Mostrando postagens com marcador Especial Oscar 2020. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Especial Oscar 2020. Mostrar todas as postagens

Análise: “Parasita” e a coroação de uma das mais insanas temporadas da história do Oscar

Em primeiríssimo lugar, nas palavras da Aja, I don't wanna be the one, but I'm gonna be the one: "Parasita" levou o Oscar de "Melhor Filme" e eu avisei. Em uma reviravolta histórica, a Academia mais uma vez olhou para toda a temporada e falou "Huuum, não, obrigado", coroando "Parasita" assim como deu o prêmio máximo para "Moonlight" quando "La La Land" havia vencido absolutamente tudo. Vamos então mergulhar nos resultados e o que eles nos dizem sobre os rumos que o Oscar decidiu tomar.

É apenas a segunda vez que a Associação de Produtores (PGA) e a de Diretores (DGA) erraram ao mesmo tempo o vencedor do Oscar de "Melhor Filme" e "Direção" - ambos foram para "1917", o absoluto favorito da temporada. A cara do Sam Mendes, diretor de "1917", quando perdeu o Oscar de "Direção" é um bom resumo da ruptura da Academia com o resto das premiações, já que ele havia levado tudo até então - e empatado com o Bong Joon-ho no Critics' Choice. Pelo menos ele já ganhou um por "Beleza Americana", porque "1917" é fantástico, mesmo não sendo o melhor que "Parasita".


A temporada do Oscar 2020 foi uma verdadeira montanha-russa. Favoritos surgiam e caíram; crítica apontando para uns, indústria para outros; foi uma viagem. Antes do Globo de Ouro, a primeira entre as grandes premiações e que oficialmente abre a corrida dourada, a briga era entre "O Irlandês" e "História de um Casamento", os queridinhos da crítica que já eram chamados de Oscar winners...... aí o Globo desceu a regra: não estamos interessados na Netflix. "História de um Casamento" levou apenas um enquanto "O Irlandês" saiu de mãos abanando.

E vamos aqui falar de "O Irlandês". O filme de máfia de Scorsese era a maior certeza da temporada e ganhou o montante de ZEEEERO prêmios relevantes em todas as premiações televisionadas - Globo de Ouro, SAG, Critics' Choice, BAFTA, Oscar - vencendo somente um contestável "Melhor Elenco" no Critics'. Esse é o segundo filme do diretor a ser indicado a 10 Oscars e vencer nenhum - "Gangues de Nova Iorque" foi o primeiro, e ambos já estão no panteão de derrotas em toda a história, perdendo apenas para "Momento de Decisão" e "A Cor Púrpura", que perderam as 11 categorias que foram indicados. "O Irlandês", inclusive, é o único entre os indicados a "Melhor Filme" a não sair com algum careca dourado. Força, Pablo Villaça, te amamos.


"História de um Casamento" acabou sofrendo da síndrome de "Nasce Uma Estrela": ambos abriram a janela do Oscar com aclamação, prêmios e o indicativo de fazer a limpa na noite mais importante do Cinema, mas acabaram perdendo força e levando apenas uma estatueta. Cada um com seus motivos particulares, mas interessante ver como favoritos podem mudar drasticamente em questão de meses - e, claro, há a questão da Netflix, que você pode entender melhor aqui.

Com os dois saindo de cena, foi a vez de "Era Uma Vez em Hollywood" assumir a dianteira. O nono filme de Tarantino levou o Critics' Choice de "Melhor Filme", além "Melhor Filme: Comédia" no Globo de Ouro. O diretor estava sedendo para ganhar seu terceiro Oscar de "Melhor Roteiro Original" e viu ser deixado para trás quando "1917" chegou botando banca e fazendo a limpa em seguida - ganhou sete BAFTAs, incluindo "Melhor Filme". Tarantino é tão viciado em pés que foi pisado no Oscar.


Assim como rolou em 2018, todos os quatro vencedores do Oscar de atuação venceram igualmente todas as premiações televisionadas de uma vez, o que indica como a Academia ainda se mantém conservadora nesse departamento, sem espaço para ousadias. O que não é algo exatamente ruim, porém, previsibilidade não é algo que pode ser apontado sobre a edição.

"Parasita" é o primeiro filme na história do Oscar a vencer sem ter diálogos em inglês. Claro, filmes mudos já venceram, mas eram ou produções americanas ou possuíam intertítulos em inglês. De alguma forma, eram filmes voltados para o mercado de língua inglesa, algo que "Parasita" está longe de ser. E demorou "apenas" 92 anos para isso, muito bem. A Academia é tão resistente à filmes estrangeiros que somente 11 foram indicados dentro dos 563, e "Roma" perdeu ano passado exatamente por ser estrangeiro (e por ser da Netflix).

Bong Joon-ho se mudou da Coreia para Los Angeles a fim de se dedicar completamente à campanha de seu filme e se tornou a segunda pessoa com mais vitórias em uma só noite: quatro prêmios - Walt Disney também recebeu quatro Oscars em 1954. Por isso, "Parasita" empata como "Fanny & Alexander" e "O Tigre e o Dragão" como os filmes estrangeiros com mais Oscars no bolso, quatro para cada.

A noite do dia 09 foi um verdadeiro marco. Foi um daqueles momentos que, daqui a décadas, vamos continuar falando sobre. É bem raro o melhor dos indicados ser o real vencedor pela maneira que a categoria é decidida, por meio do voto preferencial (não é o mais votado que ganha, e sim o que aparece mais vezes entre os primeiros lugares dos votantes). Claro que estamos falando de algo que se debruça no campo da subjetividade - você pode achar "Parasita" o pior dos nove -, mas, pelo menos por aqui, "Parasita" se une a "Moonlight" e "A Forma da Água" como vencedores absolutos que burlaram qualquer expectativa, qualquer aposta de acordo com a temporada, e saíram vitoriosos por serem os melhores de suas edições.


Isso quer dizer que todos os problemas da Academia estão resolvidos? Não mesmo. Esse foi um passo importantíssimo para o Oscar começar a abrir os olhos para produções que não estejam na limitada roda de apreço norte-americano - quem aguenta mais um filme americano sobre a indústria americana vencendo? - e, também, para obras compostas por pessoas não-brancas. Todos os três citados no parágrafo anterior são dirigidos por minorias - "Moonlight" por um homem negro, "A Forma da Água" por um latino e "Parasita" por um asiático. Mas só aqui vemos que vários passos ainda estão pela frente: apenas UM filme dirigido por uma mulher venceu "Melhor Filme", "Guerra Ao Terror" em 2010. 10 anos depois e..... pouca coisa mudou e só mais uma diretora foi indicada a "Direção" - Greta Gerwig por "Lady Bird".

Temos que nos manter positivos em relação ao futuro da premiação. Estaria a Academia se distanciando de sindicados e outros apontadores da temporada e começando a pensar como uma entidade única? Seria uma mudança bem-vinda. Outro motivo para alegria é pelo simples fato de que "Parasita" venceu - e ainda abocanhou, além de "Filme" e "Direção", "Melhor Filme Internacional" (o primeiro coreano) e "Melhor Roteiro Original" (o segundo em língua não-inglesa, "Fale Com Ela", em espanhol, foi o primeiro). Além disso, se olharmos para o vencedor do ano passado, "Green Book", é um assustador avanço. You can't sit with us.

Crítica: “1917” é um exemplo concreto do quão única é a arte do Cinema

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Fotografia
- Melhor Design de Produção
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhores Efeitos Visuais
- Melhor Trilha Sonora

Atenção: a crítica contém spoilers.

É divertido acompanhar como uma temporada do Oscar pode ser imprevisível. Se na abertura da janela do Oscar nós tínhamos "O Irlandês" (2019) e "História de um Casamento" (2019) na crista da onda, foi só começarem as premiações da indústria que o quadro virou. Nem mesmo Sam Mendes  (diretor de "Beleza Americana", 1999, e "007: Operação Skyfall", 2012) acreditou quando "1917" venceu "Melhor Filme: Drama" e "Melhor Direção" no Globo de Ouro 2020, o pontapé de uma campanha que, pelo visto, está destinada a terminar com o Oscar de "Melhor Filme" na estante.

"1917" segue dois soldados no meio da Primeira Guerra Mundial, Blake (Dean-Charles Chapman, o único rei decente que vimos em "Game of Thrones") e Schofield (George MacKay, cristal de "Capitão Fantástico", 2016). Blake é escolhido para uma missão quase impossível: ele deve, com a ajuda de Schofield, entregar uma carta que vai impedir um ataque das tropas britânicas e evitar a morte de todos. O destino? O campo de batalha do outro lado do campo alemão.

