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Crítica: “A Casa Que Jack Construiu” mostra que, talvez, o Inferno seja aqui mesmo

O chocante (e assustadoramente hilário) filme vai a fundo nos horrores da América na era Trump
Atenção: a crítica contém spoilers.

Mais um filme de Lars Von Trier recebido com polêmica - pretends to be shocked. O dinamarquês há muito tempo provou ser um cineasta controverso ao abordar temas difíceis e filmá-los sem pudor. De "Anticristo" (2009) a "Ninfomaníaca" (2013), se não houver pessoas se levantando e indo embora durante um longa dele, há algo errado. Com seu mais novo, "A Casa Que Jack Construiu" (The House That Jack Built), não poderia ser diferente.

Já na estreia, no Festival de Cannes 2018, a controversa foi instalada - inúmeros espectadores abandonaram a sessão pelas cenas explícitas de violência. A obra segue Jack (Matt Dillon) por 12 anos, desbravando sua carreira enquanto serial killer. Dividido em cinco segmentos, cada um explora uma faceta da mente do protagonista enquanto contracena com uma de suas vítimas ou as consequências de seus atos.

Trier revelou que a história foi inspirada na ascensão de Donald Trump - ou "o rei rato", como carinhosamente define o diretor -, e como vivemos numa era que reforça a ideia que a vida é "sem alma e puramente má". Ter esse conceito em mente é fundamental para entender o que Trier quer dizer em vários momento da complexa obra. Não que Jack seja uma representação cinematográfica no novo presidente dos Estados Unidos, ele é uma evocação do que Trump representa socialmente. Nem mesmo na atualidade a fita transcorre, e sim entre a década de 70 e 80.


O fato é que Trier adora criticar a terra do Tio Sam. Com "Dogville" (2003) e "Manderlay" (2005), o cineasta expõe os moldes norte-americanos para, consequentemente, escancarar a cultura capitalista e opressora que a maior potência do mundo influi. "Dogville", uma obra-prima irretocável, foi bastante criticado nos EUA pela mensagem "anti-americana", o que era uma reação esperada.

Com o anúncio de "Casa que Jack", confesso, temi bastante pelo destino da produção. Von Trier tem uma grande leva de fãs e haters, e já foi chamado dos piores nomes possíveis (misógino, insano, grotesco, doente...). Um filme sobre a vida de um psicopata que assassina, em sua maioria, mulheres, era um risco tremendo, um passo em falso seria um festival de glamourização do feminicídio. Já posso adiantar: não estamos diante de um filme misógino. Estamos diante de um filme que aponta o dedo para a misoginia.

Sim, essa linha é tênue e aberta ao debate - alguém apontar (com argumentos) que "Casa que Jack" é misógino é uma visão válida que não deve ser silenciada. Há diversos exemplos ao longo da história do Cinema que possuem abundantes complexidades e não abraçam o didatismo, afinal, a arte não tem obrigação de ser uma aula na tela. Para dar solidez à minha afirmação, prefiro analisar a fita a partir de cada um de seus segmentos, chamados de "Incidentes".

1º Incidente

No meio de uma estrada, Jack encontra uma mulher (interpretada pela musa Uma Thurman), cujo carro está quebrado. Ela insiste em ir com o homem até uma oficina, mesmo afirmando que ele tem cara de psicopata. No tortuoso caminho, ela cria uma narrativa de como seria caso Jack a matasse e os motivos.


O primeiro segmento já instaura o tom da película, absolutamente sarcástico. Chega a ser cômico como a mulher basicamente estimula Jack a matá-la e reitera a possibilidade de estar sozinha com ele no carro. Tagarelando sem parar, Jack atende os pedidos daquela ovelha que gentilmente se deita na boca do lobo, matando-a.

É aqui que entra o problema, mas do lado de cá da tela. Enquanto lia comentários de quem assistiu ao filme, vi inúmeros na linha de "nossa, que mulher chata, eu também teria matado", enquanto outros comentavam como gargalharam gostosamente nas salas de cinema quando a mulher é assassinada.

