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Crítica: “Nova Ordem” e o terror do real com o nascimento de uma ditadura

Polêmico como todo filme de Michel Franco, "Nova Ordem" não mede limites na exposição de um golpe de Estado

Michel Franco é um daqueles diretores que não importa o projeto, se tem sua assinatura, vai chamar a atenção. E o motivo é bem simples: seus filmes são sempre controversos. Com “Nova Ordem” (Nuevo Orden), sua nova empreitada, não foi diferente. Desde a estreia no Festival de Veneza 2020, onde ganhou o Leão de Prata (equivalente ao segundo melhor longa da competição), houve muita expectativa – para o bem ou para o mal – ao redor da película.

Não por acaso, “Nova Ordem” foi o filme de abertura da Mostra de Cinema de São Paulo 2020 – e teve ingressos esgotados. Ele segue a mesma fundamentação de todo o cinema de Franco: explanar como somos capazes dos piores atos com nosso próximo, então, nenhum dos seus filmes são sessões agradáveis, do estudo sobre o bullying em “Depois de Lúcia” (2012) ao drama familiar de “As Filhas de Abril” (2017) – ambos na minha lista dos 100 melhores filmes da década.


“Nova Ordem” é aberto com vários fragmentos de imagens, um prelúdio dos acontecimentos que virão. Logo em seguida, entramos no casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind), uma jovem de classe alta. Toda a família e convidados aproveitam o pomposo casamento, trazendo presentes caríssimos que são guardados dentro do cofre particular da casa.

Do lado de fora, não tão longe do alcance dos seguranças na porta da recepção – que guardam a entrada e saída de autoridades na festa –, uma enorme manifestação acontece. Os revoltosos estão destruindo o que encontram pela frente em protesto à imensa desigualdade social. Há um detalhe importante para ser falado: o filme se passa em 2021.

Sim, no ano seguinte, porém, de qualquer forma, no futuro. “Nova Ordem” é uma distopia. Melhor dizendo, “Nova Ordem” é o nascimento de uma distopia. A fita tem vários pontos focais que, ao longo da exibição, vão se revezando, no entanto, o primeiro ato é quase exclusivo dentro do casamento. Vemos um fiel retrato da burguesia, e o acontecimento em si só é reflexo irretocável de como o roteiro deseja estudar o abismo social: os ricos estão tão presos em suas bolhas que fazem um casamento em meio a uma crise social fortíssima.

E isso se dá graças à essa falsa bolha em que eles vivem. Eles estão tão certos de que estão em segurança que não faz diferença a manifestação ali próxima. Seus altos muros sempre os guardarão. Essa bolha é momentaneamente perfurada com a chegada de um ex-empregado da mansão: a esposa do homem precisa de uma caríssima e urgente cirurgia, e ele vai até a casa dos antigos patrões pedir por dinheiro.


Cada membro da família da protagonista age de uma forma diferente. A mãe consegue arrumar parte do dinheiro, mas é um pouco ríspida ao informar que aquilo é o suficiente. O pai e o irmão querem que o homem desapareça da casa e Marianne é a única verdadeiramente preocupada com a situação. Aqui, me peguei ponderando sobre vários mecanismos que estão além da narrativa imposta pelo filme.

Dentro das discussões sociais que estamos inseridos, principalmente no atual momento, há uma forte rejeição contra a figura do burguês. É claro, isso permeou a história de qualquer nação capitalista, porém, essa impressão é latente nos dias de hoje, essa era da problematização. E isso é um efeito necessário, afinal, a distribuição precária de riquezas é uma das maiores mazelas desse sistema tão falho. Contudo, ao sentar diante de “Nova Ordem”, quase involuntariamente separamos os personagens da seguinte forma: os ricos são os vilões e os pobres as vítimas.

Quando Marianne decide fazer o que pode para salvar a vida do empregado, já pensamos “olha lá o filme querendo dizer que nem todo rico é ruim”. E sim, pasmemos, essa afirmação é verdadeira. Diante da arte (e vou deixar só nesse campo, já que na vida real seria muito complexa tal ideia), costumamos cair em binarismos fáceis que por vezes deturpam nosso entendimento diante de alguma obra – e me enquadro aqui também. Foi trabalhoso me desvincular da ideia de que toda aquela burguesia é feita por pessoas odiosas e tentar me colocar no lugar das mais diferentes existências explanadas pela película. As pessoas são não totalmente más ou totalmente boas, e essa complexidade não pode ser deixada de fora quando analisamos nossos comportamentos.

Graças a uma série de (inteligentes) encontros e desencontros, Marianne sai da festa antes dela ser invadida pelos manifestantes fortemente armados, que realizam um verdadeiro massacre. Eles roubam, humilham e matam sem pensar duas vezes, e a sequência é dirigida com absurdo poder – e desde de antes do estopim. Franco vai aumentando o fogo debaixo dessa panela de pressão com elementos banais, mas que fazem toda diferença para quem assiste: é uma torneira jorrando água verde, uma sirene gritando ao fundo ou um carro de polícia passando às pressas na frente da casa. Há uma movimentação ao redor da festa que vai engolindo-a, e a tensão é milimetricamente construída quando a plateia sabe que a desgraça está a minutos de acontecer – e os personagens não só não têm ideia do caos iminente como serão cercados sem escapatória.


Tal construção me remeteu bastante ao filme “Mãe!” (2017), última obra-prima de Darren Aronofsky. Ambos os filmes fazem progressões de ansiedade bem similares e se utilizam na violência desenfreada para chegar no mesmo ponto. A partir do momento em que Marianne sai da casa, começamos a ter ciência da dimensão do que está acontecendo – todavia, como é de praxe no cinema de Franco, as coisas vão ainda mais longe. Os militares aproveitam o caos e crise para dar um golpe de Estado e assumir o poder. Soa familiar?

O ritmo do filme é alucinante, a fim de espelhar uma realidade que a América Latina conhece tão bem: a ditadura – e, confesso, tive que parar o filme em alguns momentos para conseguir respirar. As coisas acontecem rápido demais e, quando percebem, os personagens estão presos em um governo violentamente opressor e que trata as pessoas como objetos de extração de interesses. Vários são sequestrados, torturados, estuprados e mortos não apenas para o bel-prazer dos militares, mas também como chantagem para as famílias: elas devem pagar resgates com valores absurdos.

Daí para frente a situação só piora. Franco, muitos poderão dizer, chega a ser sádico com o terror desenfreado que atira em cima de seus personagens, mas nada é longe demais do que qualquer ditadura não conheça. Aqui mesmo no Brasil, sabemos dos horrores que até hoje maculam nossa história. É uma temática assustadora, e visualizar até onde vai a maldade das pessoas em posição de extremo poder é de causar calafrios, porém, deve ficar claro essa impressão para que tenhamos cuidado com nossas democracias.

“Nova Ordem” é mais uma enciclopédia de Michel Franco sobre a maldade humana, mas dessa vez com fortíssimo viés político. Sua moral é óbvia: em um mundo sem a menor empatia e afogado em egoísmo e corrupção, todos nós perdemos. Em meio a uma onda do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo que vêm assolando inúmeras nações mundo afora, a distopia do longa choca pela gigante proximidade com o real. Assistir a este nascimento de uma ditadura termina tão forte, alarmante e pretensioso graças à escolha do diretor de não dar uma aula de História no ecrã, e sim realizar um verdadeiro filme de terror.


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