Não é a premissa mais empolgante do universo. Filmes bélicos chegando no Oscar já estão cansados, e não precisávamos de mais um - principalmente possuindo o favoritismo. Não estava empolgado para 2h de filme histórico nas trincheiras da WWI, porém, vi um vídeo promocional com o making of de uma das cenas e meu queixo caiu. A fita foi filmada como um grande plano-sequência - o que "Birdman" (2015) fez recentemente -, mas indo ainda mais longe. Os cortes de "1917" são bem cuidadosos para não ficarem explícitos, precisando de um olho mais atento para ver onde uma cena começa e termina - com exceção de um momento na metade da duração -, e é por isso que o filme não foi indicado ao prêmio de "Melhor Montagem". Para completar, a narrativa busca precisão na passagem do tempo, começando no fim da tarde e terminando no começo da manhã seguinte.


Um dos problemas que tenho com muitos filmes de guerra habita na motivação dos personagens. Sabemos os fatos históricos, sabemos quem está do lado de quem, mas muitas vezes falta um combustível humano e particular, afinal, a história em questão tem que ser única de alguma maneira. Blake e Schofield possuem a obrigação de levar a carta, contudo, há o fator emocional: o irmão de Blake está na linha de frente do grupo que vai atacar os alemães, então ele fará de tudo para chegar a tempo de salvar a vida de todos aqueles homens.

Não dá para não falar o óbvio: a forma como o filme é filmado é espetacular. A fotografia de Roger Deakins - vencedor do Oscar por "Blade Runner 2049 (2017) - faz um preciso balé coreografado enquanto segue os protagonistas. Dentro das apertadas trincheiras, há um jogo brilhante que reveza entre fotografá-los de frente e de costas, gerando uma fluidez fundamental para tirar a narrativa da morosidade. A mise en scène é explorada lindamente, sempre dando destaque aos vários ambientes que Blake e Schofield encontram pela frente. O design de produção então, de tirar o fôlego. Dos casebres abandonados às planícies destruídas pela guerra, todo o aparato visual de "1917" é impecável e um grande sucesso para o realismo da obra.

"1917" é bastante feliz em solidificar o viés humano de uma situação que esquece disso. Bem verdade que, às vezes, o roteiro dá uma pendida para o emocionalismo, chegando perto de ultrapassar a linha do apelativo, mas até mesmo algumas escolhas - como a cena com a mulher francesa - ajudam a retirar o filme da crueldade que é a guerra. Schofield claramente não queria estar ali - ele demonstra raiva por Blake tê-lo escolhido para partir com ele -, entretanto, seus desejos particulares são irrelevantes quando a vida de tantos estão em jogo. Felizmente, o roteiro abdica da jornada do herói e não santifica seus personagens - talvez por não se tratar de uma cinebiografia (ninguém aguenta mais!!!1); o texto foi inspirado em uma história contada pelo avô de Sam Mendes.


Alfred Hitchcock dizia que o cinema é "a vida sem as partes chatas", e o roteiro de "1917" sabe disso. Por ser uma narrativa ininterrupta, não teria como todas as cenas serem recheadas com ação, então há cuidado nas passagens entre os pontos altos da sessão. Claro que a narrativa dá uma leve estancada, principalmente porque estamos viciados na adrenalina, porém, tudo é muito compensado quando o caos cai em cima dos dois soldados. Inclusive, são nessas "pausas" que a produção encontra vários momentos de extrema delicadeza, como a cena do soldado cantando enquanto toda a tropa espera o momento de avançar na batalha.

Um grande erro em filmes de guerra é a suspensão da atmosfera de perigo. Nem por um segundo duvidamos que a missão dos protagonistas será cumprida no final das duas horas, mas a fita não descansa em tornar o trajeto num inferno. Um grande momento é a cena do avião sendo abatido. Primeiro, ele deliciosamente despenca dos céus diretamente de encontro com Blake e Schofield, e Blake acaba morto pelo piloto. É uma quebra de expectativa bem grande, e o lembrete do filme de que, na guerra, todos os lados perdem. Uma sequência bem triste, foi genial ver que o melhor estava ainda por vir. Uma tropa inglesa aparece no local e dá uma carona para Schofield. Ele, dentro de um caminhão com vários soldados, é focado no extremo centro da tela; os outros conversam aleatoriedades, contudo, a câmera não foge do rosto do protagonista, completamente aquém do que está acontecendo ao redor. Ele não consegue estar presente tamanha a dor pela morte de Blake. É um momento precioso.

Filmes de guerra são um mote que nunca guardei no coração. Claro que há exemplos que coloco minha estante de filmes favoritos, entretanto, abraçando os indicados ao Oscar na última década, a maioria é pura decepção - "Sniper Americano" (2014), "Até o Último Homem" (2016), "Dunkirk" (2017). Jamais pensei que "1917" poderia ser tão arrebatador a ponto de, em várias cenas, ter que me segurar para não chorar. Seja em sequências de apelo sentimental ou por puro milagre visual (o momento dos mísseis é avassalador), o longa é um sucesso por não ser pura perfumaria, uma exibição de poder técnico vazio - cof cof, "O Rei Leão" (2019), cof. Claro que todo o aparato técnico da película chama bem mais atenção que a história em si (pela técnica ser tão perfeita e a trama ser simples e direta), contudo, Sam Mendes usa muito bem seus arsenais para potencializar o drama, o que garante o tamanho apreço da indústria pelo filme. Se não fosse tudo tão bem feito, talvez o enredo não tivesse tanta força.

"1917" é uma excelente produção para nos lembrar da grandiosidade do Cinema - que mídia poderia nos dar uma sessão como a de "1917"? Qual outro formato conseguiria fomentar o mesmo impacto? Indo muito adiante da necessária pretensão de filmes de guerra (que estão cada vez mais ambiciosos), a fita possui a consciência de que toda a fotografia, som, direção de arte e qualquer elemento técnico não sustenta uma arte que é, primordialmente, o ato de contar uma história. Os pequenos tropeços são ínfimos em meio à experiência visual e sensorial que imerge o espectador nos horrores e nas glórias desse período. E quanto maior a qualidade do formato que você esse gigante videogame cheio de fases, obstáculos e objetivos, melhor ele será.

Crítica: “Ford Vs. Ferrari” não é ouro, mas sobe no pódio por não ser um filme de nicho

Indicado a quatro Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Domingos eram, na minha juventude (o peso dos 30 está batendo), o pior dia da semana. Já que não possuía o poder de decidir que horas acordaria, sempre estava pela manhã, no auge do tédio, de frente à televisão. E o que estava passando? Fórmula 1. Meu pai nunca foi o maior fã do esporte, mas sempre assistia naquelas manhãs, e eu era obrigado a acompanhar a chatice, o que só me fazia detestar ainda mais. Felizmente, hoje me mantenho dormindo enquanto está passando (isso se ainda existe F1 na tevê aberta, algo que não assisto há anos).

Foi por isso que, desde novembro, venho enrolando para assistir "Ford Vs. Ferrari". Do mesmo diretor de "Garota, Interrompida" (1999) e "Logan" (2017) - o cardápio é bem variado -, o filme vai até a década de 60, quando a Ferrari liderava a corrida na F1. A Ford, líder do mercado automobilístico doméstico, queria também ser a rainha das pistas, e decide construir um carro que possa acabar com a hegemonia da Ferrari. Oh, uau, que premissa.

Orei para todas as divindades cujas existências eu não acredito para que o filme não fosse indicado ao Oscar de "Melhor Filme", já que eu teria que assisti-lo - todavia, como já provado, todas essas divindades decidiram ignorar meus apelos. Quando descobri que a fita tinha 2:30h de duração, vi ali o último prego do meu caixão; 152 minutos de cinebiografia histórica sobre F1, fica com deus. Decidi encontrar um momento que estaria de coração aberto para o que viria, principalmente porque essa temporada, para mim, está sendo um horror - se você leu minhas críticas para os indicados a "Melhor Filme" deve estar me achando um porre, mas juro que isso não é o padrão rs. Saudades da temporada de "Moonlight" (2017).

A trama é conduzida por Carroll Shelby (Matt Damon), um ex-piloto campeão que teve que se aposentar por problemas de saúde. Ele é contratado pela Ford para desenvolver o carro que destronará a Ferrari - vencedora há anos da Le Mans, a mais antiga e prestigiada pista de corrida do mundo. Shelby, por sua vez, precisa da ajuda de Ken Miles (Christian Bale), piloto de menor categoria e mecânico. O problema é que Miles é instável e desbocado, o que fará com que a Ford não o aceite tão facilmente.


E esse é um dos vários moldes familiares dentro do corpo da produção. Quanto mais você assiste ao filme, mais pensará "já assisti a isso antes". Grande parte do charme aqui habita na diferença entre os polidos, profissionais e sérios homens da Ford contra o furação que é Miles, uma dicotomia pra lá de abusada. O que mantém esse charme é como Bale está tão divertido na pele do protagonista, e, mesmo não tendo sido indicado ao Oscar de "Melhor Ator" - essa é a categoria mais concorrida da atual edição -, entrega uma performance bem melhor que a de "Vice" (2018), que lhe rendeu uma indicação em 2019. Fazem bastante falta os momentos em que ele não está na tela.

