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Os 100 melhores filmes da década (Parte 2)

Vencedores do Oscar, nomes nacionais e pérolas de todos os cantos do mundo nos nossos 100 filmes favoritos da década
A atual década foi emblemática na minha vida: comecei em 2010 a me dedicar à Sétima Arte, então acompanhei de perto os rumos que a arte tomou no período. Foram centenas de filmes vistos e aqui listo (ou tento listar) meus 100 filmes favoritos da década. É claro, fazer uma lista definitiva beira a impossibilidade: segundo o Letterboxd, maior banco de dados de Cinema do mundo, foram quase 159 mil filmes lançados nos últimos 10 anos (quase o dobro da década anterior), ou seja, humanamente impossível assistir a todos.

Todos os anos, sempre busquei assistir aos principais filmes e, claro, buscar pérolas que passassem longe da grande rede de distribuição, afinal, aquele filme da Zâmbia que mal vê a luz do sol é capaz de ser muito melhor que um blockbuster hollywoodiano - e sempre afirmei que é papel da crítica dar luz a filmes que não possuem o dinheiro para chegar tão longe.

Os critérios de seleção da lista foram os seguintes: filmes com estreias em solo brasileiro de 2010 a 2019 - seja cinema, Netflix e afins -, ou seja, haverá nomes com a data de 2009 que só chegaram aqui no ano seguinte, assim como terá filmes de 2019 indo para a próxima década; ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente, tendo em vista a dinâmica do mercado no nosso país. Importante pontuar que aqui há filmes que estreiam no comecinho de 2020, porém já entram aqui por ter distribuição limitada ainda em 2019. E não se preocupe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência. Aqui está a lista com os 100 no Letterboxd para você ver quantos já assistiu e já escolher o próximo - se já tiver visto todos, conte comigo para tudo.



66. Tomboy (idem), 2011

Direção de Céline Sciamma, França.
Laure, de 10 anos, chega na sua nova cidadezinha francesa e aproveita a novidade para, secretamente, viver como um menino, Mickael. A única pessoa que sabe da verdade é sua irmã mais nova, completamente confortável com a dupla identidade do irmão trans. "Tomboy" é um clássico moderno LGBT que explora de maneira genial a ambiguidade de gênero - e como a transfobia é puramente ensinada. O segredo de Mickael está fadado ao fracasso, e as tensões aumentam quando sabemos que a reação do mundo diante de sua transsexualidade não será positiva - nem mesmo dentro de casa, quando sua mãe o obriga a usar roupas femininas. Delicadíssimo retrato da infância, "Tomboy" é um júbilo sobre a liberdade de sermos quem somos. E sempre bom lembrar: EDUQUEM SEUS FILHOS A RESPEITAREM A DIVERSIDADE.

65. Oitava Série (Eighth Grade), 2018

Direção de Bo Burnham, EUA.
Confesso que, ao anúncio da estreia do youtuber Bo Burnham na cadeira de diretor, não coloquei esperança. Assim, quando assisti "Oitava Série", a surpresa foi fabulosa. Seguindo os passos de uma garota afogada em ansiedade, o coming of age não está interessado em somente exibir os dilemas convencionais da faixa temporal, alavancando o roteiro a um patamar de debates que burlam as fronteiras de idade. Com uma atuação refinada de Elsie Fisher, "Oitava Série" é uma obra ímpar acerca de problemas mentais na era do Instagram - e é urgente como garotas são as mais suscetíveis a sofrerem pelas pressões sociais que já espetam desde cedo. Gucci!

64. A Sombra da Árvore (Undir Trénu), 2017

Direção de: Hafsteinn Gunnar Sigurðsson, Islândia.
Se você gostou de “Relatos Selvagens”, vai ter a epiderme arrepiada por “A Sombra da Árvore”. Duas famílias vizinhas começam uma verdadeira guerra devido a sombra da árvore de uma bater no quintal da outra (!). Assim como a obra-prima argentina, “A Sombra da Árvore”, selecionado islandês ao Oscar 2018, disseca acidamente a falta de comunicabilidade do homem moderno e como estamos no limite da sanidade ao esbarrarmos na fronteira do outro. Mas claro que os personagens aqui não estão abertos para diálogos, preferindo entrarem num inacreditável jogo de xadrez onde cada movimento é mais tresloucado que o anterior. A grama do vizinho nunca foi tão mais verde.

