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Crítica: “O Poço” vai de “O Cubo” a Foucault em seu estudo da desumanidade do Capitalismo

"O Poço" é um terror que alia entretenimento, atmosfera e pertinência sobrenatural na época em que estamos vivendo
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Dentre as várias instituições que formam a sociedade como conhecemos, uma das mais desafiadoras, que já passou por drásticas mudanças e, segundos alguns estudiosos, até presente data ainda não encontrou um modelo que seja ideal, é a prisão. Ou, para ser mais abrangente, o mecanismo de punição do Estado.

Na Europa, antes da Revolução Francesa em 1789, os crimes eram punidos com a tortura e a morte. A figura do rei, detentor absoluto de todas as leis, sentenciava criminosos baseado na ideia de que, se um crime é um ato contra o Estado, e ele é o Estado, um crime é um atentado ao rei. A punição brutal servia tanto para garantir que o acusado não voltasse a cometer o mesmo erro quanto para servir de exemplo para todas as outras pessoas, afinal, tais sentenças eram proferidas de maneira pública. Sabe a clássica cena em que Cersei, em “Game of Thrones”, tem que caminhar nua pelas ruas da cidade enquanto todos os súditos a assistem, como um espetáculo? Pois é. Só que muitos terminavam como em “A Paixão de Joana D’arc” (1928).

A saída da monarquia para a república também mudou o modo de punição, abandonando as execuções públicas para o projeto de encarceramento que conhecemos. Pode parecer que a mudança seja um avanço incrível – o que de certa forma é até verdade (paramos de matar pessoas no meio da rua) –, todavia, ainda estamos bem longe de uma instituição que funcione como deveria. Pode soar, também, que as prisões como conhecemos sejam uma diminuição do poder do Estado sobre seus cidadãos, mas esse poder só é exercido de maneira diferente.

Em “O Poço” (El Hoyo), vamos a alguns anos no futuro – jamais sabemos exatamente quando – em que um novo modelo prisional está em vigor. Ainda baseado no encarceramento, as grades são trocadas por andares: a construção é vertical, como um prédio, e cada andar comporta dois presos. A característica principal – e que rege a ideologia do sistema – é a maneira como quem está lá dentro se alimenta: há um poço bem no meio dos andares, por onde uma plataforma desce todos os dias, como um elevador, levando comida aos presos. No andar nº 0, os cozinheiros estritamente vigiados preparam as melhores refeições possíveis, depositando tudo para que a plataforma desça ao andar nº 1. Então, após alguns minutos, a plataforma desce para o andar seguinte, ou seja, o nº 2 vai comer o que restou do nº 1, o nº 3 vai comer o que restou do nº 2, e assim por diante.

O ponto focal do filme está com Goreng (Ivan Massagué), que acorda no 48º andar. Ao seu lado está Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor já de idade que foi preso por acidental e irresponsavelmente matar um homem. Ele, estando ali há quase um ano, explica como funciona o sistema, e se espanta ao saber que Goreng está ali por vontade própria: o protagonista trocou sua liberdade por um diploma.

Logo de cara já recebemos uma enxurrada de informações, com alguns pontos de destaque: é possível se voluntariar para entrar na prisão, porém, ninguém do lado de fora sabe o que acontece lá dentro – caso contrário, não aceitaria. Mesmo sendo possível conversar com os presos dos andares próximos através do poço, a única pessoa que cada um tem contato é com o companheiro de andar, excluindo a figura do agente prisional. Mas isso não abre brechas para maiores liberdades, pelo contrário: de alguma maneira, a construção é violentamente inteligente, alguma forma de tecnologia pra lá de avançada que sabe se algum dos detentos quebrou a regra básica de lá: você só pode comer enquanto a plataforma estiver no seu andar. Guardar comida é punido com a morte pelo frio ou calor – algo que Goreng descobre rapidamente ao separar uma maçã.


