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Crítica: “Cemitério Maldito” é uma masterclass de todos os clichês possíveis dentro do terror

A segunda versão de "Cemitério Maldito" entra para o nada-seleto grupo de adaptações stephenkingianas ruins
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O grande entusiasta do terror que sou eu ainda se pergunta uma questão quase básica dentro da indústria voltada para o gênero: por que ainda insistem em adaptar livros do Stephen King? Rei do terror na literatura, são bem escassos os exemplos de sucessos no cinema para com suas histórias - e o caso fica ainda mais grave no comparativo entre "deu certo" X "quantos foram feitos".

Os exemplos bem feitos: "Carrie: A Estranha", dirigido pelo maravilhoso Brian De Palma em 1976; "O Iluminado" (1980) do maior diretor da história, Stanley Kubrick; "Louca Obsessão" (1990) do Rob Reiner; "Um Sonho de Liberdade" (1994), por Frank Darabont, viciado em adaptações do King; e a mais recente glória, "It: A Coisa" (2017), do Andy Muschietti.

Listar os nomes malfadados seria um trabalho hercúleo que me faria gastar tempos aqui, todavia, adianto: o novo "Cemitério Maldito" (Pet Sematary) é um deles. Segunda ida da história para a telona - o primeiro foi lançado em 1989 e é uma das poucas adaptações de King dirigidas por mulheres -, "Cemitério Maldito" entrou no calendário dos grandes lançamentos do terror no ano - seguido do fraco "Nós" - pela divulgação massiva da Paramount. Em números, o rendimento foi satisfatório: já passou da marca de $110 milhões mundialmente, e acabou de chegar no Brasil.


O longa é dirigido por Dennis Widmyer & Kevin Kölsch, dupla responsável pelo interessante "Starry Eyes" (2014). O primeiro filme sob as assas de um grande estúdio, a obra é um fracasso como terror e como cinema puro e simples. Não li o livro original nem assisti à primeira versão, então minha visão é exclusivamente direcionada ao que me foi posto na tela aqui. A trama gira em torno de Louis (Jason Clarke), sua esposa Rachel (Amy Seimetz) e os dois filhos, Ellie (Jeté Laurence) e o inútil Gage (Hugo & Lucas Lavoie) - coitado do menininho, mas o personagem é literalmente esquecido em boa parte da duração. Quando Church, o gato da família, morre, Louis é levado por Jud (John Lithgow), o vizinho, até um cemitério escondido que revive aquilo que lá é enterrado.

Louis fica aliviado por não ter que dar a trágica notícia para a filha, a mais apegada ao gato, todavia, o que antes parecia um plano eficiente se revela um desastre, já que Church volta à vida de maneira violenta. O filme dedica várias cenas com os personagens tendo que lidar com o felino arisco (e descabelado), o que é ridículo. A reviravolta surge quando Ellie é atropelada no dia do seu aniversário; é claro que o pai enterra a menina no tal cemitério, e ela volta como uma psicopata sanguinária, destinada a matar quem aparece pela frente.

É involuntariamente cômica a situação. O malabarismo para justificar o mote "criança assassina" é hilário, e o pior: Ellie é atropelada por um caminhão e não há UMA gota de sangue na tela. Seu corpo ressuscitado quase não demonstra sinais de danos e o pai consegue entrar no cemitério, cavar a sepultura da filha, abrir o caixão e levar o corpo sem que NINGUÉM veja. Claro que sim.


Se o cerne do roteiro é pobre dessa maneira, a produção vai ainda mais longe e se revela uma masterclass de todos os clichês existentes dentro do terror. Até parece que existiu um estudo para compilar trajetórias e ideias já feitas centenas de vezes dentro do gênero, porque quando há tantos chavões reunidos, não pode ser mera coincidência. Para deixar o sentido da masterclass ainda mais evidente, nada melhor que expor em tópicos os principais pontos clichês dentro de "Cemitério Maldito".

O recomeço em uma nova casa

Você já assistiu a esse filme: uma família decide se mudar para uma nova casa - de preferência em outra cidade - para um recomeço. A família chega em uma cidadezinha pacata com a esperança de que o novo lugar seja a solução para os seus problemas. Aqui temos a apoteose da perfeita e asséptica família do american way of life, o conglomerado de pontuações que formam uma entidade irretocável tão vendida ao longo da história do cinema no país. Chega a dar abuso.

A família está fugindo de um trauma

É claro, todos não decidiram pegar as malas e sair de onde moravam só para respirar um novo ar, eles estão querendo distância de um trauma. Aconteceu alguma coisa no passado que perturba a cabeça dos personagens, de maneira tão forte que eles preferem largar tudo e chegar em um local diferente. O macete serve para solidificar a fraqueza psicológica de suas futuras vítimas - quanto mais fracas elas são, menos esforço é necessário na orquestração do terror.