63. O Homem Duplicado (Enemy), 2013

Direção de Denis Villeneuve, Canadá.
Se um Jake Gyllenhaal é bom, imagine dois? Um professor aborrecido com a monotonia da vida descobre em um filme que existe um ator exatamente igual a ele. O achado vai desencadear numa espiral de obsessão entre ele e seu duplo. Dirigido pelo incrível Denis Villeneuve, o roteiro é baseado no livro de mesmo nome de José Saramago e, sem saber o quanto a produção bebe da fonte literária, temos em mãos um dos melhores quebra-cabeças já feitos no século. "O Homem Duplicado" não possui saídas simplistas nem resoluções óbvias, entupindo a plateia com metáforas visuais, composições enigmáticas e peças que parecem não se encaixar. A aranha teceu essa teia à base do caos, e não se culpe caso precise reassistir para entender.

62. Glória (Slava), 2016

Direção de Kristina Grozeva & Petar Valchanov, Bulgária.
Um trabalhador ferroviário encontra uma mala cheia de dinheiro. Ele, para o assombro de todos, devolve a quantia, e ganha um relógio como recompensa. Enquanto isso, seu antigo relógio, acessório de família, é perdido, e ele se desespera para recuperá-lo. "Glória" é o "Madame De..." desse século, usando um acessório banal, um relógio, para desencadear toda a trama e bagunçar para sempre a vida de seus personagens. Usando histórias reais para unir um filme poderoso sobre corrupção, diferença de classes e dignidade, a pergunta central é "qual o preço do seu próprio valor?". Teoria do Caso aplicada efetivamente - e é impressionante assistir tudo desmoronar cena após cena.


61. Os Iniciados (Inxeba), 2017

Direção de John Trengove, África do Sul.
Boicotado por manifestações homofóbicas, "Os Iniciados" caiu nos braços da crítica tanto pela repressão escancarada que sofreu quanto pela qualidade ao retratar um amor gay batendo de frente com tradições africanas. Um dos melhores e mais relevantes retratos da masculinidade tóxica que o cinema já viu, "Os Iniciados" é película primordial para citarmos nossos próprios privilégios ao passo que os notamos: vivemos num corpo social que permite liberdade das amarras do patriarcado em vários níveis, enquanto naquele meio do filme não há escapatória. Esse "Moonlight" versão africana, que foi semifinalista ao Oscar 2018, se diferencia da fatia gay no cinema ao trazer grande e valioso reforço cultural para compor suas situações, encurralando seus personagens, encarcerados em tradições tóxicas que oprimem e rendem discussões fortes, cruas e urgentes no ecrã.

60. A Criada (Agassi), 2016

Direção de Park Chan-wook, Coreia do Sul.
O celebrado diretor de "Oldboy", Park Chan-wook, até demorou a cair nas mãos hollywoodianas. Em 2013 ele lançou o fraquíssimo (mas visualmente lindo) "Segredos de Sangue", sua estreia em solo americano, porém, não tardou para ele voltar à Coreia do Sul e tudo voltar à normalidade. Sua nova empreitada é "A Criada", uma intricada história sobre um manobrista que contrata uma batedora de carteiras para dar o golpe numa rica senhora japonesa: a garota seria criada da senhora e a convenceria de casar com o auto-denominado "conde". Mas os planos mudam quando a garota se apaixona pela senhora. A partir daí, esse triângulo, que ainda tem uma outra peça no jogo pelo dinheiro, o controlador tio da senhora, faz com que os rumos de todos sejam incertos. A narrativa engenhosa de Chan-wook faz com que assistamos ao filme duas vezes, mostrando ângulos e pontos de vistas diferentes para encaixarmos as peças desse quebra-cabeças delicioso e imageticamente deslumbrante.