Isso, então, nos remete a quem? Michel Foucault. Se você não for familiarizado com o livro “Vigiar e Punir”, o filósofo resgata um conceito do séc. XVIII primordial para o entendimento de “O Poço”: o Pan-óptico. Do grego “o que tudo vê”, o Pan-óptico é uma construção arquitetônica disposta de maneira em que todas as celas e todos os presos fossem vistos por um só vigilante. É a ideia utópica da cadeia, a vigilância absoluta. Em “O Poço”, essa utopia é real. Há uma força onipresente, capaz de punir qualquer um que quebre a lei fundamental de lá – e não engrossa apenas o caráter físico, mas também o psicológico: uma figura divina que sabe de tudo aumenta a claustrofobia e força seus presos a jogarem o jogo.

Outra característica da prisão é que, todo mês, os presos acordam em um andar diferente. Trimagasi diz que o 48º é ótimo pois a comida ainda chega até lá, afirmando que já esteve em níveis bem mais baixos onde a fome era a única companhia. “O Poço” é um filme de terror, e as imagens criadas pela forma de distribuição da comida são efetivamentes repulsiva: Trimagasi imediatamente devora as sobras tocadas, mastigadas e cuspidas por – atualmente – 94 pessoas sem pensar duas vezes. O design de produção é um dos maiores aliados na geração da atmosfera, criando um banquete capaz de causar ânsia no espectador quando os personagens comem os frangos em pedaços e bolos com cobertura de saliva em pratos imundos. É um contraste enorme entre o que chega no andar dos personagens e o que é feito no andar nº 0, uma cozinha cinco estrelas.

Os únicos poderes que os presos possuem são: eles podem matar o companheiro; eles podem se matar, pulando pelo poço, por exemplo; e eles podem controlar como a comida chegará no andar de baixo. Um dos atos mais grotescos de todo o roteiro parte de Trimagasi, que cospe e urina na comida antes de a plataforma descer. É uma atitude atroz, que condena sem volta todo mundo dali para baixo. Quando questionado por um revoltado Goreng o motivo da atitude, Trimagasi responde: “os de cima provavelmente fizeram o mesmo”.

Essa suposição, que está longe de ser absurda, é baseada no viés misantropo da película: somos seres terrivelmente egoístas. Contanto que nossas necessidades sejam atendidas, os outros não importam mais. Goreng compartilha do sentimento altruísta, e encontra um reforço quando uma mulher tenta conscientizar os presos de outros andares a dividir a comida de maneira igualitária, mas é tudo em vão. O sistema tem uma maneira bem suja de corromper quem está dentro: com a mudança de andares todos os meses, você pode sair de um nível “confortável” e parar em algum onde passará fome. Se eu estou em um andar que chega comida, eu comerei o máximo possível, pois próximo mês posso não ter mais essa regalia. Difícil argumentar contra essa ideia, e basta uma pessoa para arruinar toda a conscientização das outras na divisão do alimento – uma comendo mais o que deve, alguém não terá.

Na metade da exibição descobrimos que os pratos feitos no andar nº 0 são baseados nas escolhas de cada um dos presos, e que haveria comida o suficiente para alcançar todos os andares – que são exatamente 333. Quando acorda no andar nº 122, Goreng vê que a comida há muito tempo acabou, e ali nem é a metade da estrutura – exatamente como no mundo real, que produz alimentos o suficiente para toda a população mundial, e mesmo assim a fome é um problema sólido. Engraçado notar que, no andar 122, Trimagasi amaldiçoa a todos os de cima por comerem tudo o que a plataforma carrega, no entanto, quando está em cima, não pensa duas vezes antes de fazer exatamente o mesmo que viria a condenar. É um círculo vicioso e asqueroso de hipocrisia. O que resta para as centenas de pessoas dali para baixo? Definhar de fome o resto do mês, suicídio ou canibalismo. É claro que a obra não é discreta em abordar essas opções, em cenas que arrepiam.