O que esse pequenino fato tem a nos dizer? A vida feminina beira a irrelevância. Sim, é óbvio que estamos falando de uma obra de ficção, mas tais comentários são amostras do que acontece no mundo real, sempre em patrulha para justificar a morte de qualquer mulher. Ah, morreu porque procurou, não é? Ela entrou no carro do cara sozinha porque quis. Teve um déjà vu?

2º Incidente

Jack bate à porta de uma mulher (Siobhan Fallon Hogan) e diz ser um policial. De prontidão ela desconfia, no entanto, o protagonista consegue enrolá-la e entrar na casa, a última decisão da vida da mulher. A escolha da presa de Jack soa aleatória, ele simplesmente escolheu qualquer uma, mas ali surgia o codinome de Jack, "Senhor Sofisticação", enviando fotos de seus crimes para a imprensa - quase um "Zodíaco".


Alavancando ainda mais a ironia, o codinome é um absurdo quando, dentre todos os adjetivos possíveis para o "trabalho" de Jack, "sofisticação" é o último aceitável. Ele é um completo imbecil - no sentido de "falta de inteligência" mesmo -, com um sistema de matança cheio de furos - aqui ele quase não consegue matar a mulher. Jack é o serial killer mais incompetente da história do Cinema.

Na fuga da cena do crime, Jack amarra o cadáver em plástico e o arrasta pelas estradas, deixando um gigante traço de sangue que levaria qualquer policial até seu esconderijo (!). É de uma idiotice hilária. Só que uma enorme chuva acontece, lavando o rastro. Essa é a apoteose da "filhadap*tagem" do roteiro de Von Trier, que joga descaradamente um deus ex machina para ironizar como parece ter alguém lá em cima do lado de Jack, pronto para arrumar qualquer burrice que ele fizer (e são muitas).

3º Incidente

Uma mãe (Sofie Gråbøl) está namorando Jack (coitada). Ela leva os dois pequenos filhos para uma tarde no campo, onde aprenderão a atirar com o homem. O segmento mais sério da película, há simbologias escancaradas aqui. Trier entra na América atual, antro que venera armas de fogo e ensina crianças a mesma paixão.

Se não bastasse a clareza, todos os personagens estão, no momento, usando bonés vermelhos, referência ao "Make American Great Again", slogan de Trump. O caçador então vira presa, e Jack, literalmente, caça cada um deles, matando as crianças primeiro - e ele se diverte com a "brincadeira".


A cena é um resumo fiel à crise de armamento no país, com pessoas acordando num belo dia e decidindo entrar numa escola e atirar em quem aparecer pela frente. Não há humanidade além do vazio esmagador de fazer aquilo pelo poder de fazê-lo. O roteiro ainda vai à infância de Jack, que decepa a pata de um patinho e serenamente o observa se afogar.

Este determinado momento - realmente chocante - foi alvo massivo de ataques contra o filme. O PETA (famosa organização em defesa dos animais) saiu em apoio ao filme e à cena, parabenizando Trier por mostrar de forma fidedigna os traços infantis de psicopatia. Segundo eles, abusos contra animais são "sintomas" clássicos de distúrbios em crianças: "Apesar de exibição de violência gratuita possa deixar espectadores enjoados, é verdade que serial killers, como o personagem, muitas vezes começam torturando animais, fazendo com que a cena seja ainda mais realística e perturbadora". A organização, é claro, averiguou que o momento foi realizado com efeitos especiais.

4º Incidente

A única vítima de Jack a possuir nome, Jacqueline (Riley Keough) também é namorada - ou algo do tipo - do protagonista, que a chama de "Simples". É um detalhe sutil que grita a misoginia de Jack, afirmando que a mulher é burra. Ele confessa todos os crimes e pede para Jacqueline gritar por socorro. Ela grita, mas nada acontece.

