É um fato bem elementar, mas, diante nossa configuração atual, até esquecemos: o Cinema nasceu com o documentário. As primeiras filmagens realizadas eram sobre o que estava ao redor, desde a saída de empregados de uma fábrica ou um trem chegando à estação. Com a ficção, os cineastas catapultavam nossa realidade para lugares fantásticos e situações impossíveis, a fim de transformar a Sétima Arte na arte maior da imaginação.
Com os estudos sobre o poder do Cinema, teóricos encontraram a importância social dos filmes. Se você acompanha o Cinematofagia, já deve está cansado de ler eu falando que um filme não é apenas um entretenimento de uma hora e meia que se esvai quando os créditos aparecem. Muito mais que livros e escolas, os filmes são modeladores de comportamentos, pensamentos, ideologias. Discurso gratuito não tem espaço aqui.
Tendo isso em mente, o longa que venho por meio deste dissertar acerca é "The Tale", original da HBO. Dirigido por Jennifer Fox, a obra é a dramatização de sua própria vida, mais especificamente os eventos que circundaram os abusos sexuais sofridos por ela durante a infância. Já adulta - e interpretada pela maravilhosa Laura Dern -, ela deve confrontar o próprio passado, que até o presente, ainda interfere em sua personalidade e em sua vida.
"The Tale" era um dos nomes mais esperados por mim neste ano pelo combo fabuloso: protagonista competente, tema altamente relevante e aclamação crítica fora do normal. Atualmente possui nota 9.1 no Rotten Tomatos e 90 no Metacritic, sendo o segundo filme melhor avaliado de 2018 até agora no site. Feitos incríveis, não tinha como dar errado. Né?
Particularmente, sou automaticamente direcionado a fitas que exploram temas complexos. Um dramão croata sobre incesto? Um honesto alemão falando de aborto? Sim, por favor! A questão comigo não habita em concordar ou não com o tema exposto, e sim em me abrir para a película, que poderá questionar todos os meus preceitos e, quem sabe, me fazer mudar de ideia sobre um ponto ou dois. Cinema, pra mim, é ferramenta de confronto sobre o que considero verdade, é catapulta para me tirar da zona de conforto. Não é por acaso que filmes com temas tabus e difíceis são quase sempre os meus favoritos.
Então "The Tale" cai como uma luva nessa minha predileção: uma produção sobre pedofilia. Sabemos que a pedofilia é um problema real, cruel e atemporal, existindo desde que o mundo é mundo. Há exemplos notórios que abordam esse conteúdo pela história da Sétima Arte, como "Lolita" (1962), "Má Educação" (2004) e "Ninfomaníaca: Volume 2" (2013). A escassez de produções que falem abertamente sobre isso é demonstração perfeita do quanto ainda temos dificuldade em por as verdades na mesa, e precisamos mudar isso.
A estrutura narrativa de "The Tale" intercala os momentos diegeticamente atuais, por meio da Jennifer adulta, com sua versão de 13 anos - interpretada por Isabelle Nélisse. O que poderia ser uma esperta artimanha para conduzir o filme apresenta-se confusa e desnecessariamente enrolada: demorei um pouco para entrar nos acontecimentos pelo vai e vem sem uma estrutura coesa. A primeira parte de "The Tale" é enfadonha e sem promessas de alguma decolagem, que, felizmente, se prova errônea quando entramos em seu cerne.
Fox encapsulou toda a força de seu roteiro na costura de sua relação com Bill (Jason Ritter), um dos seus treinadores de hipismo. É fabuloso (cinematograficamente falando) - e alarmante - a maneira que a diretora escreve o jogo psicológico proferido por Bill, num passo a passo homeopático para capturar o afeto de Jennifer, conquistando-a aos poucos com manipulações básicas, desde dizer que ela é especial até voltá-la contra os pais, fazendo com que ela passe cada vez menos tempo em casa e mais com ele.
Com a crescente relação entre os dois - soa horrível chamar aquilo de "relação", mas aceite a palavra não no sentido romântico ou emocional -, o desconforto exala da tela. Fox é corajosa em níveis louváveis ao escancarar os planos de um pedófilo para conseguir sua preza - há uma conversa no sofá abominável, quando Bill pede para Jennifer tirar a blusa. A doçura repugnante em suas palavras, que uma criança é incapaz de processar da maneira correta, impregna o público.
