Em uma roda de amigos, há um tempo atrás, alguns comentavam sobre um livro que eu não conhecia: "Todo Dia", de David Levithan. Precisou de pouca descrição sobre o conteúdo para eu me interessar: "A" é um espírito (ou fantasma, ou reencarnação, ou qualquer nome que você queira dar para a entidade) que todo dia acorda num corpo diferente (e todos possuem um iPhone). Elx não sabe como esse processo funciona, nem quem é realmente, nem para aonde vai. Suas únicas certezas são: elx vai para um corpo diferente à meia-noite; esse corpo, seja masculino ou feminino, deverá estar na mesma área geográfica em que o último corpo estiver; e o corpo deverá ter uma idade aproximada da idade de "A" - no caso, por volta de 16 anos.
Já fiquei ansioso para por as mãos no livro, até saber que uma adaptação cinematográfica estava em andamento. Adiei a leitura já que, como já falei aqui no Cinematofagia inúmeras vezes, dou prioridade para o material audiovisual, afinal, é com ele que eu trabalho. Recém chegado nos cinemas brasileiros, a produção foi dirigida por Michael Sucsy e tem como foco óptico as andanças de Rhiannon (Angourie Rice), uma garota que namora Justin (Justice Smith). O melhor dia do relacionamento deles é exatamente o dia em que A está no corpo de Justin (sem Rihannon saber, claro), e "A" acaba se atraindo pela menina.
"Todo Dia" é, em sua essência, um romance adolescente como qualquer outro; o que o faz ganhar destaque é toda a mitologia por trás de "A". Numa pesquisada rápida, vi que o livro tem "A" como enfoque, ao contrário do filme, que foca em Rihannon, o que provavelmente deve ter sido a primeira decisão de adaptação para transpor as páginas para a tela: como tecer uma narrativa cinematográfica com um personagem que é alguém diferente todo dia?
O filme de Sucsy não é uma obra experimental ou que possa se dar ao luxo de ser "cult": com um orçamento de quase $5 milhões e com um público alvo teen, tudo é abertamente comercial, com o intuito de atingir o maior público possível, o que de cara cerceia as estratégias de narrativa. Rihannon era o enfoque mais seguro para carregar o filme, afinal, é difícil gerar afeição na plateia por alguém que possui diversos rostos entre a duração (mais de 10 são mostrados) - ao contrário de Rihannon. É latente como essa escolha foi correta: os vários atores que interpretam "A" não criam uma ideia de conjunto, de mesma "pessoa". Se é "A" que controla o corpo no momento, é sua personalidade que domina, o que a direção não consegue captar. Os diferentes atores se expressam, se movem e conversam sem similaridades.
Por isso, ao invés dos conflitos internos de "A", o prato principal são os conflitos de Rihannon com sua família e, claro, seu relacionamento com "A". Ao longos dos anos em que vaga de corpo em corpo, a entidade definiu uma regra que jamais interferirá diretamente na vida da pessoa dentro das 24h e, consequentemente, não deixará uma "marca". Ele entra no corpo, vive um dia mais normal praticável, e sai deixando as menores diferenças possíveis. A pessoa só sofrerá de uma amnésia acerca do dia em que "A" esteve sob comando, mas, fora isso, tudo como era antes. Só que Rihannon, inesperadamente, deixa uma marca em "A", seja pela franqueza sobre suas próprias vulnerabilidades, seja pela maneira que Justin a trata, como um objeto de segunda mão que nunca será a prioridade.
A entidade então assume o objetivo de tentar fazer com que a protagonista perceba o óbvio: Justin é uma pedra no sapato. Mesmo ferindo sua principal regra - a de não interferir -, elx se apegou à garota e deseja fazer algo de bom para alguém que merece. Então elx decide fazer algo inédito: contar para Rihannon quem realmente é. Lógico que a garota vai achar que é uma piada ou que a pessoa que está na sua frente - um corpo que ela desconhece - é uma completa lunática, todavia, "A" tem detalhes que Rihannon compartilhou enquanto elx estava no corpo de Justin que são provas a favor de "A". Mas acreditar naquele absurdo é difícil ("Você pode ser um mentiroso ridiculamente bem preparado").
Se por um lado Rihannon é completamente trouxa em relação a Justin, o roteiro divertidamente a coloca numa posição de total ciência em relação a "A". Você acreditaria naquela história mesmo com as mais diversas comprovações de sua veracidade? Numa sagaz cena, "A" pede para conversar em particular com Rihannon, que responde: "Bem, se você fosse uma pequenina líder de torcida, mas não sei se você percebeu, você hoje é um cara enorme e assustador, então absolutamente não". Garotas, mantenham-se seguras.
É cristalino como a intenção da película é ser um romance sem grandes pretensões, aliando o coming-of-age com ficção científica e fantasia. Mesmo o prisma menos profundo sendo o carro-chefe da obra - o que vemos no primeiro plano é Rihannon se afeiçoando ao "A" -, a premissa demonstra diversas discussões bem interessantes a partir da construção mitológica do espírito.
"A" acaba sendo enquadrado nos rótulos de "gênero fluido", "bissexual" e "pansexual" por se sentir confortável tanto dentro de meninas e meninos, sentindo-se atraído por ambos sexos e gêneros. O roteiro dá uma viajada pelas diversas formas humanas, com o espírito em corpos masculinos e femininos, brancos e negros, cis e trans, etc. Fica bem previsível saber que a protagonista loira vai terminar com alguém igualmente branco, no entanto, a diversidade é explorada de forma satisfatória a trazer os mais diferentes moldes de "A".