A coisa fica ainda mais pobre quando essa fraqueza já vem pronta pelo roteiro. Vamos lembrar de "Hereditário" (2018): a saga de Annie é costurada com imenso cuidado do começo ao fim, da serenidade até a ruína emocional completa. Quando os personagens já chegam com um drama que está do lado de fora da tela, não há muito trabalho a ser feito. É a antítese do cinema: quando se fala ao invés de se mostra.
 

Algum personagem se nega a aceitar o que está acontecendo

Se o terror põe o pé no sobrenatural, o mais batido a ser feito é colocar um personagem em específico que vai duvidando do que está acontecendo enquanto se agarra em seu ceticismo. No caso de "Cemitério Maldito" é o patriarca, Louis; cirurgião, ele é o "homem da ciência", o ser racional que trabalha apenas com fatos mesmo quando tem espíritos pulando na sua frente.

O contraposto é sua esposa, que é perturbada pela onipresença da irmã já morta. Esse conflito é jogado em cima da filha mais velha, quando os pais não sabem como lidar com temas básicos como a morte: para a mãe, ela deve aprender que há algo depois da vida; para o pai, há coisa nenhuma. A discussão central nem é o velho "há vida após a morte?" - o que seria interessante -, é apenas uma subtrama que logo mais é esquecida e não volta a ser pontuada - ou seja, é irrelevante.

O Google sabe todas as respostas

Coisas estranhas estão acontecendo na sua casa? Há histórias misteriosas sobre os arredores de onde você vive? Não se preocupe, é só jogar no Google. É realmente difícil pensar em um terror que não se utilize da tática de colocar seus personagens fazendo pesquisas para compreender qual o pavor que está infernizando sua vida; mas o engraçado é ver como o Google sabe toda e qualquer resposta de maneira direta, fácil e eficiente. Jornais de 100 anos atrás em alta resolução que explicam tudo o que você precisa? Está à beira de um clique.
 

Os personagens acordam de pesadelos que podem ou não ser reais

Na minha crítica de "Hereditário", comento o alívio que é acompanhar um filme que introduz de maneira incisiva na trama as manjadas cenas com pesadelos que cortam para o personagem acordando desesperado. "Cemitério Maldito" não faz o mesmo. Além de serem basicamente inúteis, as sequências de sonho possuem uma linguagem péssima que aniquila qualquer atmosfera: Louis - quem tem tais sonhos - é coberto com uma névoa enquanto há uma nada inspirada narração de uma entidade (que deveria ser temida) dizendo que tudo vai dar errado. Ele acordando e tendo indícios que o sonho foi mais real do que poderia ser? Tem sim.

Uso de máscaras como propulsores do medo

A lista com exemplos é enorme: "O Massacre da Serra Elétrica" (1974), "Halloween: A Noite do Terror" (1978) e "Sexta-Feira 13" (1980), até os modernos, como "Pânico" (1996), "Os Estranhos" (2008) e "A Morte Te Dá Parabéns" (2017), todos usam personagens mascarados para fomentar o medo. Não é preciso dizer o quão saturado isso já está. O mais absurdo dentro de "Cemitério Maldito" é que já no começo vemos uma procissão de mascarados, eles estão em basicamente TODOS os materiais promocionais e, depois da primeira cena, não aparecem mais. É o ápice da banalidade - eles eram reais ou não? O filme acabou e não soube dizer.

Apenas um dos personagens vê uma aparição/espírito e coloca em cheque a sua sanidade

Espíritos são serem extremamente seletivos no terror, e decidem para quem vão aparecer. Loius é assombrado pelo espírito de um paciente que morreu na sua maca - o único personagem negro é o primeiro a morrer, uau. Já Rachel vê a irmã morta, seja de forma metafórica - como um peso que ela carrega ao se culpar pelo falecimento da irmã - ou física, com o corpo contorcido da finada se arrastando na sua frente. Com uma pesada maquiagem, todos os desenvolvimentos ao redor dessa subtrama possuem pouco peso diante do todo, servindo pelo choque visual e é isso. O pior é que Rachel, a fim de superar a morte da filha, decide passar uns dias na casa de sua infância. Ela volta para o lugar que é assombrado pelo irmã, o mesmo lugar que a fez ir embora antes de qualquer coisa. Coerente.

"Cemitério Maldito" acaba sendo uma mercadoria didática, uma aula de como não construir um roteiro e quais caminhos devem ser evitados na busca de um sucesso criativo. Responsabilizar o material fonte, com uma fala do tipo "ah, mas no livro é assim", não é justificativa para amenizar tantos erros juntos - pelo contrário: quando há um texto já pronto, é mais fácil saber quais os rumos podem ser mantidos e quais devem ser melhorados. Com poucos momentos que valham a pena, esperar algo competente de um filme à base de gatos zumbis e cemitérios não vigiados é, no mínimo, ingenuidade.

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