Minha relação com Gaspar Noé sempre foi de amor e ódio; enquanto amo a porrada que é "Irreversível" (2002), não consigo engolir "Love" (2015). Dono de um Cinema nada sutil, a filmografia do diretor é para tem quem disposição e sensibilidade, caso contrário, você não conseguirá extrair o que há de bom na feiura humana. Talvez esse ponto seja o que há de fascinante no cinema "noédiano": mostrar que existe valor no que não gostamos ver. É claro que nem todos estão aptos a depositarem as imagens do diretor em suas pupilas, o que torna o efeito de amor e ódio algo universal: a crítica sempre idolatrou ou repudiou não apenas o trabalho de Noé, mas ele próprio.
O argentino - ratificado francês - nunca teve o menor filtro para falar do que ele quisesse, e isso gerou cenas controversas: o suicídio impactante de "Sozinho Contra Todos" (1998); o aterrador estupro de "Irreversível"; a viagem alucinógena em "Enter The Void" (2009); o orgasmo real em close de "Love", e por aí vai. De forma responsável ou não, suas obras podem ser chamadas de muitas coisas, menos de "fáceis".
Sua nova jogada, com certa previsão, não foge à regra. No entanto, "Clímax" pode se auto-intitular como o longa menos polêmico de Noé. Não se engane, a fita tem NADA de acessível, contudo, apesar de lidar com temas clássicos de seu cinema, "Clímax" não está interessado na história em si. Não temos preocupações com o corpo social, ou dilemas emocionais, ou até mesmo a relação da sexualidade com o meio - uma surpresa bem-vinda.
O filme é aberto com uma série de entrevistas, trazendo vários dançarinos em audições para entrarem numa companhia de dança. A ideia é importantíssima para ajudar o espectador a saber minimamente quem é quem, afinal, são 20 personagens. Não satisfeito com o sucesso narrativo do momento, Noé compõe o quadro com vários livros e filmes, óbvias referências para seu próprio filme, que vão desde "Possessão" (1981) - homenageado em uma cena - até literatura niilista.
Com o corte temporal, viajamos até uma escola abandonada no meio de lugar nenhum, três dias após o começo dos ensaios. Para comemorar a finalização dos trabalhos antes de competirem nos EUA, a trupe realiza uma festa. O problema é que alguém colocou LSD no ponche, efeito rapidamente percebido por todos. Mas era tarde demais.
Enquanto a sanidade ainda era presente, Noé nos coloca de camarote diante de um gigante jogo de dança, cheio de vogue e Daft Punk. A elaboradíssima coreografia é capturada de maneira brilhante, com uma câmera que parece flutuar e não cede aos cortes, num longo e lindo plano-sequência. A cinematografia de Benoît Debie - que também fotografou "Enter The Void" - explora a mise-en-scène do local com uma competência gritante, elemento técnico de suma importância para o desenvolvimento da atmosfera. Assim como em "Suspiria" (2018), a dança é elemento chave para a intoxicação do público.
Então somos separados do grande grupo, focando em duplas ou trios, a fim de sermos apresentados ainda mais para os personagens - na maioria atores não profissionais. Vemos suas dualidades, seus gostos e seus problemas enquanto o efeito do álcool e das drogas vai se espalhando por suas veias. O que começa como diálogos lógicos vai se esvaindo em conversas sem sentidos - o que faz o ritmo da fita dar uma caída, com muitas discussões repetitivas e que não avançam o esperado para o tempo dedicado à elas.
O clima muda quando a primeira pessoa vai ao chão, e é aí que o filme de fato começa. Os créditos iniciais - aberrantes como sempre - só aparecem na metade da película, como se tudo o que aconteceu anteriormente fosse um prelúdio, uma introdução. A camaradagem e felicidade que unia o grupo vai embora e eles finalmente se dão conta de que alguém drogou a bebida.
O ar animalesco é imposto e eles iniciam o balé de culpar uns aos outros pelo "batismo" do ponche. Com o desnorteio, alguns personagens entram nos aposentos da escola, e as luzes ficam mais artificiais, com tons de verde e roxo, visualmente exprimindo o entorpecer de quem tomou a bebida com o LSD. A insanidade bate à porta, e os ânimos ficam elétricos.
Qualquer civilidade morre e as agressões vão aumentando, indo a alguns extremos assustadores. Enquanto a câmera gira, treme e fica de cabeça pra baixo, o mal-estar exala do ecrã, infectando quem assiste, e "Clímax" talvez tenha sido a mais desesperadora sessão que já tive na vida. Assim como o último ato de "Mãe!" (2017), o nível de pandemônio feito por Noé é agonizante, emocionalmente nocauteando a plateia.
Podemos até chamar de clichê o arco narrativo que transforma amigos em inimigos por quaisquer que sejam as pressões, no entanto, "Clímax" é um sucesso quando não foca no roteiro em si, na história, e sim na arquitetura de seu clima. Apesar de termos uma personagem central - Selva, interpretada por Sofia Boutella -, o protagonista de "Clímax" é o horror. A situação imposta e a manipulação dos sentidos são mais importantes.
Confesso que a obra me obrigou a parar por uns minutos, tamanha angústia injetada. Gritos, pedidos de socorro, pessoas se suicidando e súplicas aos berros para que os amigos matem uns aos outros, o horror de "Clímax" é real e palpável. Tudo soa ainda melhor quando percebemos que o filme é capaz de provocar um medo totalmente diferente do terror convencional, já que passa longe de entidades sobrenaturais e até mesmo psicopatas mascarados. O horror é proveniente de nós mesmos, pessoas comuns, tendo o ácido como propulsor do que há de pior dentro de nós.
"Clímax" não é uma produção recomendável, mas pelos motivos corretos. Esse é um filme que não só demanda como drena o emocional do público, tão massacrado quanto os personagens, presos em uma bolha ácida que não escolheram e nem podem escapar. E talvez seja a impotência - tanto nossa como deles - que faz "Clímax" tão bizarro. Gaspar Noé nunca pôs os dois pés no terror, apesar de sempre flertar no gênero, e dessa vez ele não apenas entrou como filmou um show de horrores inacreditável, transformando um mero filme em uma experiência sensorial. Se já houve uma festa que você pode ficar feliz em não ter sido convidado, é essa aqui. Porém, há quem prefira dançar em meio ao caos.