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Crítica: ”O Guia” é um pobre manual sobre racismo para novos habitantes do planeta Terra

"O Guia" é o que há de mais rasteiro no cinema projetado para educar brancos
Indicado a 05 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Viggo Mortensen)
- Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem

Saudações, novo habitante do terceiro planeta do Sistema Solar! É um prazer recebê-lo aqui. Não importa se você é um alienígena ou um terráqueo que acaba de vir ao mundo, sua presença é bem-vinda. Nosso planeta é um lugarzinho curioso de se viver, porém, há algumas noções que você precisa ter em mente para desenvolver uma habilidade social mais fácil.

Aqui existem cadeiras, e colheres, e caminhões, e lençóis, e cercas, e almofadas e, além de tudo isso, também existe o racismo. O que difere o racismo de todos os itens dispostos anteriormente? Ele é ruim e, apesar de você ter se instalado no nosso mundo com ele já existindo, é algo a ser repudiado. É verdade que alguém pode achar, assim como o racismo, que cercas são ruins por ter um amigo que prendeu um braço em uma, saindo machucado, mas isso é outra história.

Eu sei, é complicado entender, como vou criticar algo que já estava aqui quando surgi? Mas saiba, meu bom companheiro, independentemente da sua cor - aliens podem ser roxos? -, o racismo está impregnado e pode moldar como você é visto perante os outros. Bem louco, não? Contudo, não há motivo para desespero caso tudo isso pareça complicado demais. Existem manuais para que te faça compreender como identificar o racismo e quais mecanismos usar para driblá-lo.


Um deles é um filme recém lançado, "O Guia" (Green Book), que conta a real história de Tony Lip (Viggo Mortensen), um segurança italiano que aceita o emprego de motorista do Dr. Don Shirley (o oscarizado Mahershala Ali). A grande questão habita no fato de Don ser um musicista negro em meio aos EUA segregado, e precisa de segurança para viajar pelo sul do país, terrivelmente racista.

Pois bem, caríssimo novato terrestre, o longa tem uma mensagem muito simples: mostrar o quão ruim é o racismo. Você pode tranquilamente sentar e acompanhar as mais de 2h para ter um tutorial completo, com exemplos e discussões acerca do tema. Garanto que, após a exibição, você sairá com uma bagagem competente do tema. De nada.

Mas se você, assim como eu, já reside na Terra há mais tempo, sabe como as garras do racismo atuam. Curiosamente, mesmo com vários anos de carreira no nosso globo, eu não conhecia a história do "The Negro Motorist Green Book" (que dá o nome original da fita), um guia da década de 60 que instruía a população negra sobre quais os locais e cidades que sua presença era permitida, por mais assombroso que isso seja. Talvez seja um conhecimento corriqueiro para quem nasce nos EUA, porém, o filme faz um trabalho digno de reaver esse acontecimento e revelar o quão absurdo já fomos em termos de apartheid.


"O Guia" caminha sobre os dois pólos, Tony e Don. Entre eles, há uma inversão do arquétipo convencional: Tony é branco, mas pobre, sem estudo e vivendo de bicos, enquanto Don, negro, é culto, pianista, letrado e refinado. Quando o motorista entra no apartamento de Don pela primeira vez, o impacto entre as realidades é sem igual, resumidos pela disposição dos móveis - Tony senta numa cadeira enquanto Don senta, literalmente, num trono. A dinâmica entre o "inteligente" e o "boboca" pode ser aos avessos, contudo, é óbvia, só uma pequenina fatia da torta que é o filme como um todo.

Para nós, que contamos com vivências sobre a segregação racial, nada que a fita discorre é novidade. Mesmo se tratando de uma história real, "O Guia" tem nada para falar que nós não já saibamos - se você acabou de chegar à Terra, não me refiro a você. E o racismo, hein, nossa, que barra né, o que os negros têm que passar, acho muito errado isso aí, e acabou o filme.

Com um abuso de didatismo, a película joga váaaarias sequências para, repetidamente, martelar na cabeça de quem vê a frase que destaquei no parágrafo anterior. Os dois protagonistas passam por uma loja de ternos, entrando ao verem um modelo na vitrine. Don deseja provar um, mas é impedido pelo atendente, e por qual motivo? Pois é. Uma chatiação sem tamanho, claro.

Corta a cena. Don está no intervalo de uma apresentação e anseia usar o banheiro. O mordomo prontamente aponta o caminho para o recinto, um casebre de madeira do lado de fora, já que Don não é permitido no banheiro da casa. A pergunta que vale um milhão de reais: por que Don preferiu voltar ao hotel ao invés de usar o banheiro da criadagem? Tempo na tela.


