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Crítica: “Casa de Antiguidades” frustra quando não atinge seu potencial de resistência

Longa de estreia de João Paulo Miranda tinha tudo para ser ativa voz contra o fascismo, mas não vai até aonde poderia


Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O principal nome brasileiro na Mostra de Cinema de São Paulo é "Casa de Antiguidades", estreia do diretor João Paulo Miranda Maria. O longa foi escolhido para a seleção do Festival de Cannes 2020 - que veio a ser cancelado por conta da pandemia -, angariando ainda mais atenção ao redor da obra, um dos fortes nomes nacionais para a representação do país na categoria "Melhor Filme Internacional" no Oscar 2021.

A obra é estrelada por Antônio Pitanga no papel de Cristóvão, um idoso trabalhador que saiu do Goiás para uma fábrica de leite em uma colônia alemã do sul. A escolha do ator, por si só, é emblemática. Pai da também atriz Camila Pitanga, Antônio é um dos maiores nomes no Cinema Novo brasileiro, internacionalmente conhecido pelos trabalhos ao lado de Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Cacá Diegues. Cristóvão é o primeiro papel do ator em quase uma década, e sua retomada é um acerto não apenas em termos de técnica performática, mas também como misticismo ao redor de sua pessoa.


Uma das primeiras cenas é o personagem conversando com seu chefe. O patrão, dono da fábrica, fala majoritariamente em alemão e diz como, mesmo estando há anos no local, Cristóvão terá o salário reduzido graças à "crise". "Ele é preto e velho, onde acharia algo melhor que isso?", diz o presidente do local para a secretária, que não traduz a fala. Só o público é cúmplice do que real está acontecendo ali.

A vida de Cristóvão do lado de fora da fábrica é bastante solitária. Ele não pega o ônibus para voltar para casa, preferindo ir a pé (os motivos ficam na mente do público). Em casa, sua única companhia é um cachorro com três patas, que é torturado por um grupo de crianças empenhado em infernizar a vida do homem. Em meio a tanta turbulência, uma casa abandonada próxima à sua começa a manifestar objetos que não estavam previamente ali, e acaba se tornando uma segunda casa para Cristóvão.

"Casa de Antiguidades" remonta algumas características presentes no Cinema Novo, como a fusão entre o cultural e o espacial - lembra do drone em formato de nave em "Bacurau" (2019)?, pois é, mesma coisa. A roupa de trabalho de Cristóvão mais parece um traje de astronauta, e, divertidamente, há referências charmosas ao redor da construção imagética, como no momento em que o protagonista observa uma máquina da fábrica com brilhantes luzes vermelhas que refletem em seu "capacete" como em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Essa dicotomia visual é o primeiro elemento da mistura entre o "real" e a "fantasia" que permeia a atmosfera da sessão. 

E, assim como "Bacurau", "Casa de Antiguidades" tem como base textual um câncer da sociedade brasileira: o racismo. Cristóvão está no seio de um movimento separatista, que deseja retirar a "Região Sul" (entre aspas porque, malandramente, o movimento puxa São Paulo no bolo) do resto do país com o argumento de que o "Norte" atrasa a nação pela sua ignorância e corrupção. A coisa é tão absurda que a reunião que evoca com bravura o amor à pátria sulista é feita em alemão. O palanque que Hitler usava nos anos 40 deve estar orgulhoso.

O protagonista assiste a tudo sem entender uma palavra, claro, e é coagido a assinar um abaixo-assinado defendendo a independência da região. Ele, também, ganha uma camisa com a bandeira do "novo país", que é rasgada para servir de curativo para o pobre cachorro. Cristóvão se sente um verdadeiro alienígena em meio àquelas pessoas - seja pela sua cor ou pela sua língua. Todavia, ele não abaixa a cabeça, mesmo sufocado com a uma pressão cultural da maioria. Durante uma cantoria alemã, ele levanta o berrante e interrompe a celebração. Aqui é Brasil, meu irmão.


"Casa de Antiguidades" é um filme marcado pelo silêncio. Cristóvão se deixa sumir em meio às suas memórias, emoções e solidão, já condicionado a saber que sua existência naquele lugar é daquela forma. A tal casa, com os objetos que magicamente aparecem, acaba sendo uma extensão de sua própria consciência, produzindo artefatos que, de alguma forma, se conectam com a história do protagonista. 

Até aqui, a fita demonstrava bastante poder perante as temáticas escolhidas, principalmente pelo seu aspecto folclórico (o Brasil é rico demais em lendas e mitos, sendo terreno fértil para o Cinema), porém, a partir do momento em que a casa é explorada com mais profundidade, a narrativa começa a se perder. Várias tramas são abertas e esquecidas pelo caminho ou não finalizadas com relevância - como toda a situação da mulher no bar, ou as crianças que atormentam o protagonista, ou a própria fábrica e o movimento separatista. Até mesmo a relação do achado do protagonista com a casa não é tão explicada - ela simplesmente está lá.

Vamos descendo por um buraco onírico cada vez que Cristóvão vai achando algo da casa - como o pôster e a pintura rupestre por baixo de um xingamento pichado na parede. Dá para entender muito bem o que está acontecendo - como na sequência em que ele se transforma em um boi -, no entanto, muitos porquês não existem. Lá pela metade da película, deixei de tentar manter uma linha de raciocínio e simplesmente embarcar na viagem do filme e observar quais caminhos ele me levaria - e o trajeto foi se tornando cada vez menos motivador.

"Casa de Antiguidades" é um dos tipos de filmes mais frustrantes que existem: aqueles que almejam ser desvendados e não produzem uma vontade no espectador de tentar entender. É desapontador uma obra trazer tantos pontos de discussões urgentes e sabermos que eles poderiam ter um impacto muito maior. Por exemplo, há várias pichações com o malfadado número 17 na mesma casa que é usada como ameaça para Cristóvão, um símbolo de resistência contra o fascismo que poderia ter uma voz muito mais incisiva com escolhas mais coesas nesse trabalho que, apesar dos muitos méritos, não é sólido o suficiente para ser memorável. Agrega no Novíssimo Cinema Brasileiro, que põe o dedo nas mazelas contemporâneas (como "Que Horas Ela Volta?", 2015; "As Boas Maneiras", 2017; e "Temporada", 2018), mas não se destaca à altura do potencial.


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