59.  O Estudante (M-uchenik), 2016

Direção de Kirill Serebrennikov, Rússia.
O russo "O Estudante" conta a história de Veniamin, um garoto violentamente fanático por religião que vai gradualmente infernizando a vida de todos ao seu redor. Presente na tela em todos os momentos, o personagem é um daqueles que desejamos dar um tiro de tão insuportável que é, levando todo mundo ao seu próprio obscurantismo e realizando tragédias. A fita é ainda mais sagaz quando coloca TODAS as citações bíblicas do menino na tela, indicando os versículos - e acredite, são muitas. Serebrennikov empurrar seu roteiro para o extremo do fundamentalismo, onde a fé pula a cerca e cai na sociopatia, numa Rússia perdida em preconceitos e intolerâncias.

58. Cafarnaum (Capharnaüm), 2018

Direção de Nadine Labaki, Líbano.
O vencedor moral do Oscar 2019 de "Melhor Filme Estrangeiro" e "Melhor Direção" ("Roma" não chega nem aos pés), "Cafarnaum" surgiu quando Labaki se perguntou: no nosso sistema tão falho, quem mais sofre com nossos conflitos, guerras e governos? As crianças. E a película é inteiramente transposta a partir da visão dos pequenos, em especial Zain, que está processando os pais por lhe darem a vida. "Cafarnaum" vai até o seio de um Líbano degradado e à beira do colapso, dando voz àqueles que são ignorados por completo. Carregado nas costas pelo brilhante elenco infantil, eis um daqueles filmes que são uma forma de documentação histórica e denúncia de realidades esquecidas. A cena final é uma das maiores destruições já filmadas nesse século.

57. Garota (Girl), 2018

Direção de Lukas Dhont, Bélgica.
Baseado na vida de uma real bailarina trans, "Garota" foi recebido com amores e ódios pela ótica íntima da vida transsexual. A sessão é impactante não só pelo o que a fita mostra, mas pelo o que ela gera como sensações, navegando pelas ansiedades, medos e momentos mais obscuros que um LGBT passa ao se ver em uma sociedade que não está capacitada para entendê-lo. Porém, a maior lição que retiramos de "Garota" é óbvia: o local de fala é importante, mas não garante coisa alguma, principalmente se tratando de expertises artísticas. Sua bagagem não vai, necessariamente, fazer um bom filme. Felizmente, não foi o caso de "Garota", um delicado filme baseado na vivência de uma real mulher trans, não uma fantasia erotizada de uma pessoa cis.


56. A Favorita (The Favourite), 2018

Direção de Yorgos Lanthimos, Reino Unido/EUA.
O filme de época mais espirituoso dos últimos tempos, "A Favorita" é, em primeiro lugar, um filme sobre mulheres difíceis em uma época difícil e em posições difíceis. A obra encanta na riqueza de detalhes narrativos e visuais, e quando suas protagonistas - três monstros na tela - não dão a mínima para a guerra do lado de fora de seu palácio, mais preocupadas com a batalha que acontece ali dentro - o destino da nação pouco importa quando é seu status que está em jogo. Mesmo não tendo o roteiro assinado por Lanthimos, o maior diretor em atividade, o longa é mais uma prova da genialidade do cineasta enquanto contador de histórias. "A Favorita" é uma luta real pelo favoritismo de uma insana rainha que escancara o nada discreto charme da burguesia.

55. A Lição (Urok), 2014

Direção de Kristina Grozeva & Petar Valchanov, Bulgária.
Em uma cidadezinha búlgara, uma professora para suas aulas para descobrir quem é o culpado de um furto na sua classe. Ela se mostra muito íntegra e ensina o valor da verdade para os pequenos, porém, quando ela se vê afogada em dívidas, seu posicionamento será o mesmo? Extraordinário e palpável estudo de personagem, a fita é tão realística que podemos olhá-la pelas nossas janelas, isso quando não visualizados seus dramas dentro das nossas próprias paredes. Moral, prioridades, o certo e o errado e o peso do dinheiro nesse mundo capitalista dissecados de forma aguçada.

54. Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantastica), 2017

Direção de Sebastián Lelio, Chile.
Provavelmente o maior expoente trans do cinema na contemporaneidade, "Uma Mulher Fantástica" ganhou o Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", o primeiro da categoria dado a um longa com essa temática - e o primeiro chileno. Seguindo a vida de Marina, acompanhamos a montanha-russa que se torna sua vida quando seu namorado morre. Por ser trans, ela é automaticamente culpada pela morte, e vai ter que enfrentar as autoridades e a família do falecido, que estão de prontidão para renegarem sua existência. Não apenas um drama fenomenal, o filme ainda tem um bônus de ter sido interpretado por uma real mulher trans, a maravilhosa Daniela Vega. O título é um daqueles spoilers que não nos incomodamos em receber.

53. Divino Amor (idem), 2019

Direção de Gabriel Mascaro, Brasil.
"Divino Amor" leva o espectador para um Brasil aqui do lado, alguns anos no futuro. Com o avanço do fundamentalismo, o nosso país vira um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema do novo sistema é "Quem ama divide". O fanatismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado de "Divino Amor" é muito bem controlado. O mais assustador do filme é sua consonância com o agora do nosso país - o exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo.  Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

52. Tangerina (Tangerine), 2015

Direção de Sean Baker, EUA.
"Tangerina" vai na cola de uma prostituta e sua amiga - ambas interpretadas por atrizes trans -, que, ao descobrirem a traição do cafetão, saem em busca do traidor e sua amante. Qual o cerne do filme? A triste e estreita ligação entre a transsexualidade e a marginalização. É nada confortável encarar de frente os vários tópicos que a obra escancara sem vergonhas, porém, "Tangerina" é um filme sobre como a sororidade é peça indispensável para a sobrevivência de pessoas ainda varridas para debaixo do tapete. Longe de um trato plástico e artificial na tela, "Tangerina" vem como um sopro de ar livre ao dar voz, provocar e abordar uma realidade marginalizadora de forma crível, correta e socialmente relevante. E foi inteiramente filmado com celulares.


51. Políssia (Polisse), 2011

Direção de Maïwenn, França.
Segundo Maïwenn, o título de "Políssia" veio do seu filho, que escreveu a palavra "polícia" com dois "s". O título é singelo, mas carrega o cerne da película: conhecemos a rotina dos policiais da Brigada de Proteção de Menores; sua principal função é lidar com crianças vítimas de pedofilia. Muito mais que uma visão fria do trabalho, os 120 minutos de duração obrigam o espectador a chorar e vomitar um turbilhão de sensações, costurando de forma brilhante o dia a dia do combate à pedofilia com seus impactos sociais e psicológicos sob todos os envolvidos. "Políssia" é o Cinema como espinho necessário, mesmo não sem em segundo algum agradável.

50. Sem Amor (Nelyubov), 2017

Direção de: Andrey Zvyagintsev, Rússia.
Um casal à beira do divórcio nutre ódio mútuo que torna a mera aproximação insustentável. Sobra para o filho deles, esquecido e renegado, já que os pais estão ocupados demais se odiando. Quando o menino foge e desaparece (após uma das cenas mais devastadoras do ano – a da porta), eles terão que se aturar para achar a criança. Depois de estudar seu país com “Leviatã”, Zvyagintsev estuda uma situação extrema e costura seus personagens de maneira homeopática, construindo uma trama universalmente afiada que consegue tirar a fé do espectador pelos momentos frios e egoístas do homem. “Sem Amor” é nome absoluto do que há de melhor da misantropia na Sétima Arte. Demos tão errado assim?

49. Moonrise Kingdom (idem), 2012

Direção de Wes Anderson, EUA.
A apoteose do estilo imagético e textual de Anderson, "Moonrise Kingdom" segue um casal de adolescentes que descobre a arrebatadora sensação de se apaixonar pela primeira vez - para o desespero de seus pais. Uma fábula lúdica, única, colorida e provida tecnicamente de muito poder, é encantador acompanhar esse conto-de-fadas cinematográfico que enche os olhos e os ouvidos. Os adultos são meros peões nas mãos das crianças nessa que é uma das mais singelas histórias de amor que a arte já proporcionou, e isso é fascinante. Quem não quer morar nesse filme?