Próxima sequência. É o último concerto da turnê, e toda a equipe janta no restaurante do local. Don é o último a chegar, e adivinhe o que acontece? Eu nem ao menos preciso continuar. Essa é a estrutura de "O Guia", uma sucessão de momentos constrangedores para Don graças ao montante de melanina em seu tecido epitelial.

E isso é algo ruim? Sim, é ruim, mas não pelo motivo mais elementar. Não é defeito um filme - ou qualquer trabalho - reforçar que o racismo é uma praga (pelo contrário), todavia, é ruim para um filme ser uma repetição de si mesmo. Com meia hora de duração já foi transmitida a mensagem inteira dos 130 minutos, com o resto se desdobrando para encontrar mais e mais momentos que gritam VEJA QUE HORROR É O RACISMO, GENTE!

Visando o Oscar, "O Guia" é mais um exemplar a discutir as diferenças sociorraciais e chegar na maior premiação do planeta, o que é sempre bom. Entretanto, é um dos nomes mais rasteiros a trazer essa discussão. Apontando somente longas a serem indicados ao prêmio de "Melhor Filme" nos últimos tempos com a mesma temática, vemos o quão pouca é a contribuição de "O Guia" ao lado deles: "12 Anos de Escravidão", "Estrelas Além do Tempo", "Um Limite Entre Nós", "Corra!", "Selma: Uma Luta Pela Igualdade" e, claro, "Moonlight: Sob a Luz do Luar". Comparar gera até pena.

O problema principal de "O Guia" é a falta de inventividade para pôr na mesa um tema que, querendo ou não, já foi discutido à exaustão e que AINDA precisa ser levantado. Toda a roupagem do filme o coloca num âmbito digno da Sessão da Tarde: importante debate, mas sem a menor ousadia, a fim de não cercear o apelo comercial - e a artimanha funciona, visto o número de honrarias que esse panfleto já conseguiu, como o Globo de Ouro, o National Board of Review e a Guilda de Produtores, o maior peso para o Oscar de "Melhor Filme". É necessário criatividade para sair da caixinha do ordinário e acrescentar, não apenas existir, e nem preciso ir longe para mostrar um exemplo.


"Infiltrado na Klan", que concorre ao lado de "O Guia", também transcorre sobre o racismo, porém, além da sagacidade incrível de Spike Lee, possui uma diferença crucial: está interessado em conversar com os negros ao invés de educar brancos, o oposto de "O Guia" - note o trajeto de Tony, que começa jogando fora os copos usados por negros em sua casa para defender Don. Que herói.

É inegável que existem momentos e diálogos acima da média no filme de Peter Farrelly - conhecido por dirigir, eeeerrrr, "Debi & Lóide" (sim), como "Inteligência não é o suficiente, é preciso coragem para mudar a cabeça das pessoas". Há uma rápida montagem com closes num presépio, mostrando o menino Jesus em toda sua branquitude e olhos azuis, a maior mentira da cultura ocidental. Além do diálogo após a delegacia, quando Don grita que não é aceito pelos brancos por ser negro, nem pelos negros por ter estudo, nem pelos homens por ser gay.

É um sutil tapa na cara do espectador que abre camadas daquela personalidade - mas ainda assim a produção não perde a oportunidade de dar um "climão" e colocar os personagens debaixo de chuva. Não dá para dar uma medalha nem mesmo às atuações: Viggo Mortensen e Mahershala Ali fazem um trabalho digno, mas nada fora de série. Ali, em principal, que parece caminhar ao segundo Oscar de "Ator Coadjuvante", parece deslocado e sob uma direção que em momento nenhum conseguiu retirar o que ele tem de melhor.

É cristalino que o racismo é um horror, todos sabemos - ou deveríamos saber -, e é esta pontuação que faz a existência de "O Guia" ser ainda necessária. A produção, contudo, não tira vantagem dessa necessidade para desenvolver um filme que discuta algo de uma forma além do que já foi posta no ecrã centenas de vezes. Assim como não era preciso reinventar a roda, não cabia aceitar tanta passividade diante do que é óbvio e rasteiro, deixando a fita no âmbito do lugar-comum, apesar de toda boa intenção. Caso você tenha o menor contato com outros seres humanos, esse manual sobre discrepâncias raciais que emula repetições acrescentará nada.

disqus, portalitpop-1

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