"Ford Vs. Ferrari" é a opção de entretenimento escolhido pelo Oscar. Não que todo filme não seja de alguma forma entretenimento, mas o em questão visa gerar a catarse por meio de toda a agilidade de sua narrativa. É tão verdade que - um dos motivos que me fez ter apreço pelo filme - não é necessário acompanhar toda a baboseira técnica sobre velocidade, peso, curvatura e blá blá blá para ser entendido o que tem que ser entendido, os dilemas pessoais e as rivalidades que fomentam o plot. E, muitas vezes, obras que se aprofundam em áreas muito específicas jogam informações demais na plateia, que se perde no meio de termos técnicos, linguajar físico e afins. Isso não é uma aula, é um filme, então quando explicações de fórmulas ofuscam o entretenimento básico da arte, algo deu errado.

É curioso notar que "Ford Vs. Ferrari" é um daqueles filmes que podemos chamar de "para homens". Elenco absolutamente masculino sobre um esporte predominantemente masculino (existe liga feminina de F1?). Geralmente, o tipo de longa que não tenho interesse em assistir. Mesmo conseguindo me deixar levar pela história, não dá para ignorar como essa é uma película que aflora a masculinidade normativa: chega a ser cômica a cena em que o CEO da Ford associa a corrida contra a Ferrari com a guerra que acabou de ser encerrada. A velocidade, a disputa, o perigo e, claro, a vitória, são elementos vistos como intrínsecos do universo do macho, e os ter é sinal de soberania. Todos estão ali brigando para saber quem é superior em algo que não diz lá tanta coisa - assista ao grego "Chevalier" (2015) para entender do que eu estou falando.

A única personagem feminina é a esposa de Miles, interpretada por Caitriona Balfe. Ela está ali basicamente porque seria de mal tom não colocá-la, afinal, como em inúmeros filmes norte-americanos sobre homens em posição de poder - "Vice", "O Primeiro Homem" (2018), "Ad Astra: Rumo às Estrelas" (2019) -, a esposa é totalmente subutilizada, servindo de mero apoio para alavancar a trajetória do protagonista - ela ainda estrela uma cena quase vergonhosa (salva pelo contexto) quando decide transformar a estrada em uma pista de corrida. Miles tem um filho tão louco por F1 quanto ele, e só pensava o quão legal seria se o roteiro tivesse posto uma menina no lugar - porque parece que ser mulher e gostar de F1 ali era impossível. Fica para a próxima.


Filmes esportivos são bem difíceis de serem feitos por vários motivos. O que angaria a emoção do esporte não é a mesma que emana em uma obra audiovisual. Além disso, como não ser somente uma partida/corrida/o que for na tela grande? E como cativar alguém que não seja fã daquele esporte? Longas com esse sub-gênero estão espalhados pela história - pode pensar em qualquer esporte que vai ter pelo menos um filme sobre -, e muitos deles acabam sendo voltados apenas para os já apreciadores. A conquista mais incrível de "Ford Vs. Ferrari", que me assombrou, é a capacidade da fita de ser um filme sobre F1 para quem não gosta de F1. Claro, se você já adorar o tema vai se deliciar, entretanto, mesmo alguém que detesta o esporte (eu!) vai conseguir gostar da sessão.

O drama - a guerra fria entre a Ford e a Ferrari e a posição de Miles dentro desse jogo - é efetivo o suficiente para manter o interesse e as cenas de corrida chegam a arrepiar. A direção de James Mangold se esbalda nas pistas, construindo a tensão de maneira muito eficaz por meio da união de seu aparato técnico primoroso. A fotografia - que inteligentemente evidencia o azul e o vermelho, as cores das concorrentes -, a montagem elétrica e o fantástico trabalho sonoro colocam o público no banco do carona dos potentes carros.

É bem verdade que a produção não tem vergonha em assumir um lado - ela é totalmente pró-Ford, transformando o lado da Ferrari (marca italiana) em estereótipos unidimensionais -, o que não vai longe de um patriotismo que Hollywood não cansa de produzir. Encontrou uma oportunidade para dizer que os EUA é melhor? Faz um filme que é sucesso. Mas é possível não ficar a duração toda em uma guerra de braço com o filme quando o lado puramente catártico está tão aflorado. É sentar e curtir a viagem.

Caso você tenha algumas horinhas livres para um bom divertimento, "Ford Vs. Ferrari" é o filme para essa tarefa. Sem grandes pretensões na parte narrativa - até mesmo pelos moldes que se enfia e, consequentemente, se limita -, a parte técnica vai para o campo oposto, com elementos visuais e sonoros de primeira categoria. Não é uma obra memorável ou que mereça o apreço dado pela Academia ao indicá-la a "Melhor Filme", no entanto, cumpre seu papel de entretenimento quando seus carros tunados ultrapassam a linha de chegada sem transformar o filme em uma produção de nicho, mesmo não conquistando o primeiro lugar.

Crítica: “Adoráveis Mulheres” tem ótimos vestidos, lindos vestidos

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Saoirse Ronan)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Florence Pugh)
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Figurino
- Melhor Trilha Sonora

Eu faço desde 2013 o especial para o Oscar, dedicando-me a escrever sobre todos os indicados ao prêmio de "Melhor Filme" antes da noite da premiação. Na maior parte do tempo, essa é uma tarefa bem agradável: mesmo em anos bem questionáveis (como o atual), é um prazer escrever sobre os longas, analisá-los enquanto arte e enquanto escolhido - dentro de milhares - para representar o melhor que a Sétima Arte nos entregou no período. Na maior parte do tempo.

Sempre houve, em todas as edições, pelo menos um filme que, caso estivesse fora da categoria principal, eu não me daria ao trabalho de escrever sobre. O primeiro argumento para isso é que a escrita é algo que pode parecer uma atividade fácil, mas não é. Vejo críticos lançando seus pensamentos em formato de vídeo e, em três minutos, está feito - algo impossível para a linguagem que você está diante nesse momento. Não que a escrita seja "maior" que qualquer outro formato, é apenas o apontamento de um fato: a escrita é mais complexa que a fala.

Então, ter que me dedicar tanto para escrever 12 parágrafos sobre um filme que me instiga em nada é uma coisa que eu preferiria não fazer, dedicando esse tempo a falar de alguma fita que consiga me entregar mais durantes seus 100-e-lá-vai minutos. Em todos esses anos, o único dos indicados que deliberadamente não escrevi sobre foi "Pantera Negra" (2018), pois, como já deve ter ficado claro caso você acompanhe essa coluna, não tenho tanta paciência com filmes de super-heróis, o oposto da imensa massa ávida para massacrar na internet qualquer pessoa que ouse falar mal dos seus sagrados filmes - e não estava com paciência para ser xingado gratuitamente ou receber ameaça de morte (como críticos receberam por não aprovar o filme) por exercer meu direito de livre expressão e meu trabalho enquanto crítico. É pior quando o texto vai contra um filme largamente amado pela "maioria", que, em pleno 2020, ainda não aprendeu que sua opinião não é sagrada a ponto de ser intolerável alguém pensar o oposto.

Esse texto provavelmente terminará sendo mais um desabafo do que uma crítica convencional porque eu não sei aonde chegarei no final dela - o que é uma exceção dentro do meu trabalho, sempre sei o que quero falar sobre cada filme. Mas "Adoráveis Mulheres" (Little Women) foi um caso bastante complicado para mim. Baseado no livro de mesmo nome lançado em 1868 pela autora Louisa May Alcott, o romance é um dos mais lidos da história norte-americana, vendo sucesso imediato. Por isso, não é de se espantar que já foi adaptado para o cinema sete vezes. Sim, há sete filmes com a mesma história.


O primeiro deles foi lançado em 1917, no engatinhar da arte, e está perdido desde então. Quase 100 anos após, a mais nova versão foi lançada com a assinatura de Greta Gerwig, uma das mais sensacionais cineastas em atividade - é dela o maravilhoso "Lady Bird" (2017), um dos 100 melhores filmes da década aqui no Cinematofagia. E se Greta faz algum projeto, a gente assiste. O filme conta a história de quatro irmãs: Jo (Saoirse Ronan, indicada ao Oscar de "Melhor Atriz" pelo papel), Amy (Florence Pugh, dona da minha vida e indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante"), Meg (Emma Watson, a proprietária da franquia "Harry Potter") e Beth (Eliza Scanlen, em um dos seus primeiros trabalhos em um longa).

A trama gira em torno das diferenças entre elas enquanto, unidas, sobrevivem à Guerra Civil e à cultura da época. A primeira cena é Jo tentando vender uma de suas histórias para um jornal, que aceita mediante edições. O editor fala que a próxima histórias devem ver suas protagonistas casadas ou mortas - esses são os únicos finais esperados para uma mulher na época. Sim, esse é um filme feminista, amém. Alcott, a autora, era ativista e usa suas personagens para falar suas ideias em prol da igualdade de gênero - o que Greta também faz com seus filmes.

