É um tanto irônico que "Temporada" tenha chegado na Netflix na mesma semana que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) suspendeu o repasse de verbas para o audiovisual do país. A ironia aumenta - e já vira tragédia - quando também aparece no catálogo juntamente com o anúncio das mudanças na Lei Rouanet: o teto de inventivo caiu de 60 milhões de reais para 1 milhão. Cultura no nosso novo governo é supérfluo.
E qual é o porquê dessa ironia: "Temporada", dirigido e roteirizado por André Novais Oliveira (em sua estreia com longas), é um filme que se senta no meio do Brasil atual. Juliana (Grace Passô), que mora no interior de Minas Gerais, é chamada por um concurso que já tinha esquecido que existia. Ela tem que se mudar para Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, sem tempo para grandes preparativos: ela não pode recusar o emprego e parte deixando o marido para trás, que irá até ela quando conseguisse se organizar. A mulher vira então fiscalizadora do combate à dengue pela prefeitura, e se vê engolida por uma mudança drástica demais para enfrentar sozinha.
Juliana conhece a equipe que trabalhará com ela, andando pelas ruas da cidade e entrando de casa em casa a fim de se certificar que acabará com os focos de dengue. O filme cuidadosamente exibe as construções de relações entre ela e os mais diversos colegas de trabalho, assim como o passo a passo durante o serviço. "Temporada" não perde tempo em mostrar que seu sangue é verde e amarelo na exposição da fiscalização contra a dengue.
Tem algo mais Brasil do que isso?
Claro que não é um dos objetivos principais da obra, mas todo o estudo do dia a dia operário de Juliana é um retrato da importância que nosso país vem adquirindo contra a doença. Enquanto olha os quintais, coloca areia nos vasos de planta e se certifica que as garrafas estão de cabeça para baixo, o ritual contra o Aedes aegypti já é um movimento cultural. Além disso, é precioso dar voz a um profissional quase invisível: os agentes entram e saem de nossas casas e sabemos absolutamente nada sobre eles.
Regionalizações são aspectos cinematográficos que garantem apreço por parte da plateia que compartilha daquela realidade. Em contrapartida, a mesma regionalização é um limitador ferrenho do alcance de uma película. É só lembrar de "O Auto da Compadecida" (2000), uma obra-prima do cinema nacional; todo o regionalismo tão característico é difícil de traduzir para outras culturas, e o filme não foi recebido internacionalmente com o mesmo entusiasmo. Por isso, "Temporada" emerge quando, mesmo colocando regionalismo na mesa, não aponta seu foco narrativo apenas nos aspectos particulares do seu redor.
A riqueza de diversos dos meus filmes favoritos ao redor do mundo mora no casamento do regionalismo com a universalidade de seu enredo. Nomes como "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) transmitem bem essa sensação: mesmo enterrado no interior da África e colocando na tela ritos característicos de sua área, o longa pula essa barreira e dá palco aos dramas de seus personagens, o que garante interesse em quem mora ali do lado e em quem reside no outro lado do globo. "Temporada" realiza o mesmo, já que é as dores e amores de Juliana que guiam o espectador durante as quase 2h de duração. A descoberta das diferentes e plurais culturas nesse mundo é uma das mais incríveis funções do Cinema.
Tem algo mais Brasil do que isso?
Claro que não é um dos objetivos principais da obra, mas todo o estudo do dia a dia operário de Juliana é um retrato da importância que nosso país vem adquirindo contra a doença. Enquanto olha os quintais, coloca areia nos vasos de planta e se certifica que as garrafas estão de cabeça para baixo, o ritual contra o Aedes aegypti já é um movimento cultural. Além disso, é precioso dar voz a um profissional quase invisível: os agentes entram e saem de nossas casas e sabemos absolutamente nada sobre eles.
Regionalizações são aspectos cinematográficos que garantem apreço por parte da plateia que compartilha daquela realidade. Em contrapartida, a mesma regionalização é um limitador ferrenho do alcance de uma película. É só lembrar de "O Auto da Compadecida" (2000), uma obra-prima do cinema nacional; todo o regionalismo tão característico é difícil de traduzir para outras culturas, e o filme não foi recebido internacionalmente com o mesmo entusiasmo. Por isso, "Temporada" emerge quando, mesmo colocando regionalismo na mesa, não aponta seu foco narrativo apenas nos aspectos particulares do seu redor.
