Atenção: a crítica contém pequenos detalhes da trama.
O Cinema, assim como toda expressão humana, está dentro de um ciclo eterno de renovação. Se de um lado temos obras buscando empurrar as regras que regem a arte um degrau acima, do outro temos o resgate dos degraus já subidos. A quantidade de remakes e reboots é a comprovação: dados do Box Office Mojo revelam que, se pegarmos as 10 maiores bilheterias norte-americanas de 1981, sete eram de filmes originais. Em 2011, 30 anos depois, o total de películas originais no top 10 era zero: todas eram sequências, remakes ou adaptações.
O Cinema, assim como toda expressão humana, está dentro de um ciclo eterno de renovação. Se de um lado temos obras buscando empurrar as regras que regem a arte um degrau acima, do outro temos o resgate dos degraus já subidos. A quantidade de remakes e reboots é a comprovação: dados do Box Office Mojo revelam que, se pegarmos as 10 maiores bilheterias norte-americanas de 1981, sete eram de filmes originais. Em 2011, 30 anos depois, o total de películas originais no top 10 era zero: todas eram sequências, remakes ou adaptações.
E o que esses números refletem? Que a indústria cinematográfica está cada vez mais interessada em lucro confortável. É muito mais fácil garantir o retorno monetário em algo que já deu certo antes do que com algo original. "Em time que está ganhando não se mexe", já diziam, e o público está disposto a entrar nessa roda; nesta década, apenas um longa original foi o líder de bilheteria no ano: "Frozen: Uma Aventura Congelante" em 2013. Se olharmos para todo o século XXI, apenas "Avatar" em 2009 se junta com "Frozen" no time dos originais.
Uma via de escape que consegue ter originalidade e, ao mesmo tempo, utilizar-se do resgate são as obras que se apropriam de estilos já utilizados. Um exemplo desconhecido, mas recomendadíssimo, é "A Bruxa do Amor" (The Love Witch, 2016), que é construído quase em sua totalidade como se fosse uma obra feita nos anos 70 - a fidelidade com a época é assustadora. Esse híbrido do novo com o antigo parece ser uma fórmula certeira para nossa época, e exemplos modernos de grande sucesso estão aqui para provar, desde a série "Stranger Things" (2016-presente) até o filme "LEGO Batman" (2017).
O que os exemplos citados têm em comum: são recheadíssimos com referências à cultura pop, um filão que é mina de ouro. É aqui que entra "Jogador Nº 1" (Ready Player One), o segundo lançamento de 2018 em terras tupiniquis de Steven Spielberg - depois do indicado ao Oscar "The Post: A Guerra Secreta". E os dois nomes, tão diferentes, são resumos explícitos do cinema spielberguiano.
De um lado temos "The Post" representando a veia "séria" do diretor, que já apostou diversas vezes em dramas complexos e com veia patriótica, o que faz derreter o coração da Academia: "A Cor Púrpura" (1985), "A Lista de Schindler" (1993), "O Resgate do Soldado Ryan" (1998), "Lincoln" (2012) e "Ponte dos Espiões" (2015) são alguns dos principais exemplos dramáticos do norte-americano. Já "Jogador Nº 1" resgata o molde pipoca, molde esse basicamente criado por Spielberg: "Tubarão" (1975), "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981), "E.T.: O Extraterrestre" (1982) e "Jurassic Park" (1993) são os exemplos blockbusters, que levaram milhões aos cinemas.
Baseado no livro de Ernest Cline, o filme se passa em 2045, com o planeta enfrentando grave crise ecológica. Para fugir dessa condição, a humanidade usa o OASIS, um programa de realidade virtual onde um mundo perfeito foi criado. Após seu criador (uma mistura de Steve Jobs com Sheldon Cooper) morrer, um desafio é lançado na plataforma: o primeiro a encontrar três chaves escondidas ganhará total controle do OASIS. Wade (Tye Sheridan) e seu avatar Parzival tentarão, junto com vários outros, encontrar as chaves antes da Innovative Online Industries (IOI), empresa tecnológica que quer pôr as mãos no universo criado ali.