Elenco fantástico, ótima diretora, filme feminista, era a receita perfeita para eu chamar de "filme do milênio". Todavia, não demorou muito para que eu começasse a perceber que, talvez, "Adoráveis Mulheres" não teria todo o amor que eu separei para ele. Logo no primeiro ato, na segunda cena, se não me engano, há um momento em que Jo fica ao lado de uma lareira. Entra um personagem, olha calmamente para ela, e fala: "You're on fire". Ela agradece o "elogio" ("on fire" em inglês é uma expressão que, metaforicamente, significa "você está arrasando"). Ele replica: "You're really on fire", com seu vestido pegando fogo. Eeeerrrrr.

Esse tipo de diálogo, uma sacada ixperta para possuir apelo cômico, é uma das mais rasteiras estratégias textuais que existem. Já foram usadas à exaustão e são vergonhosas. Ah, mas é apenas uma cena, você pode dizer, só que isso é repetido por todo o filme, que tem tentativas incompetentes de """comédia""" bastante destoantes da seriedade do todo.

Como já disse, o longa de Greta é a sétima versão da mesma história. Curiosamente, assisti a nenhuma das outra seis, e nem li ao livro que deu base para todos, o que me permitiu analisar "Adoráveis Mulheres" sem precisar compará-lo com seus irmãos - para a sua sorte, porém, não é necessário ver tudo o que já foi produzido a partir do texto original para entender seus objetivos e limitações, é uma história contada em diversos outros meios. A cada minuto, uma impressão se tornava mais sólida: a fita parecia bem mais um "Lady Bird" com os personagens usando vestidos de época. Já falei aqui na coluna algumas vezes que uma das falhas mais comuns - e que realmente me fazem desapreciar um filme - é como a história se passa em outra época, mas os atores agem como se fosse uma produção moderna.

"Adoráveis Mulheres" cai no erro fácil de ser totalmente artificial dentro da faixa de tempo que sua história se finca. Isso, é claro, dentro da gigante subjetividade que permeia qualquer arte - li críticas que diziam que o filme triunfa exatamente por parecer fidedigno à época, o extremo oposto do que acho. Uma delícia como o Cinema consegue, com o mesmo filme, fomentar sentimentos tão diferentes em diferentes pessoas, e está tudo certo.


O primeiro ponto que culpo para gerar tal impressão é a direção dos atores. Greta não executa um estudo teatral do séc. XIX a ponto de retirar o expectador da sua própria realidade e compor uma linguagem compatível com os quase 200 anos que separam a história com a atualidade - isso não posso dizer do aparato estético, com o design de produção sendo um sucesso e mostrando bem as discrepâncias entre a riqueza e a pobreza de sua história. A direção dos atores é tão estranha que há momentos quase amadores de atrizes tão assustadoramente incríveis - não sobrou nem para Meryl Streep, em um dos piores papéis da sua filmografia recente. Há uma cena em que Florence Pugh chora do lado de fora de uma janela que me deu vontade de desistir do filme.

E falando em Pugh, desde 2017 afirmo que sua carreira iria decolar quando vi seu sensacional trabalho em "Lady Macbeth" - eu a teria indicado ao Oscar ali mesmo -, então tenho uma ligação mais estreita com a atriz por acompanhá-la (e adorá-la) desde o começo. É um prazer vê-la recebendo tamanho reconhecimento ao ser indicada por "Adoráveis Mulheres", contudo, a distância entre o requinte de qualidade de seu desempenho entre "Lady Macbeth", que também é um filme de época, com o papel de "Adoráveis Mulheres" é gritante. Nem parece ser a mesma atriz. Para apaziguar meu coração, finjo que ela foi indicada por "Midsommar: o Mal Não Espera a Noite" (2019), filme que extrai o que ela tem tanto a oferecer, o que não acontece aqui.

O segundo ponto é quão unidimensionais são as personagens. A dinâmica da produção ocorre quando evidencia as diferenças entre as irmãs, e são essas diferenças específicas que as fazem ser quem são enquanto estudo de personagem. Não há grandes desenvolvimentos, não há preocupação em tirá-las das caixinhas de "Jo é a revolucionária", "Beth é a tímida" etc.

Para burlar as dicotomias e criar uma união, a escolha feita pela fita foi: em todas as cenas que as irmãs interagem entre si, elas falam ininterruptamente, uma por cima da outra. É tão artificial que tentei contar os segundos entre as falas, e eles inexistiam. É quase um monólogo proferido por quatro bocas, e muitas vezes elas proferem detalhes totalmente irrelevantes, apenas para preencher espaço. Achei a escolha tão desastrosa que meus níveis de ansiedade já estavam nas alturas quando, literalmente, não há um segundo de respiro entre cada diálogo. Vou ter que apontar o óbvio para ver se consigo me poupar: você pode achar a mesma estratégia um primor, pode dizer que esse é um dos detalhes que lhe fizeram amar ainda mais o filme, tá? Obrigado.

E olhava no relógio, 1h de sessão, e a trama quase não havia avançado - e o que tinha acontecido até então era, particularmente, muito desinteressante. Bem verdade que algumas discussões são muito boas - a forma como a vida feminina era intrinsecamente ligada ao matrimônio e como o casamento era, antes de tudo, um acordo comercial - no entanto, precisava de mais de 2h para mostrar uma ideia tão elementar? Talvez esse não seja um filme para mim?

Sinceramente, não possuo essa resposta. Até a própria nota do filme, não consegui chegar em um consenso interno - na verdade eu não queria mais pensar sobre a obra e dei um número que considero padrão para o que senti sobre o filme. A indagação central que habitava o imaginário antes da sessão era: será se o estilo narrativo de Greta Gerwig funcionaria com um drama de época? "Adoráveis Mulheres" é a retomada de uma história já exaustivamente contada na tela sem acréscimos ou renovações que justifiquem a sua existência - só lembrar da versão de 2018 de "Nasce Uma Estrela", a quarta filmagem da mesma história que elevou a trama a um patamar jamais visto nas três primeiras; ou até mesmo na renovação de "Suspiria" (2018), que se apropria da obra original para ir além. Esse é o papel de um revival, e, durante a projeção de "Adoráveis Mulheres", a única coisa que conseguia apreciar era resumida pelo lendário quote de Aretha Franklin:



Crítica: “Jojo Rabbit” usa a ridicularização como arma de massacre ao Nazismo

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a seis Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Atriz Coadjuvante (Scarlett Johansson)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Montagem
- Melhor Figurino

Numa rápida aulinha sobre qual é o primeiro passo para chegar ao Oscar, "Jojo Rabbit" é um bom exemplo para exemplificarmos. Engana-se quem acha que os indicados a "Melhor Filme" são estritamente aqueles que a Academia considera os melhores do ano; para figurar entre os até 10 indicados, há vários passos a serem seguidos. O primeiro deles é: seu filme deve estrear em um dos principais festivais de Cinema do mundo.

De Cannes a Berlim, vencer em um festival é um empurrão incrível na temporada, porém, é ainda melhor quando o filme estreia durante a abertura da janela do Oscar, que ocorre de outubro a dezembro. Foi a estratégia da Fox com "Jojo Rabbit", lançando-o no Festival de Toronto, um dos maiores do período. Para melhorar sua campanha, o longa venceu o "People's Choice Award", a maior honraria de lá. E tal prêmio é um catapultador para o careca dourado, vendo nove dos 10 últimos vencedores sendo indicados pela Academia - o vencedor de 2018 foi "Green Book: O Guia", que levou o Oscar de "Melhor Filme" (mesmo que sem merecer). Não por acaso, "Jojo Rabbit" saiu com seis indicações no Oscar 2020, incluindo "Melhor Filme".

"Jojo Rabbit" é uma sátira da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Um garotinho, Jojo Betzler (Roman Griffin Davis), faz parte da "Juventude de Hitler", um grupo com crianças e adolescentes adoradores de Adolf Hitler. Ele é obcecado pelo führer, tendo-o como amigo imaginário (interpretado pelo também diretor e roteirista Taika Waititi), que o aconselha na sua jornada de adoração ao Nazismo. Sua vida vira de cabeça para baixo quando o menino descobre que sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), esconde no sótão Elsa (Thomasin McKenzie), uma garota judia.

Filmes sobre a Segunda Guerra em Hollywood? Groundbreaker. O tema já foi explorado à exaustão dentro da indústria, necessitando renovações de abordagens, e essa é uma das missões de "Jojo Rabbit". Waititi possui um cinema que casa bem com o estilo, já vindo com os deliciosos "O Que Fazemos Nas Sombras (2014) e "Fuga Para a Liberdade" (2016) - assista aos dois, são pérolas - antes de cair nos braços de Hollywood com "Thor: Ragnarok" (2017), então ele é o realizador certo para tal projeto.