48. 14 Estações de Maria (Kreuzweg), 2014

Direção de Dietrich Brüggemann, Alemanha.
“14 Estações de Maria” é um filme corajoso e controverso que não critica a religião católica em si, mas o mau uso que as pessoas fazem dela: uma menina criada em uma casa extremamente fanática decide sucumbir para virar santa. Levamos um tapa na cara pela forma como lidamos e até aonde vamos em nome da fé, e o filme não se limita ao ser cru e pungente, divido em 14 sequências que mostram o calvário de sua protagonista. A melhor definição do real sentido do filme parte do seu próprio diretor: "O que vemos todo dia no mundo é a força do fundamentalismo virando horror. Em nome de Deus, praticam-se coisas ignóbeis, dignas do Diabo. Um mundo sem tolerância, sem compaixão. Nada pode ser mais cruel". Afinal, quantas Marias temos nesse exato momento morrendo no mundo?

47. Midsommar: o Mal Não Espera a Noite (Midsommar), 2019

Direção de Ari Aster, EUA.
"Midsommar" não é um fácil filme: sua robusta duração (2:45h na versão do diretor), desconcertantes sequências e inundação de simbolismos tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia quando uma garota em luto parte com o namorado para as festividades folclóricas da Suécia. Tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com "Hereditário" ao usar o luto como pontapé de seu clima, é injusto comparar as duas obras quando seus objetivos (e luzes!) são tão discrepantes - e, convenhamos, superar "Hereditário" seria utópico. "Midsommar" é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (dessa vez colorida e vibrante) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.


46. As Filhas de Abril (Las Hijas de Abril), 2017

Direção de Michel Franco, México.
Michel Franco é um dos melhores cineastas mexicanos, apesar de não carregar o mesmo prestígio de Alfonso Cuarón (de "Roma"), Guilhermo Del Toro (de "A Forma da Água") e Alejandro Iñárritu (de "O Regresso"); o motivo pode ser os temas áridos e o estilo seco que ele transporta suas discussões à tela. "As Filhas de Abril" tem uma menina de 17 anos que faz de tudo para que a mãe não descubra sua gravidez. Quando Abril tem a revelação, ela se mostra compreensiva e apta a ajudar no que puder, retrato de uma sororidade lindíssima entre aquelas mulheres. Pobre coitada da plateia que não tem ideia do abismo logo ali do lado, e filme nenhum foi capaz de me deixar tão boquiaberto quanto "As Filhas de Abril" em 2018. Falar mais que isso é entregar a história, todavia, essa é uma película que demonstra o próprio slogan: "o amor de uma mãe não conhece limites".

45. Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri), 2017

Direção de Martin McDonagh, EUA.
A iconicidade de “Três Anúncios” precede sua qualidade: dos memes com os anúncios da fita até seu uso real em manifestações, o longa não é apenas uma obra-prima pela sua fortíssima realização, é o filme certo na hora certa. Nessa onda feminina de denúncias contra abusos, acompanhar a luta de uma mãe em busca de justiça pela morte da filha é a história que precisávamos ver. Um dos mais originais e bem escritos roteiros da década – que venceu o Globo de Ouro –, “Três Anúncios” deixa chover sarcasmo para apontar o dedo na cara da hipocrisia, do ódio e de como caminhamos sob uma estrutura aparentemente sem conserto. Com seus personagens escancaradamente conturbados e situações ácidas, temos em mãos uma produção atemporal - ou você acha que Frances McDormand, vencedora do Oscar pelo papel, virando caçadora de estuprador e colocando todos os homens ao redor em seus devidos lugares não será um clássico?

44. O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer), 2017

Direção de Yorgos Lanthimos, Inglaterra/Grécia.
Se você já conhece o cinema de Lanthimos, sabe o quão peculiar ele é. Famoso e aclamado por suas histórias absurdas – “Dente Canino”, “Alpes” e “O Lagosta” –, o diretor usa do estranho para metralhar críticas. "O Sacrifício do Cervo Sagrado" não visa tecer críticas sociais tão evidentes; a obra prefere compor uma família disfuncional que só percebe suas falhas quando pressionada diante de uma situação extrema: uma maldição que ameaça matar um a um. Caminhando sobre o gênero suspense, o longa é para deixar qualquer um zonzo pela construção do universo particular e imperdível do diretor e o quão fora do normal são seus personagens, inseridos em cenas involuntariamente cômicas pelo teor de bizarrice. Não há amor familiar maior do que o de "Cervo Sagrado", disso podemos ter certeza.