Automaticamente, ao ler a premissa, fica claro que estamos diante de uma película escancaradamente comercial. Jovem protagonista, tecnologia, distopia, luta do bem contra o mal, há todos os temperos necessários para injetar a catarse na veia da plateia. O longa então se divide em dois hemisférios bastante distintos: o mundo real e o mundo virtual.
A distopia desenvolvida aqui foi imageticamente construída por meio de muito metal. O nosso mundo parece mais um ferro-velho, com carros, trailers, antenas e tudo o que pudermos imaginar feito do material entulhado, amassado e destruído. Os arranha-céus lustrosos de vidro não existem mais: os prédios são como caixinhas de ferro uma em cima da outra. O design de produção do mundo pós-apocalíptico - ou seja lá o termo usado - foi feito com grande poder visual, imediatamente criando o tom de sucateamento necessário para pôr o espectador a par do caos que virou o planeta.
Já o mundo virtual é uma explosão de cores, luzes e sons. Não demora muito para Wade sai da depressão que virou sua casa e cair de cabeça no OASIS. Uma rápida viagem até ali já nos entope de referências, de Minecraft ao clássico jogo Pinball. Dentro da plataforma, cada usuário pode criar seu avatar das mais criativas formas, de humanas a robôs gigantescos, e esse pequeno detalhe do roteiro, co-adaptado pelo próprio autor do livro, abre espaço para diversas discussões.
Muito mais do que um personagem pré-desenvolvido ou um BuddyPoke da vida (saudades, Orkut), você não só controlará o avatar como será o mesmo. Como você construiria seu próprio corpo se pudesse? Enquanto o Parzival - versão virtual do Wade - é bem normal, há uma sequência que mostra várias pessoas "jogando" no OASIS e seus respectivos avatares, e é interessante ao extremo ver como as pessoas se auto-espelham dentro do jogo. O melhor amigo de Wade, Aech, um brutamonte musculoso, na verdade é (teoricamente) uma garota lésbica. A escolha da troca de gênero consegue dizer muita coisa.
Com essas realidades concomitantemente sendo exploradas pela narrativa, "Jogador Nº 1" é um live action e uma animação ao mesmo tempo - toda a realidade dentro do OASIS é feita por meio de efeitos-especiais. Como temos maior acesso ao OASIS, é provável até que o filme possa concorrer ao Oscar de "Melhor Animação" (!), já que enquadra-se dentro dos critérios de escolha da categoria. Segundo a Academia, um longa é elegível para a categoria de "Animação" se:
A sequência da corrida é o maior júbilo de ação feito no cinema de 2018 até agora. Elétrica, divertidíssima e empolgante, toda a cena é milimetricamente perfeita, e joga a adrenalina do público nas alturas pelos efeitos visuais belíssimos, as referências, os obstáculos e a iminente derrota de todos. É aqui que Parzival conhece Art3mis, avatar de Samantha (Olivia Cooke), que obviamente se tornará seu par romântico em uma ou duas cenas, apesar de a garota fazer a linha dura, o velho jogo de "jamais vou me apaixonar por você" que todos sabemos onde vai parar.
O que há para compensar essas perdas é o que faz da produção ser memorável: o pacote pop. A segunda fase é para qualquer fã de cinema enlouquecer: ela se passa dentro do Hotel Overlook, de "O Iluminado" (1980). Sim, o longa de Stanley Kubrick. Particularmente assisti ao filme sem saber o que viria pela frente, então me peguei explodindo de êxtase em poder ver o cenário de um dos maiores clássicos do terror de toda a história na tela. A sequência, criada com CGI e manipulação das cenas originais, é gloriosa e hilária, reunindo rapidamente os melhores momentos do filme, das irmãs gêmeas fantasmas até o elevador de sangue, o quarto 237 e o labirinto na neve.
Por se tratar de um filme pipoca, o roteiro de "Jogador Nº 1" infelizmente não supera os clichês e comodismos para facilitar ao máximo a assimilação da plateia. As relações são gritantemente fáceis, os dilemas elementares demais, os embates óbvios e sem peso, o que derruba gravemente o andar da película - os vilões são caricaturas que não fazem a menor diferença. É tudo muito previsível, desde o nerd apaixonado pela menina descolada até a turma estranha de amigos que de uma forma ou outra vai conseguir resolver seus problemas antes do minuto final.