Uma das maiores críticas ao filme desde o Festival de Toronto é sua abordagem diante do Nazismo. Uma tragédia sem precedentes para a humanidade, seria correto usar um tom jocoso ao retratá-lo? Fui ao filme com imensa preocupação de como os horrores do período seriam retratados na tela, mas, se tratando de Waititi, não poderíamos esperar algo realmente sério.


A obra a todo o momento ironiza a lógica nazista, colocando-a sob uma luz patética. A mãe de Jojo informa que ele passou semanas aos prantos quando descobriu que o avô não era loiro, ou o quartel que pede vários pastores alemães (os cachorros) e um oficial traz literalmente pastores alemães (os camponeses). Tudo é gritantemente ridículo. Há uma ideia de que o bom humor é aquele que zomba o opressor, não o oprimido, e o texto de "Jojo Rabbit" não tem medo de fazer isso, afinal, nazista tem mesmo é que virar chacota.

Não que o humor do filme seja genial - há sacadas e momentos muitíssimos inspirados, mas a fita não consegue ser uma black comedy engenhosa e brilhante; o humor é melhor executado em "O Que Fazemos Nas Sombras", por exemplo. E o motivo para isso talvez reside no caminho final que a película anseia atingir: esse é um feel good movie, aquele que quer terminar com um sorriso no rosto, que quer que a plateia vá leve para a casa.

Por ser um feel good movie, muito da ousadia que o tema poderia render é ceifada a fim de manter o território em um campo mais seguro, o que definitivamente explica como a fita venceu o prêmio máximo no Festival de Toronto, derrotando nomes bem superiores como "História de um Casamento" (2019) e "Parasita" (2019): é o público que escolhe o filme favorito da seleção, e o molde de "Jojo Rabbit" é bem mais agradável no geral que os outros dois citados. É mais fácil de digerir quando o tom no final da sessão é tão ensolarado.

O cerne da produção está na relação entre Jojo e Elsa, a judia clandestina. Boa parte da duração é dedicada para os dois personagens, que são executados com muita competência pelos seus intérpretes - Thomasin McKenzie já havia mostrado seu talento no ótimo "Sem Rastros" (2018) e Roman Griffin Davis, que mesmo com apenas 12 anos e em seu primeiro trabalho na tela, consegue ditar os rumos da película, rendendo-lhe uma merecida indicação ao Globo de Ouro 2020 de "Melhor Ator - Comédia". Não há o que se queixar nesse departamento. Nesse.

Não me choquei quando vi que havia sido "Green Book" o antecessor de "Jojo Rabbit" em Toronto após terminar o filme: os dois possuem a mesmíssima estrutura - o inimigos-que-vão-aprender-a-conviver-e-acabam-descobrindo-que-gostam-um-do-outro. Desde comédias românticas com um casal que se odeia e vai inevitavelmente terminar junto ou o caso de "Green Book" e o desastroso "The Nightingale" (2018), ambos com um protagonista racista que vai rever seus preconceitos ao conviver com um personagem negro, "Jojo Rabbit" abusa do comodismo ao costurar a relação de Jojo e Elsa: o final é previsivelmente harmonioso.


O que o faz sair na frente dos citados são escolhas criativas no caminho dessa relação. A maneira como Elsa é introduzida na fita remete aos melhores momentos do terror satírico de "O Que Fazemos Nas Sombras" - ela entra em cena como um fantasma, e os enquadramentos evidenciam essa impressão. Ela usa os maiores (e mais ridículos) estereótipos que o Nazismo inventava sobre os judeus ao seu favor, como dormir de cabeça para baixo como morcegos e conseguir ler mentes. É bizarro saber que essas ideias eram realmente disseminadas para fomentar o ódio contra judeus, e o roteiro sabiamente se apropria delas para humilhar o fascismo ariano.

E temos, claro, o diretor como Hitler. Foi um passo ambicioso de Waititi ao incorporar uma das mais odiadas figuras da história, o que reforça seu posicionamento de zombaria - Hitler teria um ataque do coração ao ver um homem negro interpretando o ápice do orgulho babaca ariano. Seu Hitler é imbecil de uma forma diferente do que o real Hitler era, indo para um lado mais caricaturado e cartunesco, afinal, ele é fruto da imaginação delirante de um garoto de 10 anos. Apesar de adicionar na patifaria, sua aparição não funciona sempre. Convenhamos, seria impossível não compará-lo com o melhor Hitler do cinema, o de Charlie Chaplin em "O Grande Ditador" (1940), que também caçoa do führer, e o fascista de 80 anos atrás larga muito na frente, mesmo sendo concebido no meio do auge nazista.

Chamo a atenção para um subplot interessante dentro do roteiro: há dois capitães nazistas que são um casal gay, interpretados por Sam Rockwell (vencedor do Oscar por "Três Anúncios Para Um Crime", 2017) e Alfie Allen (de "Game of Thrones"). A abordagem para os dois começa bem sutil, com troca de olhares, até deixar mais comicamente elementar, como quando eles mostram desenhos de suas futuras roupas de combate, que mais parecem um figurino usado por Elton John em alguma turnê. O personagem de Rockwell, quando a Alemanha é derrotada e os nazistas capturados são levados para a morte, salva a vida de Jojo ao dizer que o menino é judeu, o que enfureceu muitos por mostrar que "nem todo nazista é malvado".

Acho essa lógica um tanto quanto simplória diante de algo que é bem mais complexo. Não é de se espantar que um casal gay se misture como nazistas para não acabarem mortos, mesmo eles reforçando um status quo que matou tantos outros gays. Não enxergo a escolha do filme como uma passada de mão na cabeça do Nazismo, e sim uma pontuação de que, como humanos, somos capazes de atrocidades e legítimos atos de bondade. Era claro que o personagem não concordava com as leis vigentes, apenas dançava conforme a música para sobreviver (vide a cena que ele acoberta Elsa quando a Gestapo vai até à casa de Jojo).

"Jojo Rabbit" não é superior aos convencionalismos intrínsecos do feel good movie ao não possuir a coragem de empurrar sua sátira para um nível mais ousado e inteligente. Existem lampejos de tragédia e veracidade (o final da personagem de Scarlett Johansson foi uma surpresa), mas sempre há algo que puxa a fita para baixo, deixando-a na sua zona de conforto. A fita é uma boa sessão por ser um filme que enche os olhos e pela forma como lida com absurdismo essa situação absurda, ironizando posições de poder que deliberadamente escolhem oprimir. Não temos uma didática aula de como o Nazismo é uma mácula - isso já deveria ser óbvio -, e sim uma reformulação na maneira como a arte o critica, por meio da ridicularização. A produção deixa claro como ideologias são fundamentalmente inventadas e ensinadas, caso contrário, aquele pobre e ignorante menino de 10 anos não veria Adolf Hitler como um deus.

P.S.: a cena do "Heil Hilter" por si só carrega nas costas toda indicação do filme a qualquer prêmio de "Melhor Roteiro".

Crítica: está tudo bem se você for ao banheiro no meio de “O Irlandês”

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator Codjuvante (Al Pacino)
- Melhor Ator Codjuvante (Joe Pesci)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Efeitos Visuais

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando pensamos no corpo de trabalho de um diretor, caso ele tenha um estilo bem característico, conseguimos definir do que seu cinema é feito. Alguns exemplos? Wes Anderson e seus filmes coloridíssimos e simétricos; Yorgos Lanthimos e seus filmes estranhos e sarcásticos; Spike Lee e seus filmes engajados e políticos, Sofia Coppola e seus filmes melancolicamente femininos; e por aí vai. Mas é curioso quando olhamos sobre Martin Scorsese.

A filmografia scorseseana é geralmente resumida por "filmes de máfia". Nos mais de 50 anos de atuação, o diretor passeou por uma enorme gama de temas, como "Touro Indomável" (1980), "Depois de Horas" (1985), "A Última Tentação de Cristo" (1988), "O Aviador" (2004), "Ilha do Medo" (2010), "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), "O Lobo de All Street" (2013) e "Silêncio" (2016), todos bem diferentes um dos outros. Contudo, é inevitável apontar a temática gangster como a mais predominante em sua carreira - suas obras mais famosas e premiadas foram as desse mote, inclusive rendendo o único Oscar de "Melhor Direção" para Scorsese.

Então, mesmo não sendo assertivo resumir Scorsese com filmes de máfia, não é lá uma definição tão errada. "O Irlandês" (The Irishman) não me deixa mentir. O filme, inclusive, traz um dos maiores nomes na construção da fama do diretor: Robert De Niro (protagonista de "Touro Indomável" e "Taxi Driver", 1976) na pele de Frank Sheeran, um motorista de caminhão envolvido no crime organizado na Filadélfia dos anos 50. Pesadamente inspirado em fatos e indivíduos reais, a estrutura do filme não é linear, começando com Frank no fim da vida em um asilo contando o que o levou até ali.