Quando achamos que o ponto alto do circo de horrores está por vir, o filme dá uma caída quando temos a bizarra cena de sexo entre Jennifer e o treinador. Como a atriz é menor de idade, ela obviamente não participou da encenação, sendo substituída por uma dublê. Qualquer produção responsável faria o mesmo, entretanto, fica gritante que a sequência inteira é com outra pessoa. A montagem, que poderia criar toda a ilusão, é editada de maneira precária, mostrando quadros que aniquilam qualquer dúvida de que ali não é Isabelle Nélisse.
Durante o momento me lembrei da mais famosa cena da história, a do banheiro em "Psicose" (1960). Em momento nenhum vemos a faca entrando no corpo da vítima, porém, por meio da brilhante montagem, toda a sensação do assassinato é conduzida da tela para o público. A magia do Cinema, de iludir a plateia, reside aqui, e em "The Tale" foi morta.
Com exceção dessa construção das artimanhas psicológicas de um predador sexual, há nada de especial em "The Tale", nada que uma produção com o nível básico de competência não fizesse igual. Dern, recém vencedora do Emmy pela série "Big Little Lies", está correta durante a fita, mas sem brilho para pensarmos "eu não consigo imaginar outra atriz nesse papel". Sua atuação entrega o que pedimos com certa limitação, sem nunca deixar queixos caídos para trás. O elenco coadjuvante sofre da mesma limitação, principalmente Nélisse, que não é uma revelação mirim para sustentar a carga emocional elevadíssima de uma garota sendo enganada sexual e afetivamente por um homem.
"The Tale" é o primeiro trabalho de ficção de Jennifer Fox, que trabalhou a vida inteira com documentários, e esse fato está a todo segundo na tela. O longa jamais vai até onde poderia ir em basicamente todos os aspectos ao se apropriar da ficção para coser sua história, principalmente no âmbito da emoção. Uma sessão que deveria ser devastadora como "Miss Violência" (2013), que trata de pedofilia, ou "Irreversível" (2002), que trata de estupro, é didático demais para atingir o ponto certeiro que um tema tão pesado pede. E pontuo: o ato de devastar é fundamental para a assimilação correta de quem está diante do ecrã; haver meios-termos num filme sobre pedofilia enfraquece a si mesmo. Caso fosse abertamente um documentário - ou mais voltado para o docudrama -, o todo certamente seria bem mais impactante.
É límpido que a intenção da diretora é das mais puras que existem. Expulsar seus demônios particulares pelas lentes do Cinema é bem-vindo e necessário, afinal, tais dramas particulares são reflexos de dramas coletivos. Levando em conta o momento atual da indústria cinematográfica, regada com reivindicações femininas contra abusos masculinos, é ainda melhor. Porém, isso cria um efeito curioso que podemos ver em tantos outros nomes.
Para as pessoas, o que faz um bom filme é a mensagem que ele quer passar, e não filme em si, o que é bem limitador. Por ser uma película sobre uma mulher enfrentando os traumas causados pelos abusos que sofreu na infância, "The Tale" irremediavelmente desenvolve um escudo impenetrável contra críticas negativas, e vi esse efeito diante dos meus olhos. Por não fazer parte do clube que venera a obra, li comentários direcionados a mim sobre como minha opinião não é válida por estarmos falando do cenário "homem branco que quer dar pitaco sobre uma mulher que falou da sua própria história". Vamos sentar e entender.
Filme nenhum - e estou limitando a discussão na roda do Cinema - possui uma força sobrenatural que o proteja de críticas. Nenhum, não importa o quão bem intencionado ele seja. A mensagem de "The Tale" é importante em tantas esferas que merece por si só um artigo sobre, no entanto, só a mensagem não faz um bom filme. E, sendo tão didático quanto o próprio, criticar "The Tale" não quer dizer que estou criticando a vida e a história de Jennifer Fox, e sim o filme, a obra, o produto. Se abaixarmos a cabeça para essa máxima que protege qualquer mercadoria pelo seu conteúdo, não há mais sentido para a própria arte. Não estou dando "pitaco" sobre uma mulher que falou da sua própria história, estou analisando um filme. A voz de Fox em momento algum é silenciada por mim, que fique claro para quem faltou as aulas de interpretação de texto. De nada.
