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A revolução das máquinas: o fim do Daft Punk e sua jornada em busca de humanidade através da arte

Essenciais para a compreensão da música, não apenas pop, como conhecemos hoje em dia, dupla chega ao fim após 28 anos de carreira.

Quando Daft Punk rompeu com o jejum de oito anos desde o disco “Human After All” no aclamado “Random Access Memories”, eles romperam também com o exercício de futurologia que envolveu toda a sua discografia para, desta vez em especial, olhar para trás, reencontrar suas influências e, em suas próprias palavras, “levar vida de volta à música.”

Era fazer o caminho contrário. Um desligue das máquinas. Quase um manifesto contra muito do que eles mesmo introjetaram dentro da cultura pop e da música eletrônica, de uma forma que, ainda assim, soava exatamente como tudo o que eles levaram as últimas décadas para construir. Um trabalho definitivo, arriscamos dizer.

Apesar dos capacetes e da estética robótica, a jornada artística da dupla formada por Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter sempre carregou essa antítese até poética: buscavam a humanidade através de seus sintetizadores, como se, quanto mais se aprofundassem nessa programação sempre tão exata da matemática música pop, mais perto estivessem de nos decodificar.

Só que a indústria seguiu o caminho oposto. A internet aconteceu, as plataformas digitais se tornaram o carro-chefe do mercado e, ainda lá em 2013, era só o começo do que entenderíamos como a realidade atual, em que algoritmos e, por sua vez, inteligências artificiais praticamente definem o que é ou não música boa e como ela deve ou não nos impactar. Para o ritmo e perfeccionismo do duo francês, que não se preocupou em subverter as expectativas na virada da década de 2000 para lançar o segundo disco “Discovery”, cinco anos após entrarem no radar mundial com o debut “Homework”, nada disso fazia sentido.

Para além da iniciativa de devolver a vida à música através de seu último álbum, Daft Punk fez sua transição definitiva para a era digital dentro de um movimento que visava transformar a maneira como se consumia música na internet. Em 2015, se uniram ao rapper e empresário Jay-Z na empreitada que resultou na plataforma de streaming Tidal: uma alternativa aos principais serviços da época, que tinha como mote a maior valorização aos artistas e a qualidade de suas obras. Seu lançamento foi um evento grandioso, apoiado por gigantes da indústria de diferentes gêneros e gerações, mas o que tinha tudo para ser um divisor de águas, simplesmente morreu na praia.

O legado da dupla em termos de sonoridade, por sua vez, teve um destino muito mais promissor. “Random Access Memories” e sua lista de colaborações e hits com nomes que foram de Nile Rodgers e Giorgio Moroder ao Pharrell Williams redefiniram o rumo da indústria a longo prazo e anteciparam o revival da disco music, nos últimos anos presentes na estética e trabalho de artistas como Dua Lipa, Kylie Minogue, Miley Cyrus e The Weeknd. O cantor de “Blinding Lights” foi, inclusive, um dos últimos responsáveis a arrancar algum som inédito dos franceses, que colaboraram com o artista nos hits “Starboy” e “I Feel It Coming”, presentes no disco lançado pelo canadense em 2016.

E se falarmos de seus trabalhos anteriores, podemos ir ainda mais longe, traçando paralelos que vão do pop mainstream ao eletrônico underground. Do som aos visuais às propostas multiplataformas tão frequentes na indústria atual, tem um pouquinho de Daft Punk em praticamente tudo o que consumimos. “RAM” só fez atualizar esses padrões, como uma forma de relembrar-nos do que os inspiraram nos áureos anos 90 e, tal qual seus registros anteriores, oferecerem uma direção pela qual os artistas que colavam da sua lição de casa poderiam seguir.

Tão repleta de fórmulas literalmente matemáticas, que explicam seus ritmos, batidas e andamentos, a música, principalmente pop, tem como um de seus fatores essenciais o timing em que acontece. Nessa lógica, tão importante quanto saber quando lançar um single, um disco ou videoclipe, é reconhecer a hora certa de partir.

E é neste tom, tão fúnebre quanto célebre, que eles partem e se decompõem sob a característica mais singular do som: o silêncio. Ao longo de oito minutos, o curta intitulado Epílogo, parte do filme  “Electroma” (2006), dá um desfecho para a grandiosa jornada dos robôs que passaram as últimas décadas em busca da sua humanidade. Eles caminham por um cenário vazio, deserto. Por vezes, se distanciam, já não estão no mesmo ritmo. Até que, após certa hesitação, assumem um acordo silencioso. Prestes a ativarem um dispositivo de autodestruição.

O silêncio, ora reconfortante, ora incômodo, é tomado pelo crescente coral de sua música com Paul Williams em “Random Access Memories”, “Touch”. No disco, a música fala sobre uma memória distante que desperta uma esquecida necessidade. A personagem se reconecta às suas lembranças de fotos, de versos perdidos de uma canção e da sensação do toque, ao que percebe precisar de algo além do que possui em seu introspectivo isolamento para se sentir real. A jornada em busca de humanidade outra vez.

Neste capítulo final, entretanto, os versos surgem quase como um afago de otimismo tanto para nós quanto para seu interlocutor, que repete por inúmeras vezes: “aguenta firme, se o amor é a resposta, você está em casa.” Em sua última repetição, porém, há uma quebra abrupta: a mensagem é interrompida e a tela é apagada. Teria o processo de decomposição sido concluído? Até o momento, não há qualquer log de um sistema em atividade que possa nos dizer.

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