"Jogador Nº 1" é, de maneira curiosa, visual e conceitualmente um híbrido: mistura de real e animação, nostalgia e clichês, e é fácil entender tanto quem achar um sucesso quanto um fracasso; a balança pessoal deve colocar os prós e contras para conseguir ponderar o saldo final. Produto na medida para o nicho geek, que consome bilhões anualmente, "Jogador Nº 1" talvez seja a maior explosão pop do cinema pipoca contemporâneo. Esse "A Fantástica Fábrica de Chocolate" sem o chocolate e com óculos de realidade virtual entrega demasiado saudosismo e construções visuais energéticas para carregar a plateia, mesmo com todas as falhas de roteiro e um último ato caótico e afundado em lugares-comuns. Mas fica difícil não ter uma ponta de empatia quando fazem sequência inspirada em "O Iluminado". Spielberg, você jogou pesado.
De um lado temos "The Post" representando a veia "séria" do diretor, que já apostou diversas vezes em dramas complexos e com veia patriótica, o que faz derreter o coração da Academia: "A Cor Púrpura" (1985), "A Lista de Schindler" (1993), "O Resgate do Soldado Ryan" (1998), "Lincoln" (2012) e "Ponte dos Espiões" (2015) são alguns dos principais exemplos dramáticos do norte-americano. Já "Jogador Nº 1" resgata o molde pipoca, molde esse basicamente criado por Spielberg: "Tubarão" (1975), "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981), "E.T.: O Extraterrestre" (1982) e "Jurassic Park" (1993) são os exemplos blockbusters, que levaram milhões aos cinemas.
Baseado no livro de Ernest Cline, o filme se passa em 2045, com o planeta enfrentando grave crise ecológica. Para fugir dessa condição, a humanidade usa o OASIS, um programa de realidade virtual onde um mundo perfeito foi criado. Após seu criador (uma mistura de Steve Jobs com Sheldon Cooper) morrer, um desafio é lançado na plataforma: o primeiro a encontrar três chaves escondidas ganhará total controle do OASIS. Wade (Tye Sheridan) e seu avatar Parzival tentarão, junto com vários outros, encontrar as chaves antes da Innovative Online Industries (IOI), empresa tecnológica que quer pôr as mãos no universo criado ali.
Automaticamente, ao ler a premissa, fica claro que estamos diante de uma película escancaradamente comercial. Jovem protagonista, tecnologia, distopia, luta do bem contra o mal, há todos os temperos necessários para injetar a catarse na veia da plateia. O longa então se divide em dois hemisférios bastante distintos: o mundo real e o mundo virtual.
A distopia desenvolvida aqui foi imageticamente construída por meio de muito metal. O nosso mundo parece mais um ferro-velho, com carros, trailers, antenas e tudo o que pudermos imaginar feito do material entulhado, amassado e destruído. Os arranha-céus lustrosos de vidro não existem mais: os prédios são como caixinhas de ferro uma em cima da outra. O design de produção do mundo pós-apocalíptico - ou seja lá o termo usado - foi feito com grande poder visual, imediatamente criando o tom de sucateamento necessário para pôr o espectador a par do caos que virou o planeta.
Já o mundo virtual é uma explosão de cores, luzes e sons. Não demora muito para Wade sai da depressão que virou sua casa e cair de cabeça no OASIS. Uma rápida viagem até ali já nos entope de referências, de Minecraft ao clássico jogo Pinball. Dentro da plataforma, cada usuário pode criar seu avatar das mais criativas formas, de humanas a robôs gigantescos, e esse pequeno detalhe do roteiro, co-adaptado pelo próprio autor do livro, abre espaço para diversas discussões.
Muito mais do que um personagem pré-desenvolvido ou um BuddyPoke da vida (saudades, Orkut), você não só controlará o avatar como será o mesmo. Como você construiria seu próprio corpo se pudesse? Enquanto o Parzival - versão virtual do Wade - é bem normal, há uma sequência que mostra várias pessoas "jogando" no OASIS e seus respectivos avatares, e é interessante ao extremo ver como as pessoas se auto-espelham dentro do jogo. O melhor amigo de Wade, Aech, um brutamonte musculoso, na verdade é (teoricamente) uma garota lésbica. A escolha da troca de gênero consegue dizer muita coisa.