Mesmo num condomínio lotado, ninguém move um dedo, e Jack grita "ninguém aqui vai te ajudar", com a fotografia abrindo o campo de visão para sermos engolidos pela indiferença social. Correndo até um policial, Jacqueline pede ajuda desesperadamente, porém, ele também se mostra inútil. No fim das contas, ela tem o mesmo fim de todas as outras. Sair com o cadáver até o carro é como sair segurando um sofá: ninguém dá a mínima, e a sequência é filmada com uma sagacidade bizarra.


O segmento não poderia ser mais óbvio: estamos cada vez mais nos importando apenas conosco e menos com o próprio vizinho. Apesar do alarde com os gritos da mulher, não houve uma só pessoa que parou o que estava fazendo para descobrir o motivo das súplicas, nem mesmo o policial. Lembrei imediatamente de uma discussão que vi nas redes sociais, comentando como mulheres devem gritar que o local está pegando fogo, pois só assim receberiam ajuda.

E, se isso não for desesperador, não sei o que é. Um incêndio move as pessoas porque pode afetar quem está ao redor. Uma mulher sendo morta? Mais um dia normal, em briga de marido e mulher ninguém mete a colher. A vida feminina vale menos que um imóvel queimado.

5º Incidente

Durante toda a narrativa, Jack conversa com Verge (Bruno Ganz), uma voz que questiona as decisões do protagonista. Esses diálogos - predominantemente fora da tela - funcionam como porta-vozes do próprio Trier. Numa auto-indulgência tremenda, que pode ser assimilada tanto positiva quanto negativamente, Jack diz que é uma mentira quem afirma que, na arte, os acontecimentos são os desejos reprimidos do autor, algo que já foi apontado sobre o Trier em pessoa diversas vezes. Ele usa o protagonista para levar sua mensagem diretamente à plateia.

Em outra parte, Verge pergunta qual o motivo de sempre serem mulheres e por que elas parecem tão destinadas a morrer. Para comprovar que não é um misógino inveterado, Jack prende vários homens de várias etnias, a fim de matá-los todos com uma só bala. O experimento serve unicamente para Jack falar "tá vendo, não odeio mulheres, eu também mato homens", uma lógica que funciona apenas em sua cabeça. Mas a polícia intercepta o galpão de Jack - já que ele fugiu em uma viatura com a sirene ligada (!) - e ele é morto. Claro, toda a sequência é construída por meio de metáforas visuais: um buraco se abre no chão, e Jack segue Verge enquanto a polícia atira e arromba o local.


Chamado de "Catábase", o último bloco da produção leva Jack para o Inferno após sua morte. Verge - uma referência a Virgil, poeta italiano que inspirou "A Divina Comédia" de Dante - é o guia de Jack nos tortuosos caminhos do sub-mundo, e ambos passeiam até o local mais fundo. O protagonista tem finalmente o que merece - a condenação eterna - e Trier nos faz passear pelo Inferno da maneira mais bela possível.

Toda a sequência extrai as imagens mais irretocáveis do ano, um esmero em efeitos visuais e design de produção de cair o queixo. Com inúmeras referências, desde "A Divina Comédia" - que relata a jornada do protagonista através do Inferno -  e o quadro "A Barca de Dante" de Eugène Delacroix, não é entregue apenas um júbilo narrativo. "A Casa que Jack Construiu" atinge a perfeição estética no recinto mais temido pela cultura religiosa, o que é, para dizer o mínimo, engraçado.

O Inferno na fita é belo, silencioso e tranquilo, enquanto o nosso mundo é o contrário, o local onde o mal habita em sua pureza. Criticando sem medo tudo o que o império de Donald Trump representa para a cultura mundial, estamos no meio da era da ignorância, da intolerância, do preconceito e da violência. Expurgamos nossos demônios sobre outras pessoas e desejamos o extermínio. "A Casa Que Jack Construiu" é um filme dificílimo, apesar do tom jocoso, com imagens e pontuações que chocam. E devem chocar. Toda a pretensão do longa - que não é pouca - é necessária para entendermos que estamos caminhando para o caos. Essa é a mensagem seminal da produção: talvez o Inferno seja aqui mesmo.

disqus, portalitpop-1

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