A principal questão que levantei durante a exibição foi: será possível se apaixonar por uma personalidade, aquém de um corpo? Com o crescimento da relação, Rihannon não liga para o corpo que "A" ocupa no dia, saindo - e beijando - garotos e garotas, afinal, é o que está dentro que a conquistou. Isso, no plano real, seria algo possível? Mesmo sendo impossível afirmar, o longa abre um leque de questionamentos no que tange as noções que temos da nossa própria natureza. Gênero é uma imposição social, sabemos, e o que nos atrai, o que achamos belo ou não, é moldado pela cultura, o que sustentaria o argumento de "Todo Dia".
E, por sermos uma progressão construída diariamente, somos criaturas geradas a partir disso. Somos contínuos até o momento que morremos, o que faz com que nossas dores e alegrias sejam, também, progressivas. Mas o que acontece quando você não sofre dessa progressão? "A", por todo dia ser alguém diferente, não sofre desse efeito. Seus problemas duram, literalmente, 24h, até que ele pule para o próximo e receba problemas diferentes. Sua única preocupação é em se passar fielmente ao corpo em que se encontra e não causar um dano sério - não fica explícito, mas acho que se o corpo morrer enquanto "A" está dentro dele, ele também morre. Inúmeras questões e pressões que sentimos na pele não atingem "A" - ele não precisa de estudo, emprego, família, amigos e tudo mais. Soa libertador não ter que administrar tudo isso.
Caso você já tenha visto a nota que dei para "Todo Dia" - 2½ estrelas -, pode soar incompatível com tantos elogios que fiz aqui nos últimos parágrafos. O motivo é simples: o foco do filme não são essas discussões que explanei, e sim, como já comentei, o romance. Apesar de fomentar tais apontamentos só por existir, o filme parece não ter ciência do poder que possui em mãos, deixando esse aparato de lado. O espectador comum não vai tecer tais ideias - tive que tirar leite de pedra do roteiro que tanto se limita.
É cristalino como a intenção da película é ser um romance sem grandes pretensões, aliando o coming-of-age com ficção científica e fantasia. Mesmo o prisma menos profundo sendo o carro-chefe da obra - o que vemos no primeiro plano é Rihannon se afeiçoando ao "A" -, a premissa demonstra diversas discussões bem interessantes a partir da construção mitológica do espírito.
"A" acaba sendo enquadrado nos rótulos de "gênero fluido", "bissexual" e "pansexual" por se sentir confortável tanto dentro de meninas e meninos, sentindo-se atraído por ambos sexos e gêneros. O roteiro dá uma viajada pelas diversas formas humanas, com o espírito em corpos masculinos e femininos, brancos e negros, cis e trans, etc. Fica bem previsível saber que a protagonista loira vai terminar com alguém igualmente branco, no entanto, a diversidade é explorada de forma satisfatória a trazer os mais diferentes moldes de "A".
A principal questão que levantei durante a exibição foi: será possível se apaixonar por uma personalidade, aquém de um corpo? Com o crescimento da relação, Rihannon não liga para o corpo que "A" ocupa no dia, saindo - e beijando - garotos e garotas, afinal, é o que está dentro que a conquistou. Isso, no plano real, seria algo possível? Mesmo sendo impossível afirmar, o longa abre um leque de questionamentos no que tange as noções que temos da nossa própria natureza. Gênero é uma imposição social, sabemos, e o que nos atrai, o que achamos belo ou não, é moldado pela cultura, o que sustentaria o argumento de "Todo Dia".
E, por sermos uma progressão construída diariamente, somos criaturas geradas a partir disso. Somos contínuos até o momento que morremos, o que faz com que nossas dores e alegrias sejam, também, progressivas. Mas o que acontece quando você não sofre dessa progressão? "A", por todo dia ser alguém diferente, não sofre desse efeito. Seus problemas duram, literalmente, 24h, até que ele pule para o próximo e receba problemas diferentes. Sua única preocupação é em se passar fielmente ao corpo em que se encontra e não causar um dano sério - não fica explícito, mas acho que se o corpo morrer enquanto "A" está dentro dele, ele também morre. Inúmeras questões e pressões que sentimos na pele não atingem "A" - ele não precisa de estudo, emprego, família, amigos e tudo mais. Soa libertador não ter que administrar tudo isso.
Caso você já tenha visto a nota que dei para "Todo Dia" - 2½ estrelas -, pode soar incompatível com tantos elogios que fiz aqui nos últimos parágrafos. O motivo é simples: o foco do filme não são essas discussões que explanei, e sim, como já comentei, o romance. Apesar de fomentar tais apontamentos só por existir, o filme parece não ter ciência do poder que possui em mãos, deixando esse aparato de lado. O espectador comum não vai tecer tais ideias - tive que tirar leite de pedra do roteiro que tanto se limita.
Mesmo com toda a regularidade de execução, "Todo Dia" é um sessão válida por trazer uma mitologia tão diferente para dentro do romance, gênero tão saturado, principalmente com o enfoque adolescente. Com um final que felizmente foge do clichê boboca, a obra caminha de forma bem lúdica sobre questões de gênero, sexualidade, identidade e vários pontos inerentes à natureza humana. A falta de profundidade a fim de cativar o maior número possível de pessoas por meio da frivolidade do texto é o que retira da notoriedade, introduzindo-o na lista de desperdícios de material. Mas vale a pena essa aventura de um espírito bissexual e gênero fluido a procura do amor.
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