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Crítica: “Fronteira” mistura realismo social com bizarra fantasia e o resultado é magnífico

A história de uma mulher que fareja a culpa das pessoas e luta contra o crime é um conto de super-herói cult
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

A Suécia é um dos países mais laureados no Oscar, vencendo três vezes o prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" - e sendo indicado outras 13 vezes. O cinema no país, fortalecido por Ingmar Bergman na década de 60 (todos os três Oscars do país foram para filmes dele), possui uma indústria fortalecida e fonte de obras impressionantes. Foi por isso que me surpreendeu o fato de "Fronteira" (Gräns/Border), o selecionado para o Oscar 2019, ter sido ficado de fora em "Filme Estrangeiro" - o país recebeu indicações nos dois últimos anos consecutivos.

O curioso é que "Fronteira", mesmo não estando nem entre os nove semifinalistas, concorreu ao careca dourado de "Melhor Maquiagem & Cabelo" - merecidamente, devo pontuar, principalmente se tratando de uma produção longe de Hollywood (ou você já se esqueceu que "Esquadrão Suicida" levou essa mesma categoria?). Não levou o prêmio, mas pelo menos pôde estar na maior premiação do mundo. A fita é baseada no conto de mesmo nome de John Ajvide Lindqvist, autor do livro que gerou o fabuloso "Deixa Ela Entrar" (2008), então é garantia de uma história boa, no mínimo.

O longa estreou no Festival de Cannes 2018, já conseguindo ser eleito "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" - disputa paralela à Palma de Ouro, com filmes menores e mais, digamos, ousados. E "ousadia" é uma palavra que pode definir bem "Fronteira". O longa conta a história de Tina (Eva Melander), uma policial que trabalha na fronteira sueca. Ela é valiosa no serviço por possuir um dom inédito: consegue cheirar quem estiver fazendo algo ilícito. Seus amigos de trabalho não entendem muito bem como ela consegue, mas seu faro é infalível.


Contudo, não é sua habilidade que chama mais a atenção, é sua aparência. Tina é, como ela bem se classifica, feia. Seus traços são estranhos e incapazes de passarem despercebidos; ela não consegue nem ir ao supermercado sem notar pessoas a encarando. O filme não se utiliza de sutilezas nessa abordagem, colocando a câmera colada no rosto da protagonista e fazendo com que a plateia sofra do mesmo mal: ao mesmo tempo que achamos estranho, não conseguimos desviar o olhar.

Esse é o primeiro viés da produção. Pode soar muito piegas quando posto em palavras, mas o filme coloca em cheque a vida em sociedade de pessoas feias. Somos criaturas que colocamos a imagem em absoluto primeiro lugar, afinal, é a partir dala que criamos identidade. A formação do nosso eu enquanto ser social começa quando nos vemos no espelho e tomamos consciência daquilo que visualmente somos. Não estou dizendo que o exterior é mais importante que toda a nossa bagagem e características psicológicas, porém, é a imagem o cartão de visita de quem somos.

Tina mora com um namorado que está mais preocupado com seus cães de briga do que com ela. A relação é fria e asséptica, claramente não existindo uma ligação entre eles - o máximo de proximidade é a curta conversa no jantar sobre o que cada um fez durante o dia. Deprime bater a cara no óbvio: Tina só aceita aquela relação porque é a única que ela acha capaz de ter. Quem mais namoraria com alguém como ela? "A gente aceita o amor que achamos que merecemos", já dizia "As Vantagens de Ser Invisível" (2012), e era aquele namorado postiço que Tina achava merecer graças à sua aparência.


"Fronteira" não é um filme sobre bullying - como "Extraordinário" (2017), que também usa maquiagem para deformar o rosto de seu protagonista a fim de discutir sua inserção no meio. Tina já está acostumada com a atenção que não pediu e tenta fincar seu lugar no mundo, tendo amigos de trabalho e vizinhos para dar bom dia quando passa. Não por acaso, essa "condição" é fomentadora da sua própria personalidade: retraída, seca, enclausurada.