Por possuir uma estrutura que caminha entre o tempo, o filme encontraria uma grande empecilho: De Niro, que atualmente possui 76 anos, não teria como interpretar as versões mais novas de seu personagem - assim como outros atores em cena. A solução foi um rejuvenescimento à base de efeitos visuais. O CGI é utilizado com muita precisão, sendo quase imperceptível e mantendo as expressões faciais dos atores, um dos maiores riscos da utilização da técnica - e que explica os 160 milhões de dólares em orçamento, um número altíssimo, principalmente levado em conta que o filme foi distribuído na Netflix, ou seja, sem bilheteria (com exceção do lançamento limitado nos cinemas como parte do processo de submissão ao Oscar - para ser indicado, o filme tem que sair nas salas por pelo menos uma semana).

E falando em Netflix, a plataforma está sedenta por um careca dourado. No Oscar 2019, chegou bem perto com "Roma" (2018), que viu o prêmio de "Melhor Filme" escorrer de suas mãos com uma Academia que ainda olha torto para obras vindouras do streaming. Em 2020, a Netflix vem com força total, tendo os dois maiores nomes da temporada: "O Irlandês" e "História de um Casamento" (2019). A gigante não perdeu tempo em comprar os diretos de distribuição de ambos - ainda investindo milhões na produção de "O Irlandês", visando, não podemos mentir, ser a primeira plataforma de stream a ter um Oscar na estante. Por enquanto, parece que o caminho está trilhado.


Pois bem. "O Irlandês", que foi eleito o melhor do ano pela National Board of Review e recebeu incríveis 14 indicações ao Critics' Choice 2020, um recorde na história da premiação repetido apenas por "A Forma da Água" (2017) e "A Favorita" (2018), resgata o estilo que viu o apogeu nos anos 70 - tanto "O Poderoso Chefão" (1972) quanto "O Poderoso Chefão: Parte II" (1974) venceram "Melhor Filme" na década. Então, sim, é tudo o que esse cinema hollywoodiano de ação mafiosa já nos entregou ao longo da história. E mais: são 3:30h de filme.

Esses pontos aqui renderam inúmeras discussões pela internet, com um crítico fazendo um post no Twitter sobre como assistir a "O Irlandês" como se fosse uma minissérie, dividindo o filme em quatro partes (que, levanto a mão, foi o que fiz). Do outro lado, o Pablo Villaça (um beijo para ele) virou meme quando disse que deveríamos assistir às 3:30h sem parar, não podendo nem ir ao banheiro, para não quebrar o "ritmo da narrativa". Villaça, perdão, mas eu falhei. O que esses dois extremos têm a nos dizer?

Como apontei na crítica de "História de um Casamento", cinema é passível de gostos. Sabe aquele seu amigo que venera qualquer filme de super-herói enquanto você acha um saco? Pois é. Quanto mais afunilado for o estilo, gênero ou molde de uma obra, mais de "nicho" ela será. É o caso de "O Irlandês". Villaça, que tem como filme favorito "O Poderoso Chefão", não surpreende quando ama "O Irlandês", que entrega tudo o que "Chefão" entregou. Para ele, acompanhar os 209 minutos ininterruptamente faz parte das rotinas de apreciação que ele tem pelo mote, o que, de acordo com a enxurrada de comentários acerca, não é a realidade de todo mundo.

O que eu quero dizer é: se você gosta de filme de máfia, esse momento é seu. Caso contrário, "O Irlandês" será um desafio, e é aqui que eu me enquadro. É impossível saber os valores de um filme de máfia caso você não aguente nem ouvir falar sobre? Não, contudo, o gosto da sessão com toda certeza não será tão doce. Admito que me peguei me obrigando a assistir ao filme, que, querendo ou não, é um evento para a Sétima Arte, e, dividindo entre vários dias (calma, Villaça), consegui chegar até o fim. O que posso dizer sobre "O Irlandês"?

O roteiro, escrito por Steven Zaillian, vencedor do Oscar pelo roteiro da obra-prima "A Lista de Schindler" (1993) e especialista em adaptar livros complexos, se atém demasiadamente nos fatos históricos que circulam os eventos do filme. Por trazer personagens reais e fincados num contexto político, há um background da política norte-americana e como ela impacta a vida dos personagens, como a eleição (e morte) de JFK. Então é laborioso escapar da sensação de que estamos assistindo à uma aula de história na tela, mas já garante pelo menos a atenção dos EUA, absurdamente egoicos e prontos para jogarem confetes em qualquer fita que trate sobre, bem, eles mesmos.


Há três vertentes de narrativa dentro do filme. A primeira é quando temos Frank recontando sua vida e quebrando a quarta parede, afinal, ele está falando diretamente com o público. A segunda trata-se da remontagem das falas de Frank, com uma narração e cenas de acordo. Essa é a pior escolha do filme. Feita sempre com uma colagem de micro cenas que duram segundos e que não esperam a plateia assimilar o que está acontecendo, ainda tem a narração e inúmeros personagens entrando e saindo de cena. Em várias dessas sequências eu me via incapaz de entender o que estava acontecendo, soando ainda pior quando havia o contexto histórico jogado em cima de tudo. A terceira é a salvação do dia: quando a presença do Frank idoso sai de cena para uma narrativa convencional.

Aqui, as cenas são compridas e finalmente podemos adentrar no desenvolvimento da trama. E os diálogos, ah, os diálogos... Encontrando maior espaço na parte central da duração, os diálogos são deliciosos, como a briga de Jimmy Hoffa (o lendário Al Pacino) com um mafioso que chegou cinco minutos atrasado para uma reunião. Sem toda a baboseira e falatório, se atendo especificamente nos personagens centrais, o filme mostra a que veio.

E esses momentos informam sem sombra de dúvida o quanto as atuações do trio central são fenomenais. De Niro e o Russell Bufalino de Joe Pesci são os peões silenciosos que conduzem a orquestra, todavia, Al Pacino é o verdadeiro protagonista de "O Irlandês". Não por ter o maior tempo em tela, mas por preencher cada quadro em que aparece com sua fenomenal atuação. É uma satisfação ver o ator, que já viveu tantas glórias, voltar ao topo após sofrer com escolhas desastrosas nessa década - deixo aqui uma cena de "Cada um tem a Gêmea Que Merece" (2011) para ilustrar o que chamo de "desastre", que lhe rendeu o Framboesa de Ouro de "Pior Ator Coadjuvante" pelo papel e apontava o declínio de sua carreira.

Um dos elementos a ser tópico de discussão sobre o filme foi como as mulheres são retratadas: elas basicamente inexistem. Scorsese, um homem branco, realiza seus filmes lotados de homens brancos, o que faz sentido - ele dirige o que está próximo de sua realidade. No entanto, me assustei ao ver que Anna Paquin, vencedora do Oscar, aceitou um papel que, não estou exagerando, não fala 10 palavras. Ela, como a versão adulta da filha de Frank, tem cena após cena sem um mísero diálogo, ganhando voz por cinco segundos no ato final. A atriz saiu em defesa do papel e se disse lisonjeada por estar em um filme do diretor, que é inegavelmente um dos maiores das história, mas não faz sentido reduzir a personagem a nada - e ela ainda chegou a receber indicação de "Melhor Atriz Coadjuvante" em algum dos distritos de crítica no EUA; caso ganhe, será o menor esforço da história a render um prêmio.

"O Irlandês", se olhado de cima do nicho que se enquadra, é uma realização competente que nada difere dos padrões elevados já impostos por Martin Scorsese ao logo das décadas. Traz algo de novo para sua filmografia? Não exatamente. A partir disso, pela sua temática e sua duração, o apreço vai muito da maneira como cada um enxerga os elementos, apesar de itens intocáveis como o aparato técnico e as atuações de primeira linha. Esse é um filme que coloca a subjetividade à flor da pele quando uns o enxergam como um épico sobre moralidades rachadas e brigas de poder, enquanto o mesmíssimo material para outros (e aqui me sento) denota pouco além do letárgico. Mas o mais incompreensível é pensar que Anna Paquin saiu de casa para isso.

Crítica: a D.R. de “História de um Casamento” conquista por abraçar o universal

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Adam Driver)
- Melhor Atriz (Scarlett Johansson)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)
- Melhor Trilha Sonora

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Noah Baubach é um dos maiores expoentes do cinema indie norte-americano na atualidade. Seja pelos seu roteiros (ele co-escreveu "A Vida Marinha com Steve Zissou", 2004, e "O Fantástico Sr. Raposo", 2009, com Wes Anderson), seja pelos seus próprios filmes (como o clássico independente "Frances Ha", 2013, protagonizado pela sua esposa e cristal do cinema, Greta Gerwig), há muito tempo Baubach encontra o carinho do público e crítica, mas nunca antes como com "História de um Casamento" (Marriage Story).

