Existe um quadro na parede do meu quarto que informa bem uma das certezas que possuo; nele há a afirmativa "In A24 we trust", quase um mantra. Se você minimamente acompanha o Cinematofagia, já deve saber que a frase é (quase sempre) lei por aqui. Quando a produtora vai para o terror então, é um dos pilares de sustentação do gênero na modernidade - nem preciso discorrer sobre nomes como "A Bruxa" (2016), "Hereditário" (2018), "Clímax" (2019) e "Midsommar" (2019), certo?
Na corrente década, a A24 já prometeu dois novos terrores para se unirem nessa seleta lista de preciosidades, "Santa Maud" (2020) - que desde janeiro habita na lista de melhores do ano, spoiler alert - e "Ovelha" (Lamb), que acaba de chegar na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. "Ovelha" compartilha várias similaridades entre outras fitas da produtora, que já é elemento fundamental da sua filmografia: é o filme de estreia de Valdimar Jóhannsson, diretor e roteirista islandês. A A24 tem apostado em cineastas estreantes em diversos gêneros, acertando com louvor no terror - "A Bruxa", "Hereditário" e "Santa Maud", por exemplo, foram todos filmes de estreia de seus respectivos diretores, e essa característica diz muito não só na forma como a produtora trabalha (apostando em novos talentos) como também na expertise em selecionar projetos de sucesso.
O cordeiro recém-nascido é, de alguma maneira, um híbrido de ovelha com humano - sua cabeça e metade do tronco, até um dos braços, é composto de anatomia ruminante, enquanto o resto do corpo é humano. María e Ingvar acabam "adotando" a criatura e cuidando como se fosse um filho. A faixa temporal na película não é diretamente delimitada, acompanhando com certa precisão a partir do crescimento de Ada (o nome do bichinho), que dorme em um berço do lado da cama do casal.
A calmaria e felicidade da nova família começa a ser perturbada pela ovelha-mãe de Ada, que passa o dia do lado de fora da casa berrando atrás da cria que foi, de certa forma, roubada. María é a mais afetada pelas perturbações do bicho, até que perde a paciência e mata a ovelha - o que ela não sabia era que o irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), acabara de chegar na fazenda e viu todo o ocorrido.
Pétur perfura a bolha de fantasia quase histriônica da obra e traz mais elementos dramáticos que dão mais luz à trama. Ele, sempre que o irmão vira as costas, faz investidas sexuais em cima de María, que, apesar de negar, não parece se surpreender, o que demonstra que há uma história ali. Decidido a dar um ponto final naquele absurdo, Pétur tenta matar Ada, contudo, na hora H, desiste, se transformando em uma figura paterna. Aqui acende uma luz vermelha.
Talvez, e esse é um enorme "talvez", Ada (a filha morta) não era de Ingvar, e sim fruto de uma traição de María com Pétur. Com a chegada de Ada (a pequena ovelha), María a acolhe como sua em uma desesperada tentativa de reparação do passado - ela seria "genuinamente" filha do casal. O encantamento pela resolução e substituição do erro é tão grande que Ada se torna o ímo da felicidade dos dois, que a defendem a qualquer custo. A montagem e fotografia (belíssima, mas isso não é difícil, ligar uma câmera em qualquer lugar da Islândia é garantia de imagens perfeitas), no momento em que Pétur está com a arma apontada para Ada, foca na troca de olhares entre o homem e a criatura, e há uma áurea de ternura ali, comprovada pelo próximo corte em que Ada está dormindo no colo de Pétur. Ele viu ali a representação da filha perdida.
Os nomes escolhidos para os poucos personagens não devem ter sido sem propósito. "Ada", em dialeto do povo Aro, na África, significa "a primeira filha", e "nobreza" em origem alemã. "Ingvar" é um antigo nome escandinavo que significa "protegido por deus". "Pétur" é a derivação islandesa do nome "Pedro", que foi um dos 12 apóstolos de Cristo. E "María" dispensa maiores descrições. Até o nascimento de Ada remonta a vinda do salvador na manjedoura.
No clímax da obra, finalmente vemos quem é o pai verdadeiro de Ada, a criatura que acompanhamos no prólogo: uma mistura de homem com bode, ele mata Ingvar e leva Ada embora, para o desespero de María, que perde o marido e a filha em um só golpe. Se você assistiu "A Bruxa" ou tem conhecimento das escrituras bíblicas, a figura da pai é ligada diretamente com Satanás, em uma mistura alucinada dessa mitologia específica - o diretor ainda afirmou que o enredo não é baseado em algum folclore islandês ou da região. Ada pode ter sido uma redenção para a família, mas ela não era deles. Ao ser roubada, a cordeirinha sai de glória à ruína num piscar de olhos.
É bem claro que um longa como "Ovelha" não será de largo apelo popular por inúmeros motivos - o ritmo lento, a ambientação contemplativa, as alegorias complexas, a falta de explicações diretas e até mesmo a língua acabam afastando -, sendo um daqueles filmes que precisam ser digeridos para não ficarem na superfície do "o que diabos foi isso?". Mais um pilar na nova onda de horrores que focam no drama ao invés da gratuidade que muitos exemplares do gênero acabam caindo, "Ovelha" é um estudo declaradamente estranho sobre a morte, a culpa e como encontramos nas mais diferentes coisas um motivo para nos trazer a felicidade. No fim das contas, a moral é que a natureza é a maior mãe de todas, e com ela é olho por olho e dente por dente.