Quase não vemos a protagonista sorrindo ou fora do tom absolutamente profissional que adota durante o expediente - já complicado por ter que lidar diretamente com pessoas, e pior, com pessoas cometendo infrações/crimes. O grande baque do primeiro ato está quando Tina fareja um cartão de memória muito bem escondido por um executivo lustroso - a trama paralela ao descobrimento de Tina consigo mesma. O objeto está cheio de pornografia pedófila, o que abre uma operação da polícia para prender quem quer que esteja por trás daquilo. Tina, claro, é recrutada para o serviço. Pode passar despercebido, mas uma protagonista usando suas habilidades contra o crime? "Fronteira" é um filme de super-herói.

É sensacional a maneira que o roteiro aproxima dois mundos gritantemente distintos: de um lado temos Tina com seu dom sobrenatural; do outro, um problema chocante e real. A caçada policial produz tensão e interesse na plateia sem grande esforço, mesmo com Tina inicialmente não muito inclinada a participar - ela ainda deve continuar usando seu olfato na fronteira. É então que surge Vore (Eero Milonoff), um homem parecido com Tina. Ambos possuem traços faciais e postura semelhantes, e Tina, mesmo farejando a culpa nele, não consegue descobrir a fonte do delito.

O encontro vai desencadear uma série de questionamentos na cabeça da protagonista, que nunca viu alguém parecido com ela e jamais falhou em apontar a culpa de alguém. Ela vai atrás do homem para descobrir quem ele é e todas as certezas de Tina vão sendo derrubadas. Ele come carne crua e insetos, possui uma estranha ligação com animais (assim como Tina) e possui órgãos sexuais femininos - o oposto dela, que tem órgãos masculinos.


Os níveis de condução sobre o campo do fantástico ganha novas proporções no decorrer da fita, sem medo de soar bizarro. A cena de sexo entre aqueles dois estranhos seres é desconcertante e propositalmente nada bela, e o que há de mágico é como toda essa bizarrice é fonte larga de discussões de gênero e sexualidade aqui mesmo do lado de cá da tela. O corpo de Tina é barreira para a exploração de sua sexualidade - afinal, ela é do gênero feminino, mas possui um pênis -, então ela encontra a liberdade que sempre procurou quando Vore surge, e seus corpos literalmente se conectam.

Aqui é o cerne de "Fronteira": sua maior discussão é o entendimento da natureza. Não apenas nossa conexão com a fauna e a flora, nosso lugar nesse planeta azul, mas também nossa própria natureza, aquilo que somos e porquê somos. A resolução do roteiro é bem misantropa, aceitando que pendemos para o pior lado da nossa existência. Vore, niilista nato, fala: "A raça humana é uma parasita na Terra, usa tudo, até a própria cria". É importante, também, os sentimentos que Tina consegue farejar; não é amor ou felicidade, mas sim medo, vergonha e culpa, sentimentos negativos e primários do animal que somos, e sua jornada a fim de encontrar seu lugar no mundo é reflexo perfeito de inúmeras jornadas particulares - por mais fantasioso que o filme seja.

"Fronteira" é uma fábula que reforça dois pilares seminais da arte: o primeiro deles é que devemos expandir nosso conceito do que é bom baseado no belo. O filme realiza imagens nada bonitas (sem entrar no âmbito do que é essa definição), com uma crueza latente que é feita para incomodar, artifícios usados como defeito por muitos - sendo que é o contrário. O segundo é como o recheio de fantasia em demérito do realismo social puro e simples pode ser cabo condutor de debates de uma realidade concreta. Aquela mulher que sente o cheiro de culpa é porta-voz de várias discussões que um documentário poderia levantar, o que é ainda mais impressionante: é a ficção levada ao extremo. Cinema em uma de suas melhores formas.

disqus, portalitpop-1

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