Charlie (Adam Driver) comanda e dirige uma companhia de teatro em Nova Iorque, e tem como estrela de suas peças a sua esposa, Nicole (Scarlett Johansson) - teve um déjà vu? Só que a relação nos palcos não reflete mais a relação doméstica, e o casal decide se separar. Como prominente atriz, Nicole é escalada para uma série em Los Angeles, e vai até lá com o filho, o que transformará uma pacífica separação em uma guerra judicial.

O longa espertamente é aberto com um voice-over do casal, contando os meandros do outro e todos os detalhes que os fizeram se apaixonar. É muito divertido acompanhar a dicotomia dos dois, e impossível não projetar para nossas próprias vidas, afinal, estamos em constantes relações com pessoas que inevitavelmente terão diferenças drásticas com o que somos. E essa é a magia da coisa. O que parecia um apaixonado início é brutalmente cortado: os textos são cartas que cada um teve que escrever na terapia, só que Nicole se recusa a ler a dela em voz alta. O público é o seu cúmplice.

Com cada um vivendo em cidades diferentes, o trabalho é o motivo para, civilizadamente, justificar o afastamento (emocional e geográfico) dos dois - uma peça de Charlie está indo para a Broadway e as gravações de Nicole começaram. Havia um acordo entre eles: não seria preciso a intervenção de advogados no divórcio, com uma camaradagem expressiva entre eles, até mesmo na divisão dos bens, só que Nicole quebra o acordo e contrata Nora (Laura Dern), advogada especialista em separação que mudará toda a dinâmica do jogo.


Charlie fica consternado quando recebe a intimação judicial, sem entender o que levou a ex-esposa a tomar tal decisão. O roteiro diabolicamente não entrega a resposta de imediato, quase transformando Nicole na vilã da história, contudo, há um motivo, e dos bons: ela descobriu que Charlie a traiu. É claro que cada um tem uma "justificativa" que tenta anular a reação do outro, em uma das melhores cenas de toda obra, quando os dois aos berros vomitam suas mágoas e procuram atacar da forma mais baixa possível o outro. E note o trabalho belíssimo de fotografia e montagem, abrindo a cena com um enorme plano e gradualmente fechando até focar no rosto transtornado do casal.

Uma das nuances mais corretas de "História de um Casamento" é não se limitar em ser somente um olhar sobre uma relação em ruínas. Há um forte estudo sobre o que é essa instituição que chamamos de casamento e qual o papel de homem e mulher dentro dele. Tudo é jogado ao máximo quando inserido no contexto da advocacia, que tem como base o uso desses papéis no grande jogo de convencimento jurídico. Nicole jamais pode transparecer ser uma esposa ruim, pois isso a configuraria como uma mãe ruim, e a guarda do filho seria perdida. No caso do homem, tal peso inexiste. É aqui que habita, para mim, o melhor diálogo das mais de 2h de sessão, quando Nora dá uma aula sobre a construção social da mulher dentro do relacionamento, lincando com a imagem de Maria, mãe de Jesus, "uma virgem que dá à luz, apoia o filho incondicionalmente e o abraça enquanto ele morre; e o pai nem dá as caras, deus é o pai, deus está no céu e nem aparece!". O Oscar de "Melhor Roteiro Original" já tem dono.

Falando em Dern, uma das maiores cotadas ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante" e uma das melhores atrizes em atuação, não há muito o que se falar contra ela, porém, sua personagem é similar demais com Renata Klein, seu papel vencedor do Emmy na série "Big Little Lies" - mas não se engane, ela é ótima em cena, mesmo com uma personagem dentro do molde "advogado ixperto" tão batido no cinema. Adam Driver, que só pode ser escalado para personagens bem específicos, parece transbordar na pele de Charlie, caminhando com imensa segurança entre os momentos dramáticos e cômicos (a cena do canivete). Todavia, "História de um Casamento" é engolido por Scarlett Johansson.

A atriz, que na corrente década caiu de vez nas graças do cinema pipoca - "Os Vingadores" (2008) e todos seus intermináveis filhotes, "Lucy" (2014), "A Vigilante do Amanhã" (2017), etc - entrega a sua melhor atuação do período nessa personagem que exige tanto talento. Há monógolos enormes e coreografados, que são executados com maestria pela atriz, unindo uma exigência enorme para a fluidez de cada cena com o estilo mumblecore que Baumbach adota em seus filmes. De fato, o apogeu de Johansson e a volta para sua boa forma.


A maior cartada de "História de um Casamento" é o realismo a que se propõe. É um filme bem "gente como a gente", tratando de dramas reais com pessoas reais, o que explica o imenso apreço dos espectadores, catapultando o longa como um dos mais ovacionados do ano. Além disso, há esmero na composição de seus indivíduos, enriquecendo ainda mais o universo multidimensional que é a vida dos personagens, contudo, mais uma vez iremos nos debruçar em um elemento seminal de qualquer arte e que muita gente ainda se recusa a aceitar: a  subjetividade.

Entre achar "História de um Casamento" um "filme sobre brancos discutindo a relação" e "uma das mais tocantes histórias do ano" (são comentários reais que li a respeito da película), tudo parte do princípio que cada pessoa irá ser atingida de uma forma diferente pelo mesmo filme. O estilo proposto por Baumbach possui fácil apelo pela proximidade que ele coloca seus mundos dos mundos reais, só que esse é um filme que, daqui a um mês eu estarei na fila da padaria e pensando "nossa, que perfeito"? Não.

Aqui temos o Cinema como contador de histórias do cotidiano, uma das funções seminais da Sétima Arte, e "História de um Casamento" atinge esse objetivo facilmente. É simpático, caloroso e, ao mesmo tempo, emocionante, uma fórmula pronta para arrebatar multidões, no entanto, mesmo tendo abraçado e me apegado ao todo, não é um estilo que me arranque suspiros ou que me devaste; é o mesmo que alguém amar filmes de super-herói, ou de faroeste, ou os "estranhões", ou os de máfia, e por aí vai e está tudo bem. É um ótimo filme que, sendo bem detalhista, não foge à regra de tantos outros com a mesmíssima temática e estilo, como "Cenas de um Casamento" (1973) e a maior referência, "Kramer vs. Kramer" (1979) - até os posteres são parecidos. Soa desconfortável apontar, porém, o apreço circula ao redor da sua preferência estilística - como basicamente acontece com todo filme - mas, no fim do dia, é essa a verdade.

"História de um Casamento" é um filme que deve ser visto pela dissecação palpável do quão complexo somos e como tudo vai para um limite além quando buscamos a utópica máxima de "juntos somos um só" dentro de um relacionamento. A vida de Charlie e Nicole é tão congruente com a vida de vários outros Charlies e Nicoles sentados diante da tela, e as decisões feitas por Noah Baumbach universalizam sua obra a um estágio que pode ser explicado pela sua imensurável aclamação. Assim como não dá para fugir que "História de um Casamento" é feito para fisgar multidões - até mesmo o genérico título, que não denota singularidade, resume a ideia -, não dá para fugir da particularidade de que prefiro muito mais uma fita que extrapole a realidade nas imensas possibilidades que a Sétima Arte nos agracia do que uma que seja expectadora da realidade pura e simples. E isso não é um problema de "História de um Casamento".

Crítica: sem histeria coletiva, “Coringa” não é nem incrível e nem descartável

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 11 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator (Joaquin Phoenix)
- Melhor Fotografia
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Maquiagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Caso acompanhe o Cinematofagia, já deve ter percebido que eu não escrevo sobre filmes de super-herói. Pelo menos não os mais óbvios, aqueles blockbusters da Marvel e DC - tanto que fiz uma lista de filmes desse subgênero que não caem nos moldes abertamente comerciais que conhecemos. "Coringa" (Joker) nasceu com uma proposta diferente, um comic movie "sério".

A primeira amostra desse discurso veio quando a obra estreou na competição do Festival de Veneza 2019, o que foi uma surpresa. Só que ninguém esperava que o filme não só competiria em um dos maiores festivais do mundo como venceria o Leão de Ouro, o "Melhor Filme" de lá. Nunca antes um filme de super-herói conseguiu isso.

O hype estava instaurado. Desde a vitória, no começo de setembro, a película não saiu da boca do meio, e discussões acerca do prêmio pipocam até hoje - e a discussão ainda vai continuar, afinal, a corrida para o Oscar está só começando e "Coringa" já está na crista da onda. O Leão de Ouro de "Coringa" é controverso e, particularmente, um mal passo para Veneza enquanto vitrine cinematográfica.