O primeiríssimo diálogo do filme é “O mundo é dividido em três tipos de pessoas: aqueles que estão no topo, os que estão no fundo, e os que caem”. Não apenas uma definição bem literal da prisão, a fala é uma ilustração perfeita do sistema. Os que estão no topo estão confortáveis, afinal, conseguem comida. Os que estão no fundo querem desesperadamente mudanças. E há os que caem. Sejam os que se atiram poço abaixo ou Goreng, que decide descer pela plataforma para chegar até o último andar e subir até o nº 0 quando a plataforma retornar seu trajeto.


Segundo Foucault, o poder é uma força vertical, exercida de cima para baixo, e atravessa todos os espaços existentes na sociedade. "O Poço" é a construção cinematográfica dessa definição – bem ao pé da letra quando abraça a ideia do “vertical”. Então, os que estão em cima dessa estrutura não querem mudanças, pois jamais abdicarão seus poderes; os que estão embaixo não possuem recursos para produzir essa mudança; e os que caem são os que arriscam tudo para tentar quebrar o status quo. É claro que todos esses conceitos geram várias teorias para explicar a mitologia do longa.

Uma das mais interessantes é que ali seria o intermédio entre o Paraíso e o Inferno. O número de andares não pode ser por acaso: se existem 333 pisos, com duas pessoas em cada um, 666 estão ali dentro, o número do Diabo. Quanto mais abaixo, mais próximo do Inferno você está. A perfeição do andar nº 0 remete à glória de deus ao fazer suas criações, irretocáveis em todos os detalhes. Ele provém tudo que todos precisam e todos poderiam desfrutar do Reino do Céu (o prato favorito de cada um, o único luxo disponível), mas o homem em toda sua ganância está pronto para destruir. Os presos estão ali sendo testados, indo do Céu ao Inferno em busca de uma maneira que os una. Porém, como diz Goreng, nenhuma mudança é espontânea.

Era de se esperar que o final da obra não trouxesse algo conclusivo. Deixando o espectador tirar suas próprias conclusões e imaginar o destino dos personagens, há um problema latente da maneira que o filme escolheu amarrar seu desfecho: ele cria uma sensação de que há algo maior do que realmente existe. Há todo um reforço na ideia de uma “mensagem” a ser levada até o andar nº 0, como se fosse algo enviado pelos deuses ou um simbolismo folclórico além da superfície do ecrã, o que é uma perfumaria bem desnecessária. Parece que o roteiro tem medo de assumir a simplicidade do seu final e tenta torna-lo mais grandioso do que realmente ele é.

Por se tratar de uma produção espanhola, “O Poço” impressiona pelo requinte técnico – e é a estreia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, mais um motivo para potencializar a boa realização da película. Longe de estúdios bilionários de Hollywood, a concepção visual da trama é realizada fantasticamente; quase inteiramente filmado em um único cômodo, os efeitos especiais são essenciais para a imersão da plateia diante da estrutura, seja nos momentos em que a plataforma magicamente atravessa os pisos, seja nos takes que mostram o quão grande é o poço. E isso reflete também na própria concepção ideológica do todo.

As discussões de “O Poço” soam óbvias – é só você ler a sinopse que a fundamentação central da fita estará presente. Sim, esse é um filme que quer mostrar como a estruturação do Capitalismo é falha, desumana e cruel – e provavelmente você, proletariado, já sabe disso. Do adestramento do corpo pelas prisões à distribuição desigual de recursos, a metáfora cinematográfica do filme preenche todos os requisitos esperados, todavia, há muito mais a ser percebido ao instigar debates sobre as relações entre diversas cenas e o panorama da sociedade contemporânea, uma das melhores funções da Sétima Arte. Uma mistura de “O Cubo” (1997), “Jogos Mortais” (2004) e “O Anjo Exterminador” (1962), “O Poço” é uma alegoria brilhantemente terrível da natureza humana que gera indagações ao mesmo tempo que executa um trabalho de gênero delicioso.

Obs.: parabéns para a Netflix pelo timing assustador ao lançar um filme sobre a importância da divisão de mercadorias exatamente no meio de uma pandemia que causou desinformação e panic buying, esgotando produtos que poderiam ser divididos igualmente. Você aí conseguiu encontrar álcool em gel em algum lugar?


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