

Não que esses temas não precisem mais serem discutidos, porém já foram explanados dentro de um mesmo molde à exaustão, e precisam de elementos muito marcantes para deixarem de ser só "mais um". Por isso sempre fico tão entusiasmado quando encontro um filme LGBT que trata dos dramas comuns dessa população com uma trama diferente. Foi o caso de "Os Iniciados" (Inxeba/The Wound).


A película segue os passos de Xolani (Nakhane Touré), um mentor no ritual de iniciação dos garotos daquela cultura, conhecido na África do Sul como "Ulwaluko". Ele aceita assegurar o sucesso do ritual de Kwanda (Niza Jay Ncoyini), um garoto homossexual que é forçado pelo pai a enfrentar a tradição para enfim se tornar "homem" (heteronormativamente falando). O que ninguém sabe é que Xolani só aceita a tarefa para voltar ao acampamento do ritual e reencontrar Vija (Bongile Mantsai), outro mentor e seu amante.

"Os Iniciados" foi o selecionado da África do Sul para concorrer ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro" na edição de 2018, ficando entre os semifinalistas - mas deveria ter sido indicado, afinal é bem melhor que alguns dos finalistas. Logo de cara, na conversa entre o pai de Kwanda e Xolani, somos direcionados às ideologias que percorreremos ao longo da fita: o homem diz que o filho é muito "fraco" por ter sido mimado pela mãe, traços gritantes do patriarcado. Ser gay é ser associado à fraqueza, como um homem que deu errado; e, claro, a culpa disso é da mãe, não do pai.


Rapidamente entramos nos rituais, explorados na tela com vastidão de detalhes. Superando um traço Discovery Channel, somos apresentados aos ritos daquela cultura e vemos que os mesmos seguem passos bem cruéis. Tendo como principal prática a circuncisão, sem anestesia e na frente de todo mundo, os garotos devem gritar "Eu sou um homem!" durante o processo. Chorar é algo impensável naquele momento. A ferida do procedimento é o símbolo principal da masculinidade, e é o que manterá os garotos ali, sendo oficialmente homens quando o ferimento cicatrizar - por isso o nome original do filme, "A Ferida", em tradução literal. Os agora chamados "iniciados" ficam sobre os cuidados dos mentores, que são responsáveis pelos ensinamentos e a cicatrização do corte.

Nesse meio tempo, Xolani dá suas escapadas para encontrar Vija. Ambos representam papéis sociais bem distintos. Xolani é tímido, retraído, resguardado. Sua orientação sexual o prendeu dentro de si próprio, criando uma armadura para se proteger de quaisquer ameaças. Já Vija é o macho alfa. Musculoso e viril, ele percorreu o caminho de manter um casamento de fachada para legitimar sua pose heterossexual. Entre os amigos, eles dizem não ver a hora de sair do acampamento só com homens e aproveitar dos prazeres dos órgãos sexuais femininos - não com essas doces palavras, é claro.


Os dois só conseguem se despir de todas as máscaras que há anos constroem quando estão juntos sozinhos: a áurea de rejeição de aproximação que reside em Xolani e toda a dureza do típico macho de Vija são esquecidos nos reencontros, havendo bastante ternura entre eles. Enquanto Xolani ainda nutre uma esperança de que o relacionamento possa se alongar além do curto espaço de tempo dos rituais, Vija está decido a continuar com a esposa, o que parte o coração do nosso protagonista. E, em meio a isso, há Kwanda, também homossexual, que representa um terceiro viés dessa realidade: o gay homofóbico.

Se na nossa sociedade brasileira encontramos inúmeros gays que demonstram ódio pela própria condição, imagine entre aqueles que fazem o Ulwaluko. Mesmo a África do Sul sendo o país mais desenvolvido do continente, o filme se passa na zona rural do país, interior mesmo, em que os costumes machistas são solidificadores de caráter. Kwanda vê Xolani dormindo nu ao lado de Vija e ameaça contar a todos o caso, ao invés de ficar minimamente feliz por ter pessoas que compartilham de sua realidade.

O que não é de causar espanto, mediante todo esse tratamento sobre a homossexualidade, o longa foi recebido no país com enormes críticas, vendo manifestações contra seu lançamento. Chamado de "culturalmente insensível" por mostrar os rituais "secretos", a mídia internacional logo abraçou o filme, citando outras obras do país que exibiam o Ulwaluko e não receberam o mesmo bloqueio. A questão aqui era óbvia: o filme foi mal recebido não pelos rituais na tela, e sim por trazer a homossexualidade.


A homofobia deixou de se maquiar quando sessões tiveram que ser canceladas pelo país após os atores serem ameaçados de morte (!) por terem participado da produção, sendo forçados a se manterem escondidos pelo nível de vandalismo e violência ao redor do lançamento. O filme então foi reclassificado com "X18", o que seria um nível acima do nosso "Proibido para menores de 18 anos", já que o rótulo é reservado para obras que contenham pornografia hardcore, o que passa longe do conteúdo de "Os Iniciados".

De uma forma bem irônica, toda a confusão ao redor do filme só comprovou sua importância. Mesmo se passando num contexto que a extrema maioria das pessoas pelo mundo não irá se identificar, "Os Iniciados" retrata de forma irretocável como o machismo sufoca, o patriarcado ataca e nossa cultura homofóbica silencia. Interessante notar que, juntamente com a obra-prima "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017), a produção se torna um conjunto perfeito sobre os males das tradições, com "Iniciados" trazendo os ritos masculinos e "Feiticeira" os femininos.
 
Um dos melhores e mais relevantes retratos da masculinidade tóxica que o cinema já viu, "Os Iniciados" é obra primordial para citarmos nossos próprios privilégios ao passo que notamos: vivemos num corpo social que permite liberdades das amarras do patriarcado em vários níveis, enquanto no centro do interior africano não há escapatória. Esse "Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016) versão africana se diferencia da fatia gay no cinema ao trazer grande e valioso reforço cultural para compor suas situações, encurralando seus personagens, encarcerados em tradições tóxicas que oprimem e rendem discussões fortes, cruas e poderosas no ecrã.

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