"Medida Provisória" é o filme de estreia de Lázaro Ramos na cadeira de direção de ficção. Baseado na peça "Naníbia, Não!" (2009) de Aldri Anunciação, o enredo se passa em um futuro brasileiro próximo. O governo capengamente tenta criar uma reparação - seja social, seja econômica - pelos anos de escravidão, e, após várias tentativas falhas, a solução foi feita por meio de uma medida provisória que obriga todas as pessoas pretas do país a serem imediatamente levadas de volta para a África. Pretas não, todos com "melanina acentuada", como a nova denominação para pessoas retintas.
O longa de Lázaro vai de mãos dadas com "Divino Amor" para um futuro assustadoramente próximo que eleva à máxima potência uma pequena fagulha opressora que já se instalou em nosso país. É claro que o projeto entregue com a boca cheia de dentes de políticos passa longe de uma reparação, e sim um projeto mais do que direto de higienização social, a fim de deixar o Brasil um país de brancos - o mesmo país que era originalmente povoado por índios e não por brancos, mas tá bom.
A premissa do roteiro é mais do que instigante - é difícil ler a sinopse e não querer sentar pelos 103 minutos a fim de saber como essa distopia se desenrolará, principalmente quando é comparada com fenômenos midiáticos como a série "Black Mirror" (2011-) e o vencedor do Oscar "Parasita" (2019). E é aqui que se inicia o grande "porém" de "Medida Provisória". Confesso que não tinha total certeza se este era ou não o primeiro filme de Lázaro, afinal, sua carreira na tevê e cinema é vasta e o convite para sentar do outro lado da câmera já deveria ter acontecido mais cedo, mas sim, é a estreia do ator como diretor, e isso fica claríssimo durante quase todos os segundos de projeção.
Ultimamente ando com um debate interno (sem ainda grandes resoluções) sobre o papel do Cinema como arte social. Esse debate se inflamou após assistir a "Red Rocket" (2021), uma película que segue um personagem principal completamente asqueroso, todavia, sem um julgamento escancarado por parte da obra. Seria obrigação do Cinema uma exposição claríssima e sem resquícios de dúvidas sobre o bem e o mal? É dever do cineasta julgar atitudes problemáticas de seus próprios personagens, com o intuito de não fomentar na vida real pessoas como as da tela? Enquanto acho que deve haver responsabilidade na arte, também não vejo o Cinema como uma escola audiovisual. Onde então reside esse limiar? Qual a medida dessa balança? Sinceramente não sei.
Em "Medida Provisória", o efeito é o extremo oposto: é tudo tão exposto que se torna didático. Depois de um confuso primeiro ato, com milhares de informações jogadas de maneira desconexa, um eixo é encontrado quando a medida provisória do título é instaurada. A partir de então, a falta de maturidade na linguagem cinematográfica dos envolvidos fica latente quando essa linguagem é utilizada da forma mais básica possível.
Vamos voltar lá nos fundamentos do Cinema. O Cinema é chamado de "Sétima Arte" desde 1923 quando Ricciotto Canudo escreveu o "Manifesto da Sétima Arte", e isso se deu pelo Cinema unir todas as outras seis em uma só mídia: Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura. E se formos entrar em cada elemento de cada uma dessas artes, o cinema tem uma infinidade de recursos para transmitir suas mensagens: são imagens, sons, cores, formas e transições que, juntas, criam sensações. Para resumir, o Cinema mostra, não diz.
Isso não quer dizer que os diálogos são supérfluos no Cinema, não é esse dizer - todos os filmes não precisam ser como "A Gangue" (2014), que não há um só diálogo ou legenda na tela, cunhado unicamente em imagens. O grande problema de "Medida Provisória" é a histriônica falta de sutileza: absolutamente tudo precisa ser dito detalhadamente ao invés de mostrado. Enquanto a duração corria pelo ecrã, pensava em "Bacurau" e como o brilhante roteiro falava tanta coisa sem deixar muitos pontos explícitos, como a valorização da história e da cultura em detrimento da religião para o povo "gente" (denominação dada para quem nasce em Bacurau). O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles encontra o balanceamento entre o que precisa ser dito e o que deve ser mostrado, e isso é conseguido a partir da maturidade semiótica da arte que é o Cinema, algo que falta em "Medida Provisória".
Talvez o exemplo mais cristalino dessa falta de domínio cinematográfico está na sequência em que um personagem branco e um personagem negro são assassinados ao mesmo tempo. Quando se utiliza de um dos elementos mais poderosos da linguagem fílmica, a montagem, o filme cai em uma ambiguidade que não soa muito certeira: enquanto uma das mortes é uma reação, a outra é puro ódio, então como colocar ambas em um mesmo patamar?
A principal trama da fita está no fato de que os policiais não podem entrar nas casas das pessoas pretas, tendo que capturá-las para o exílio somente nas ruas. O protagonismo do filme se divide entre três personagens: o advogado Antônio (Alfred Enoch, sim, o Dean Thomas da franquia "Harry Potter", 2001-11) e seu primo André (Seu Jorge) estão escondidos em casa enquanto Capitú (Taís Araújo), esposa de Antônio, foge do hospital em que trabalha e para em um "afrobunker", esconderijo de pessoas pretas que criam um movimento contra a "devolução". A separação da família, que não sabe do paradeiro um do outro, é o cerne da trama, enquanto o país entra no caos da caça de pessoas pretas.
Tirando esses três personagens, todos os outros sofrem de uma pobreza de desenvolvimento terrível, como a Isabel de Adriana Esteves, uma Dolores Umbridge que tem receio de falar que gosta de café preto. E claro que não poderia faltar a vizinha branca que diz que já sofreu """racismo""" pelo seu cabelo e que adora pessoas pretas, a empregada dela é até uma; e o diálogo de "nossa como eu queria ter a pele negra", já que é muito legal """querer""" ser preto até sofrer tudo o que eles passam, não é mesmo?
No entanto, é inegável a importância de toda a mensagem, por mais mastigada que ela seja. Me pergunto (com uma leve certeza) se essa mensagem vai atingir quem deveria atingir, afinal, a massa reacionária vai evitar ferrenhamente qualquer aproximação com a obra. Indiferentemente, por mais cansativo que ainda seja para pessoas pretas falarem de racismo (2022, pelo amor de deus), enquanto houver a necessidade, a mensagem deve ser dita para todos os lados.
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