43. Boa Noite Mamãe (Ich Seh Ich Seh), 2014

Direção de Veronika Franz &  Severin Fiala, Áustria.
Dois irmãos gêmeos estão ansiosos pelo retorno da mãe, afastada de casa para se submeter à cirurgias plásticas. Todavia, quando ela retorna, os irmãos têm plena convicção de que aquela mulher é uma impostora. "Boa Noite Mamãe", um dos raríssimos exemplares a serem selecionados para o Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", é uma lenta epopeia de duas crianças tendo que lidar com uma dúvida esmagadora, potencializada pela escolha imagética brilhante da mãe, que emana uma áurea vilanesca. Brincando com expectativas e reações, esse é um clássico do terror contemporâneo pela excelência em suas imagens, atmosfera e realizações.

42. Eu Não Sou uma Bruxa (I Am Not A Witch), 2017

Direção de Rungano Nyoni, Zâmbia/Inglaterra.
Se “Os Iniciados” é a exposição de tradições masculinas africanas, “Eu Não Sou Uma Bruxa” é sobre ritos femininos no continente, mais precisamente a cultura da bruxaria. Obra fundamentalmente sobre mais uma exploração feminina sob gananciosas mãos do homem, dessa vez temos um contexto inédito no cinema, o que a faz ainda mais relevante. O plano de fundo da produção pode extrapolar as tradições africanas e se encaixar em diversos modos de tratamento rebaixador e degradante que a figura da mulher passa em diversas sociedades até presente momento. Documento cultural necessário e visualmente espetacular, "Eu Não Sou Uma Feiticeira" é realização cinematográfica que se apropria do status de "obra-prima".


41. A Casa Que Jack Construiu (The House That Jack Built), 2018

Direção de Lars Von Trier, Dinamarca/Suécia
O nome de Lars Von Tier está sempre de mãos dadas com a polêmica, já que o diretor não tem papas na língua e coloca no ecrã temas tabus e controversos. "A Casa Que Jack Construiu" não foge da regra: ao seguir 12 anos na vida de um serial-killer, Trier passa a faca sem piedade no império cultural e político de Donald Trump, expondo as brutalidades sociais afloradas pela vitória do presidente norte-americano - cada um dos segmentos são brutais em termos visuais e violentos como crítica. Mesmo sutilmente (foco nos bonés vermelhos), "Casa Que Jack" escancara a América que ensina crianças a amarem armas, que gera massacres em escolas e que vira as costas para não ajudar o próximo. Uma sátira não só ao "homus trumpus" como ao cinema de horror, Trier nos leva até ao Inferno a fim de mostrar que o conservadorismo virou uma praga.

40. Peles (Pieles), 2017

Direção de Eduardo Casanova, Espanha.
Um dos melhores macetes narrativos da Sétima Arte é a expansão dialética: quando a obra se apropria de determinado conceito ou ideia e exagera ao máximo para que possamos entender nossas simples vidas no meio desse conceito. É isso que o espanhol "Peles" faz. Nos colocando diante de um mundo onde deformidades físicas são desde nanismo até uma garota com um ânus no lugar da boca (sim), o filme é Cinema em sua plena função: hipérboles visuais compostas de forma histrionicamente perfeitas constroem uma obra reflexiva sobre a importância social dos nossos corpos, em contos brilhantes em forma e conteúdo. Nem os 50 tons de rosa conseguem esconder o lado obscuro do ser humano, que, muito antes de possuir o anseio de ser aceito, deve aceitar a si próprio. 

