A cultura dos streamings e a rapidez com que a nova indústria acontece ainda é um caso de estudos para as artistas que estavam tão acostumadas a dominar as paradas na época em que dependiam apenas das rádios e, até então, iTunes e Youtube.
Desde a ascensão das tantas plataformas que se consagraram nos últimos anos, foi comum vermos cada vez mais nomes novos surgirem nas principais listas dos EUA e Reino Unido e, consequentemente, termos artistas ainda novatos como Ariana Grande ou Lil Nas X, do hit “Old Town Road”, acenando para recordes que se mantiveram intactos por muito tempo.
Na contramão das tantas ascensões e revelações, artistas familiarizados aos topos e recordes encontram cada vez mais dificuldades para se manterem relevantes ou, minimamente, sendo vistos, e enquanto ainda entendem como dançarão conforme os novos ritmos, se unem ao público num laboratório a céu aberto, rodeado por discos que muita gente sequer teve tempo de ouvir, singles que custam a escalarem as maiores paradas da atualidade e, claro, os novos e influentes algoritmos.
Uma das maiores estrelas pop dos últimos anos, Katy Perry sempre soube onde pisar na indústria em que se lançou há mais de uma década. Ao lado de hitmakers como o sueco Max Martin, a cantora tem uma lista infinita de hits que vão da sua faixa de estreia, “I Kissed a Girl”, aos singles do álbum lançado em 2013, “Prism”, resultando numa linha do tempo com mais de cinco anos de sucessos ininterruptos –seguidos de incontáveis prêmios, certificados e, claro, vendas.
Quatro anos separaram “Prism” do seu disco seguinte, “Witness”, e neste meio tempo, muita coisa aconteceu na indústria, entre elas, a mudança na regras da Billboard, que já considerava as plataformas de streaming como um dos fatores para os cálculos de suas paradas, o que, definitivamente, inverteu muitas regras do jogo.
Com este disco, Katy Perry ainda alcançou números relevantes: o disco chegou ao primeiro lugar da Billboard Hot 200 e seu primeiro single, a co-composição de Sia em “Chained to the Rhythm”, alcançou o quarto lugar da Hot 100. Mas a dificuldade ficou quanto a manter o hype, principalmente em meio a discussões como às críticas a parceria com o trio Migos no single “Bon Appetit”, que sequer chegou ao top 50 da mesma parada, e o desande que seguiu nos outros singles: “Swish Swish”, que chegou à 46ª posição da parada e, no Brasil, rendeu um viral com participação da Gretchen; “Save As Draft” e “Hey hey hey”, ambas fora das 100 mais ouvidas dos EUA.
Pensando além dos números, sempre houveram muitos recortes a serem feitos. O ano em que Katy Perry lançou o disco “Witness” foi o mesmo em que os EUA elegeram Donald Trump como seu presidente e, apesar da crítica social sutil de seu single e clipe “Chained to the Rhythm”, ela e outras artistas, em sua maioria mulheres, protagonizaram inúmeras manifestações contrárias às suas políticas e declarações, num cenário que se assemelha a tensão do Brasil pós-Bolsonaro, e toda essa divisão ficou muito explícita também na indústria musical, daquele ano até a metade de 2018 dominada por artistas masculinos, que foram as apostas das maiores plataformas de streaming e, também, premiações.
Vale refrescar a memória. Foi em janeiro do último ano que Neil Portnow, presidente da academia do Grammy, afirmou no palco da premiação que não entendia as críticas a ausência de indicações femininas nas categorias técnicas, dizendo que as mulheres deveriam “se levantar” para mudarem isso, ignorando o fato de que elas, nas mais diversas posições, nunca estiveram paradas.
Com o esforço dessas artistas e suas gravadoras, algumas mudanças começaram a surtir efeito no segundo semestre daquele mesmo ano e, já na parada anual da Billboard, foi possível encontrar nomes como Bebe Rexha, Camila Cabello e Cardi B entre as dez mais, seguidas por Dua Lipa, Normani, Ariana Grande, Taylor Swift e Halsey pelas posições abaixo.
Neste mesmo top 10 haviam também homens como Drake, Ed Sheeran, Post Malone, Maroon 5 e o produtor que viria a se tornar o próximo parceiro musical de Katy Perry, Zedd.
Alemão, Zedd entrou no radar da música pop quando trabalhou com Lady Gaga no disco “ARTPOP” e, de lá pra cá, acumulou inúmeros hits pra chamar de seu, incluindo “Clarity”, com a Foxes, “Find You”, com Matthew Koma, e a música que o manteve entre as dez mais ouvidas de 2018 para a Billboard, “The Middle”.
Um diferencial do artista é que, apesar dos hits, ele nunca foi elevado ao posto de produtores como Diplo, Calvin Harris ou David Guetta, de forma que, mesmo com a frequente exposição, continuou soando como uma novidade, fator importante para os streamings e crucial para o que eles viriam a produzir a seguir, como o single “365”.
A música ainda teve uma trajetória tímida se comparada aos hits anteriores de ambos os artistas, beirando as últimas posições da Billboard Hot 100 e chegando ao top 40 da parada britânica, mas eles ainda tinham mais uma carta na manga e esta veio há algumas semanas, quando voltaram a se unir para a estreia de “Never Really Over”.
Diferente das investidas anteriores, incluindo o flerte com a música latina no remix de “Con Calma”, de Daddy Yankee, a nova empreitada de Katy Perry parece muito mais sóbria, pé no chão e despretensiosa. Musicalmente falando, a faixa poderia facilmente ter saído de algum disco da Carly Rae Jepsen ou Tove Lo, daquelas que passam despercebidas pelas paradas, mas sempre conquistam a aclamação crítica, enquanto, em termos estratégicos, o passo se assemelha ao que fez nos últimos anos nomes como Halsey e Selena Gomez, que apostaram pesado na estreia de singles numa era em que playlists importam, discos nem tanto.
Amadurecendo uma ideia que já carregava na época de “Witness”, Katy antecipou o que pretende fazer daqui em diante: “Never Really Over”, para todos os efeitos, não é o início de uma nova era ou ponto de partida para um novo disco. É apenas um single que pode anteceder outro single completamente diferente ou, caso seja bem-sucedido, alguma proposta que se aproxime do que deu certo (ouça Selena Gomez em “Taki Taki” e “i can’t get enough”).
Artisticamente falando, pode ser um tanto desanimador, principalmente quando pensamos na menor atenção dada ao projeto-disco e toda aquela ideia de termos uma era contada com começo, meio e fim, videoclipes contextualizados e performances que dialoguem na mesma linguagem, mas não é nada que pareça de outro mundo para a matemática indústria pop e a sempre tão exposta pressa para estar no topo deste bandejão. Um fast-food musical.
No lugar dos longos planejamentos e calendários de lançamentos, resta a expectativa para a recepção do público que, sob demanda ou, do inglês, on-demand (expressão comum para plataformas como Netflix e Spotify), é quem dá a palavra final quanto ao que fica e o que vem a seguir. De uma coisa a cantora está certa, “it’s never really over”.
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