"The Tale", no frigir dos ovos, tem sua mensagem como foco de poder, e não sua realização, sendo muito mais utilidade pública contra a pedofilia do que cinema. Suas pontuais discussões textuais e visuais imprescindíveis não são combustíveis suficientes para alçar a obra a um patamar de elevada arte. Mesmo sem jamais estampar uma etiqueta de "filme ruim", pela coragem não apenas de falar sobre as armadilhas da pedofilia como por ser uma história real, "The Tale" perde a enorme oportunidade de ficar ao lado de atemporais películas com temas iguais ou tão difíceis quanto, que não medem esforços para devastar o espectador - algo que "The Tale" não faz. A mensagem é exemplar, o filme, contudo, não tanto.
Tendo isso em mente, o longa que venho por meio deste dissertar acerca é "The Tale", original da HBO. Dirigido por Jennifer Fox, a obra é a dramatização de sua própria vida, mais especificamente os eventos que circundaram os abusos sexuais sofridos por ela durante a infância. Já adulta - e interpretada pela maravilhosa Laura Dern -, ela deve confrontar o próprio passado, que até o presente, ainda interfere em sua personalidade e em sua vida.
"The Tale" era um dos nomes mais esperados por mim neste ano pelo combo fabuloso: protagonista competente, tema altamente relevante e aclamação crítica fora do normal. Atualmente possui nota 9.1 no Rotten Tomatos e 90 no Metacritic, sendo o segundo filme melhor avaliado de 2018 até agora no site. Feitos incríveis, não tinha como dar errado. Né?
Particularmente, sou automaticamente direcionado a fitas que exploram temas complexos. Um dramão croata sobre incesto? Um honesto alemão falando de aborto? Sim, por favor! A questão comigo não habita em concordar ou não com o tema exposto, e sim em me abrir para a película, que poderá questionar todos os meus preceitos e, quem sabe, me fazer mudar de ideia sobre um ponto ou dois. Cinema, pra mim, é ferramenta de confronto sobre o que considero verdade, é catapulta para me tirar da zona de conforto. Não é por acaso que filmes com temas tabus e difíceis são quase sempre os meus favoritos.
Então "The Tale" cai como uma luva nessa minha predileção: uma produção sobre pedofilia. Sabemos que a pedofilia é um problema real, cruel e atemporal, existindo desde que o mundo é mundo. Há exemplos notórios que abordam esse conteúdo pela história da Sétima Arte, como "Lolita" (1962), "Má Educação" (2004) e "Ninfomaníaca: Volume 2" (2013). A escassez de produções que falem abertamente sobre isso é demonstração perfeita do quanto ainda temos dificuldade em por as verdades na mesa, e precisamos mudar isso.
A estrutura narrativa de "The Tale" intercala os momentos diegeticamente atuais, por meio da Jennifer adulta, com sua versão de 13 anos - interpretada por Isabelle Nélisse. O que poderia ser uma esperta artimanha para conduzir o filme apresenta-se confusa e desnecessariamente enrolada: demorei um pouco para entrar nos acontecimentos pelo vai e vem sem uma estrutura coesa. A primeira parte de "The Tale" é enfadonha e sem promessas de alguma decolagem, que, felizmente, se prova errônea quando entramos em seu cerne.
Fox encapsulou toda a força de seu roteiro na costura de sua relação com Bill (Jason Ritter), um dos seus treinadores de hipismo. É fabuloso (cinematograficamente falando) - e alarmante - a maneira que a diretora escreve o jogo psicológico proferido por Bill, num passo a passo homeopático para capturar o afeto de Jennifer, conquistando-a aos poucos com manipulações básicas, desde dizer que ela é especial até voltá-la contra os pais, fazendo com que ela passe cada vez menos tempo em casa e mais com ele.
Com a crescente relação entre os dois - soa horrível chamar aquilo de "relação", mas aceite a palavra não no sentido romântico ou emocional -, o desconforto exala da tela. Fox é corajosa em níveis louváveis ao escancarar os planos de um pedófilo para conseguir sua preza - há uma conversa no sofá abominável, quando Bill pede para Jennifer tirar a blusa. A doçura repugnante em suas palavras, que uma criança é incapaz de processar da maneira correta, impregna o público.
Quando achamos que o ponto alto do circo de horrores está por vir, o filme dá uma caída quando temos a bizarra cena de sexo entre Jennifer e o treinador. Como a atriz é menor de idade, ela obviamente não participou da encenação, sendo substituída por uma dublê. Qualquer produção responsável faria o mesmo, entretanto, fica gritante que a sequência inteira é com outra pessoa. A montagem, que poderia criar toda a ilusão, é editada de maneira precária, mostrando quadros que aniquilam qualquer dúvida de que ali não é Isabelle Nélisse.