Com essas realidades concomitantemente sendo exploradas pela narrativa, "Jogador Nº 1" é um live action e uma animação ao mesmo tempo - toda a realidade dentro do OASIS é feita por meio de efeitos-especiais. Como temos maior acesso ao OASIS, é provável até que o filme possa concorrer ao Oscar de "Melhor Animação" (!), já que enquadra-se dentro dos critérios de escolha da categoria. Segundo a Academia, um longa é elegível para a categoria de "Animação" se:
possuir duração acima de 40 minutos em que as performances dos personagens sejam criadas usando a técnica de quadro-por-quadro; em que um número significante de personagens sejam animados; e em que os personagens animados figurem em não menos que 75% do tempo de duração.A estrutura da obra se divide basicamente entre as três fases que os participantes devem enfrentar para ganhar as chaves. A primeira delas é uma corrida, há anos sendo feita e sem jamais ser completada. Com uma vibe bem "Velozes & Furiosos" (2001), os personagens correm em carros e motos e devem enfrentar diversos obstáculos, de rampas à la "Hot Wheels" até monstros como um dinossauro gigante - referência a "Jurassic Park" - e o "chefão" da corrida, o King Kong, que até presente data sempre impediu todos os jogadores de alcançar a linha de chegada.
A sequência da corrida é o maior júbilo de ação feito no cinema de 2018 até agora. Elétrica, divertidíssima e empolgante, toda a cena é milimetricamente perfeita, e joga a adrenalina do público nas alturas pelos efeitos visuais belíssimos, as referências, os obstáculos e a iminente derrota de todos. É aqui que Parzival conhece Art3mis, avatar de Samantha (Olivia Cooke), que obviamente se tornará seu par romântico em uma ou duas cenas, apesar de a garota fazer a linha dura, o velho jogo de "jamais vou me apaixonar por você" que todos sabemos onde vai parar.
O que há para compensar essas perdas é o que faz da produção ser memorável: o pacote pop. A segunda fase é para qualquer fã de cinema enlouquecer: ela se passa dentro do Hotel Overlook, de "O Iluminado" (1980). Sim, o longa de Stanley Kubrick. Particularmente assisti ao filme sem saber o que viria pela frente, então me peguei explodindo de êxtase em poder ver o cenário de um dos maiores clássicos do terror de toda a história na tela. A sequência, criada com CGI e manipulação das cenas originais, é gloriosa e hilária, reunindo rapidamente os melhores momentos do filme, das irmãs gêmeas fantasmas até o elevador de sangue, o quarto 237 e o labirinto na neve.
Por se tratar de um filme pipoca, o roteiro de "Jogador Nº 1" infelizmente não supera os clichês e comodismos para facilitar ao máximo a assimilação da plateia. As relações são gritantemente fáceis, os dilemas elementares demais, os embates óbvios e sem peso, o que derruba gravemente o andar da película - os vilões são caricaturas que não fazem a menor diferença. É tudo muito previsível, desde o nerd apaixonado pela menina descolada até a turma estranha de amigos que de uma forma ou outra vai conseguir resolver seus problemas antes do minuto final.
"Jogador Nº 1" é, de maneira curiosa, visual e conceitualmente um híbrido: mistura de real e animação, nostalgia e clichês, e é fácil entender tanto quem achar um sucesso quanto um fracasso; a balança pessoal deve colocar os prós e contras para conseguir ponderar o saldo final. Produto na medida para o nicho geek, que consome bilhões anualmente, "Jogador Nº 1" talvez seja a maior explosão pop do cinema pipoca contemporâneo. Esse "A Fantástica Fábrica de Chocolate" sem o chocolate e com óculos de realidade virtual entrega demasiado saudosismo e construções visuais energéticas para carregar a plateia, mesmo com todas as falhas de roteiro e um último ato caótico e afundado em lugares-comuns. Mas fica difícil não ter uma ponta de empatia quando fazem sequência inspirada em "O Iluminado". Spielberg, você jogou pesado.