A riqueza de diversos dos meus filmes favoritos ao redor do mundo mora no casamento do regionalismo com a universalidade de seu enredo. Nomes como "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) transmitem bem essa sensação: mesmo enterrado no interior da África e colocando na tela ritos característicos de sua área, o longa pula essa barreira e dá palco aos dramas de seus personagens, o que garante interesse em quem mora ali do lado e em quem reside no outro lado do globo. "Temporada" realiza o mesmo, já que é as dores e amores de Juliana que guiam o espectador durante as quase 2h de duração. A descoberta das diferentes e plurais culturas nesse mundo é uma das mais incríveis funções do Cinema.
Juliana, tímida e perdida na nova cidade, é rodeada e grandes personalidades que felizmente a acolhem com prazer, principalmente Russão (Russo Apr), o boa-praça que descobre que é pai. É bonito ver como as pessoas ali se ajudam mesmo elas próprias precisando de ajuda, fortalecendo a ideia de comunidade. E as histórias vão se emaranhando, como a chefe que terminou o casamento e mostra, radiante, a foto do novo namorado pelo WhatsApp; a colega que começa a namorar em segredo, com medo da chefe descobrir e demiti-la; e a da própria Juliana. O tempo passa e seu marido some no mundo - o que me lembrou a trama do delicioso "O Céu de Suely" (2006), quando a protagonista é largada pelo esposo no interior do Ceará.
Quando volta à cidade natal, Juliana descobre que o marido sumiu não apenas para ela: nem as pessoas do trabalho dele sabiam do seu paradeiro. As mensagens são ignorados, os áudios do "Zap" não são ouvidos, e as contas caminham para o limite. Em uma cena-chave, Juliana conta que o casamento degringolou quando sofreu um aborto acidental, uma ruptura definitiva na relação, que não conseguiu superar o ocorrido. As peças do quebra-cabeça do ordinário se encaixam e as motivações da personagem se mostram corretas. Ela deve, obrigatoriamente, se recompor e seguir em frente, sem marido e com um salário ruim.
Tem algo mais Brasil do que isso?
Muito se fala das atuações quando o assunto é filme brasileiro - um dos maiores motivos dos detratores que cunham a lógica de que nosso cinema é ruim. Poucos exemplares possuem atuações inteiramente exemplares - "Que Horas Ela Volta?" (2015), conte comigo para tudo -, contudo, enquanto discutia sobre "Temporada" com outras pessoas, cheguei à uma conclusão elementar: não é uma justificativa para relevarmos atuações ruins (que tem aos baldes), porém nossa percepção diante das atuações sofre alterações diretas de acordo com a língua falada. Interpretações no mesmo nível, mas em outra língua, soam superiores, afinal, nós nunca vamos achar falso da mesma maneira uma atuação em húngaro quando não temos familiaridade com a língua. Com sua língua materna é mais suscetível detectarmos falhas, por isso as atuações de filmes nacionais são mais elogiadas por críticos de fora.
No entanto meu ponto é: a Juliana de Grace Passô é fabulosa. A atriz entrega nuances e muita paixão para sua personagem, conseguindo se aproximar das grandes atuações do novíssimo cinema brasileiro, como Sônia Braga em "Aquarius" (2016), Regina Casé em "Que Horas Ela Volta?" e Leandra Leal em "O Lobo Atrás da Porta" (2013). A escolha da atriz é fundamental para o cerne de "Temporada", não apenas no sentido da capacidade de realizar o papel, mas também pelos atributos físicos.
Juliana é uma mulher negra e gorda, o espectro oposto do padrão que o Cinema (quase) não consegue fugir. Em outras palavras, Juliana é uma mulher como qualquer outra, assim como todos os que estão no ecrã, e é um júbilo ver o ordinário sendo posto de maneira tão sincera na tela. Por isso é tão importante a cena de sexo da protagonista, um corpo desnudo fora da glamorização que estamos acostumados.
"Temporada" é a epopeia do comum. Vemos pessoas normais vivendo dramas normais com suas lutas normais, e o filme soa ainda mais impressionante quando consegue extrair o extraordinário de algo que já está tão impresso na nossa realidade. Ao abrirmos nossas portas, vemos várias Julianas passarem pelas ruas, as heroínas do cotidiano que representam a batalha por uma vida melhor em meio a um Brasil em crise econômica, social e cultural. Vemos os orelhões pichados, prédios abandonados e o emaranhado e fios de energia cortando as ruas sem asfalto, e tudo sem juízo de valor: o filme não tenciona dizer se isso é bonito ou não, apenas que é real. O lançamento de uma obra como essa, na recessão intelectual que o país se afoga, é a lembrança do quão necessária é a cultura para valorizar e questionar um meio. Contudo, o que "Temporada" mais almeja gritar aos quatro ventos é: o que há de melhor no nosso povo é sua garra.
Tem algo mais Brasil do que isso?