Durante o momento me lembrei da mais famosa cena da história, a do banheiro em "Psicose" (1960). Em momento nenhum vemos a faca entrando no corpo da vítima, porém, por meio da brilhante montagem, toda a sensação do assassinato é conduzida da tela para o público. A magia do Cinema, de iludir a plateia, reside aqui, e em "The Tale" foi morta.
Com exceção dessa construção das artimanhas psicológicas de um predador sexual, há nada de especial em "The Tale", nada que uma produção com o nível básico de competência não fizesse igual. Dern, recém vencedora do Emmy pela série "Big Little Lies", está correta durante a fita, mas sem brilho para pensarmos "eu não consigo imaginar outra atriz nesse papel". Sua atuação entrega o que pedimos com certa limitação, sem nunca deixar queixos caídos para trás. O elenco coadjuvante sofre da mesma limitação, principalmente Nélisse, que não é uma revelação mirim para sustentar a carga emocional elevadíssima de uma garota sendo enganada sexual e afetivamente por um homem.
"The Tale" é o primeiro trabalho de ficção de Jennifer Fox, que trabalhou a vida inteira com documentários, e esse fato está a todo segundo na tela. O longa jamais vai até onde poderia ir em basicamente todos os aspectos ao se apropriar da ficção para coser sua história, principalmente no âmbito da emoção. Uma sessão que deveria ser devastadora como "Miss Violência" (2013), que trata de pedofilia, ou "Irreversível" (2002), que trata de estupro, é didático demais para atingir o ponto certeiro que um tema tão pesado pede. E pontuo: o ato de devastar é fundamental para a assimilação correta de quem está diante do ecrã; haver meios-termos num filme sobre pedofilia enfraquece a si mesmo. Caso fosse abertamente um documentário - ou mais voltado para o docudrama -, o todo certamente seria bem mais impactante.
É límpido que a intenção da diretora é das mais puras que existem. Expulsar seus demônios particulares pelas lentes do Cinema é bem-vindo e necessário, afinal, tais dramas particulares são reflexos de dramas coletivos. Levando em conta o momento atual da indústria cinematográfica, regada com reivindicações femininas contra abusos masculinos, é ainda melhor. Porém, isso cria um efeito curioso que podemos ver em tantos outros nomes.
Para as pessoas, o que faz um bom filme é a mensagem que ele quer passar, e não filme em si, o que é bem limitador. Por ser uma película sobre uma mulher enfrentando os traumas causados pelos abusos que sofreu na infância, "The Tale" irremediavelmente desenvolve um escudo impenetrável contra críticas negativas, e vi esse efeito diante dos meus olhos. Por não fazer parte do clube que venera a obra, li comentários direcionados a mim sobre como minha opinião não é válida por estarmos falando do cenário "homem branco que quer dar pitaco sobre uma mulher que falou da sua própria história". Vamos sentar e entender.
Filme nenhum - e estou limitando a discussão na roda do Cinema - possui uma força sobrenatural que o proteja de críticas. Nenhum, não importa o quão bem intencionado ele seja. A mensagem de "The Tale" é importante em tantas esferas que merece por si só um artigo sobre, no entanto, só a mensagem não faz um bom filme. E, sendo tão didático quanto o próprio, criticar "The Tale" não quer dizer que estou criticando a vida e a história de Jennifer Fox, e sim o filme, a obra, o produto. Se abaixarmos a cabeça para essa máxima que protege qualquer mercadoria pelo seu conteúdo, não há mais sentido para a própria arte. Não estou dando "pitaco" sobre uma mulher que falou da sua própria história, estou analisando um filme. A voz de Fox em momento algum é silenciada por mim, que fique claro para quem faltou as aulas de interpretação de texto. De nada.
"The Tale", no frigir dos ovos, tem sua mensagem como foco de poder, e não sua realização, sendo muito mais utilidade pública contra a pedofilia do que cinema. Suas pontuais discussões textuais e visuais imprescindíveis não são combustíveis suficientes para alçar a obra a um patamar de elevada arte. Mesmo sem jamais estampar uma etiqueta de "filme ruim", pela coragem não apenas de falar sobre as armadilhas da pedofilia como por ser uma história real, "The Tale" perde a enorme oportunidade de ficar ao lado de atemporais películas com temas iguais ou tão difíceis quanto, que não medem esforços para devastar o espectador - algo que "The Tale" não faz. A mensagem é exemplar, o filme, contudo, não tanto.
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