Vou explicar: afirmo isso sem pôr na mesa os méritos (e deméritos) da fita, e sim sua produção. "Coringa" é da Warner Bros, uma das maiores produtoras do planeta e conglomerado poderosíssimo, além, é óbvio, de se tratar de um filme baseado em quadrinhos, o mais forte subgênero da cultura contemporânea. A prova? Qual a maior bilheteria de 2019 e uma das maiores de toda a história? "Vingadores: Ultimato". E ainda tem dois outros do mesmo mote no top 5, também com os cofres bilionários. Só nos EUA, "Coringa" teve lançamento simultâneo em mais de 4 mil salas, um número altíssimo, e dá para contar nos dedos quantos conseguem o mesmo luxo - e, não é de se estranhar, mal estreou e já tem $300 milhões em bilheteria.

Como esses fatos conversam com Veneza e o Leão de Ouro? O festival, assim como qualquer outro, é um prêmio da crítica - ao contrário dos Oscars e Globos de Ouro, que são prêmios da indústria. Sendo assim, é para torcer os olhos quando um prêmio da crítica dá a honraria máxima a um filme que não precisa de mais visibilidade e apreço. A produção de "Coringa", por si só, garantiria isso independentemente de qualquer fator, o que só ele, entre os concorrentes, poderia falar o mesmo.


Saber se "Coringa" era realmente o melhor da seleção, só assistindo a todos os indicados, contudo, já pontuei que não é esse o ponto. O ponto é: seria mais interessante festivais darem palco para filmes que nunca estrearão em mais de 4 mil salas, que jamais verão 10% do orçamento milionário de "Coringa" e que não nascerão já com o atestado de sucesso comercial - tendo em vista o número massivo de domínio nas salas de cinema mundo afora. "Coringa" não precisava do Leão de Ouro para ser visto, enquanto vários outros, que podem até ser melhores, serão vistos apenas nos cinemas "de arte" de metrópoles. É para se pensar.

Essa foi apenas a primeira das inúmeras polêmicas que gravitam ao redor de "Coringa" - e toda semana surge uma nova. Do problemático diretor Todd Phillips dando declarações estapafúrdias até o uso de uma música no filme cantada por um pedófilo condenado (e atualmente preso), toda essa publicidade negativa acabou sendo o velho "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", e vários recordes de público já foram batidos logo na estreia. Deixei todo esse rolê de lado e sentei na expectativa de finalmente encontrar um longa de super-herói (ou, no caso, de um vilão) tão correto quanto "O Cavaleiro das Trevas" (2008).

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço de festas em Gothan City, na década de 80. Com inúmeros problemas mentais, incluindo uma risada involuntária nos momentos mais inoportunos possíveis, Arthur se divide entre as idas à terapia e o trabalho, perdido quando ele leva uma arma a um hospital infantil.

Só pela premissa já dá para ter uma ideia de como "Coringa" é um filme dúbio. Arthur é introspectivo, sem um pingo de noção de sociabilidade e cada dia mais soturno, porém, ainda assim, é um palhaço animador de crianças com câncer. A inserção das risadas involuntárias é ainda mais irônica, surgindo em momentos de tensão ou tristeza profunda do personagem; é a desgraça acontecendo e ele rindo descontroladamente.

A Gothan que virá a ser protegida pelo Batman - que aparece aqui com uns 10 anos de idade - é pintada com frieza e escuridão: há um forte tom decrépito, falido e corrupto nos becos e avenidas da cidade, um reflexo não apenas do estado psicológico de seus habitantes, mas também de um EUA em plena era Trump. Há uma guerra fria do povo que tenta sobreviver em meio à miséria e à poluição, como se tudo estivesse prestes a explodir, e essas pressões são fundamentais para o entendimento da cabeça de seu protagonista.


"Coringa" é uma viagem direto ao precipício que jogou Arthur na insanidade completa que é o Joker. Em termos binários, é bem mais complexo o nascimento de um vilão do que de um herói - aliás, a jornada do herói é tão batida que é um macete narrativo com regras detalhadas e copiadas há tempos. E essa dificuldade reside na questão: o que aconteceu que pode, cinematograficamente, justificar a maldade de um vilão? O que o levou até ali?

Indo contra a história clássica, o Joker de Phoenix não surgiu após cair num tanque de resíduo químico - hoje não, "Esquadrão Suicida" (2016). "Coringa" tira todo e qualquer aspecto fantasioso de seu texto e destrói a mente do protagonista das maneiras mais críveis possíveis: é o meio que o torna quem é. Da infância cheia de abusos à uma atualidade renegada, Arthur sofreu desde antes de se entender como gente - e aqui reside o prisma mais preocupante da fita, o vitimismo de Joker.

No clímax, quando a loucura já tá espalhada por todos os poros de Arthur, ele justifica seus atos pelo desprezo social que cai em cima dele, e isso é um traço fundamental da cultura "incel", a bandeira mais levantada pelos detratores do filme. Entretanto, a coisa não é tão sensacionalista como o circo montado pela crítica (sem trocadilhos).

É sempre bom lembrar que estamos falando sobre um vilão, ou seja, não existe justificativa realmente aceitável para entendermos (e acharmos correto) crimes como assassinato - então, a "solidão social" de Arthur é tão comparável quanto a de Travis de "Taxi Driver" (1976), influença gigantesca para "Coringa", ou a de Alex de "Laranja Mecânica" (1971). E também não existe um extremismo perigoso do lado "incel" que tanto pintaram: Arthur é incapaz de se relacionar com uma mulher - a ideia básica do "incel", que literalmente significa "celibatário involuntário" -, porém, isso, em momento nenhum, é o maior peso na personalidade de Arthur - ele até tem um romance imaginário, que logo é esquecido.


Toda a raiva do protagonista não está engatilhada com misoginia, racismo ou homofobia - os gatilhos comuns envolvendo crimes de "incels" -, e sim engatilhada contra o capitalismo e o abuso de poder. Arthur se rebela contra aqueles que possuem força para estagnar injustamente a sua vida, e se torna um símbolo contra Thomas Wayne, o magnata da cidade e pai do futuro Batman - é, inclusive e indiretamente, graças ao Joker que Bruce perde os pais no assassinato no beco, o que desencadeará no surgimento do herói.

Mas não posso fugir da sensação preocupante de glamorizarão ao redor do Joker. Em uma das últimas cenas, ele é ovacionado após dar um tiro na cabeça de um apresentador ao vivo na tevê aberta. Enquanto dialogava internamente sobre o quão controverso é o momento, lembrei de "Relatos Selvagens" (2014); em um dos segmentos, um homem comum explode uma repartição do governo em um surto contra a burocracia do Estado, e, assim como o Joker, vira ícone da resistência. Só que há dois fatores imprescindíveis: em "Relatos", não há vidas tiradas e o ar crítico jamais se distancia da tela, o que não podemos dizer o mesmo de "Coringa".

Joaquin Phoenix, um dos mais interessantes e versáteis atores do nosso tempo, está bem na pele do vilão, mas nem é preciso comparar com Heath Ledger, que fez a mais incrível versão do personagem em "O Cavaleiro das Trevas", para perceber que seu Joker é bom, mas não sensacional. Todd Phillips pesa a mão nas cenas que gritam "vejam como ele atua!" sem necessariamente ter uma atuação tão genial na tela; há cenas que não dosam corretamente a caricaturização natural do personagem, que beira a forçação - fiquei satisfeito, no entanto, em ver que deixaram um ar flamboyant e debochado ali. O próprio Phoenix tem atuações melhores na sua filmografia - em "Ela" (2013) e "Você Nunca Esteve Realmente Aqui" (2017), por exemplo.

O que há de melhor em "Coringa" é a veia niilista e misantropa de seus caminhos. Dentro de uma sociedade tão enferma, desigual e que retira a dignidade de suas pessoas, é árduo não ceder ao cinismo - e Arthur não apenas cede como graciosamente se afoga na falta absoluta de sentido quando afirma que sua vida não é mais uma tragédia, e sim uma comédia. O que mais choca no filme é como ele é tão próximo da realidade, como tantas cidades são réplicas de Gothan e seu sistema enferrujado, e quanto mais próximo, mais palpável e assustador. Não por acaso, é polêmico e complexo seu conteúdo, condizente com uma realidade à par.

Só que, a partir da segunda metade, o zoológico de exposição da atuação de Joaquin Phoenix rouba o palco em detrimento do aparato sócio-psicológico - o filme o entrega como o melhor na tela, e esse brilho não é proporcional ao espaço dado, com vários desenvolvimentos de contextos (esses sim, os protagonistas da trama) sendo deixados de lado. No momento que ele se torna o Joker, há uma queda na qualidade da fita, que se espetaculariza ao máximo para tentar atingir voos épicos e grandiosos, sem conseguir efetivamente. "Coringa" é como Arthur contando piadas: gargalha o mais alto possível no intuito de fazer a plateia rir junto, e, mesmo sendo divertido, não há tanta graça assim.

NÃO SAIA ANTES DE LER

música, notícias, cinema
© all rights reserved
made with by templateszoo