39. Flores (Loreak), 2014

Direção de Jon Garaño & Jose Mari Goenaga, Espanha.
A vida de uma pacata mulher sofre uma reviravolta quando ela recebe um buquê de flores anonimamente. Ela fica confusa, mas deixa para lá. Porém, na semana seguinte acontece o mesmo, e na seguinte, e na seguinte, o que começa a abalar sua vida. Quem estaria mandando aquelas flores? Usando como estopim um artefato que reflete toda sua delicadeza, as flores, o filme usa esse catalizador simplíssimo numa situação curiosa que mexe não só com a realidade dos personagens, mas as nossas também, envolvidos naquela teia de não-acasos criativa e sempre humana. É inviável não embarcar na jornada da protagonista em busca da solução desse mistério, e aprendemos que pessoas são o extremo oposto das flores: só sobrevivem se fechar suas feridas. "Flores" é lindíssimo.

38. Melancolia (Melancholia), 2011

Direção de Lars Von Trier, Dinamarca/Suécia.
O casamento de Justine deveria ser o dia mais feliz da sua vida, todavia, ela está longe de ser uma noiva radiante. A família tenta deixar tudo nos trilhos, só que um planeta está prestes a colidir com a Terra, e Justine está pronta para isso. "Melancolia", o segundo filme da "Trilogia da Depressão" de Trier, é um dos trabalhos visuais mais estonteantes já feitos e até que o ecrã escureça, até que o azul queime nossos olhos, até que a última lágrima de esperança evapore, o filme é uma ópera do horror e da destruição. "A Terra é má. Não precisamos sofrer por ela. Ninguém vai sentir sua falta". Devastador.


37. Amor (Amour), 2012

Direção de Michael Haneke, Áustria.
George e Anne são um casal de idosos na casa dos 80 anos que aproveita a aposentadoria. Um dia, Anne tem um derrame, o que a lançará em uma espiral de ruína física e mental. Cabe ao marido a decisão de como a situação será levada dali em diante. Vencedor da "Palma de Ouro" e do Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", "Amor" trás um título que soa ácido quando entramos em seu conteúdo. Carregado por uma atuação devastadora de Emmanuelle Riva, aqui a frase "aqueles que mais amamos são os que mais nos destroem" é comprovada da pior forma possível. Haneke orquestra uma sinfonia silenciosa de destruição, piedade, compaixão e amor. Muito amor.

36. O Farol (The Lighthouse), 2019

Dirigido por Robert Eggers, EUA.
Dois marinheiros são atirados em uma ilhota no meio de lugar nenhum com o único objetivo de cuidar do farol lá presente. O mais velho, atuando no local há muito tempo, parece fissurado pela luz do farol, impedindo que o novato se aproxime. Dono de um par de cenas instantaneamente icônicas, "O Farol" é um sucessor à altura de "A Bruxa" e a solidificação do cinema de Eggers como mitológico quando condena seus personagens - e o algoz é a própria natureza. O filme não tem problema em fotografar nossa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

35. A Pele Que Habito (La Piel Que Habito), 2011

Direção de Pedro Almodóvar, Espanha.
O filme de terror do Almodóvar é uma das mais bizarras histórias de vinganças já filmadas quando o Dr. Frankenstein moderno retira o que há de mais humano de sua criação: a identidade. Resgatando aquele que seja o nome definitivo do seu cinema, Antonio Banderas, o domínio cênico e narrativo do diretor é estupendo quando ele mistura diversas linhas temporais que se encaixam no presente diegético, um experimento medonho onde o preço que se paga é alto demais. Praticamente todos os enquadramentos do genial trabalho fotográfico poderia ser pendurado numa moldura, nessa obra-prima do rancor e crueldade.

34. Relatos Selvagens (Relatos Salvajes), 2014

Direção de Damián Szifron, Argentina.
O real vencedor do Oscar de "Filme Estrangeiro" naquele ano, "Relatos Selvagens" traz seis contos ligados pelo conceito primitivo da humanidade e como nossas máscaras sociais são frágeis. Burlando língua, país, nação, continente e qualquer fronteira imaginária ou não, o filme é clássico instantâneo que mostra de forma escancaradamente histérica como vivemos numa sociedade à beira do caos, numa era que evoca o lado mais animalesco do homem no simples ato de atravessar uma rua. Esse guia prático de sobrevivência na selva de pedra que é a modernidade nos ensina que, na próxima vez que você virar a esquina, conte até 10 e respire profundamente. Vai que...

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