Atenção: o texto contém detalhes da trama.
Como você bem sabe - ou deveria saber -, nesse Mês do Orgulho LGBT eu decidi focar em filmes com a temática aqui no Cinematofagia - só clicar na tag da coluna para ler todas as críticas caso tenha perdido alguma. A melhor parte de jogar o texto no mundo é o debate que ele gera. Depois de ler meus comentários para "Com Amor, Simon" (2017), uma amiga veio ponderando sobre como precisamos de filmes LGBTs que não discorram diretamente sobre as lutas e glórias de ser uma pessoa fora da hétero-cisnormalidade, e isso é bem verdade.
Como você bem sabe - ou deveria saber -, nesse Mês do Orgulho LGBT eu decidi focar em filmes com a temática aqui no Cinematofagia - só clicar na tag da coluna para ler todas as críticas caso tenha perdido alguma. A melhor parte de jogar o texto no mundo é o debate que ele gera. Depois de ler meus comentários para "Com Amor, Simon" (2017), uma amiga veio ponderando sobre como precisamos de filmes LGBTs que não discorram diretamente sobre as lutas e glórias de ser uma pessoa fora da hétero-cisnormalidade, e isso é bem verdade.
É evidente que o Cinema, essa arte tão absoluta no que tange o discurso, é ferramenta inevitável para os comentários sociais, então mostrar as dores e amores dos LGBTs é necessário. No entanto, também precisamos de filmes que encaixem essa população em situações corriqueiras, sem que suas batalhas específicas sejam o foco principal. Essa narrativa desassocia diretamente essa fatia com as reivindicações de direitos, afinal, ser LGBT não é apenas ser LGBT. Temos várias outras histórias dentro de nós, e, em muitas delas, nossa sexualidade e/ou gênero não é o prato principal na mesa.
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Pois bem, quis o destino que o próximo filme a cair no meu colo fosse exatamente um que trouxesse personagens LGBTs sem que suas sexualidades fossem o mote da película. Estou falando do brasileiro "As Boas Maneiras", recém estreado em solo tupiniquim e vencedor do prêmio de "Melhor Filme" no Festival do Rio 2017. Dirigido pela melhor dupla de diretores em atividade no país - Juliana Roja e Marco Dutra -, a fita conta a história de Ana (Marjorie Estiano, em ótima atuação), uma rica e solitária mulher que contrata Clara (a hipnótica Isabél Zuaa) para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez vai avançando, Ana começa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos e sinistros hábitos noturnos que afetam diretamente Clara.
Se você já assistiu ao curta da dupla, "Um Ramo" (2007), e a obra-prima "Trabalhar Cansa" (2011), sabe que os dois gostam de passear pelo terror e suspense psicológico - seus trabalhos solos também refletem essa predileção: "Quando Eu Era Vivo" (2014) do Dutra e "O Duplo" da Rojas são exemplos do que chamamos "exercício de gênero". Em "As Boas Maneiras" não é diferente. O longa claramente se divide em duas partes bem distintas, que chamarei de Parte 1 e Parte 2, quase como se dois filmes diferentes se unissem parar contar uma mesma história.
A sessão já começa com o primeiro contato entre Ana e Clara. Essa, mulher negra, pobre e que está devendo o aluguel do mês, chega no luxuoso flat de Ana para sua entrevista de emprego. Ela dá logo de cara com uma candidata, eloquente e bem aparentada, enquanto ela é simples e sem referências. O curso de enfermagem, seu maior trunfo do currículo, nem chegou a ser finalizado pelas dificuldades da vida. Mas há algo que faz Ana escolher aquela mulher tão diferente ao invés de todas as outras que, sem dúvidas, devem ter currículos bem mais polpudos.
A montagem, sem perder tempo, nos tira do apartamento da patroa até a casa de Clara. A esperta fotografia começa o trajeto com um enquadramento bem aberto para focar tanto as casinhas da periferia quanto os riquíssimos arranha-céus de uma metrópole construída à base de CGI, a fim de potencializar a discrepância daquele lugar pé-no-chão para os prédios futurísticos com cobertura de vidro. Seja pela porta gigantesca da entrada de Ana até a geladeira dupla, o choque de realidades é gritante e, principalmente, brasileiro.
Entre todas as discussões sociais que a tela escancara, há a todo o momento um pesada áurea de que há algo de errado ali. Não sabemos se é aquela misteriosa empregada ou a estranha patroa, que, juntas, se tornam ainda mais desconcertantes - e a mise-en-scène impulsiona a impressão, como por exemplo: há um plano que enquadra toda a sala de Ana com seus móveis e objetos opulentes, mas, também, a carcaça de um boi embaixo de uma mesa, peça incompatível com todo o resto. Porém, ignorando todas as variáveis, os dois polos acabam demonstrando magnetismo, como se elas desde sempre precisassem uma da outra. A gravidez de Ana só reforça todos esses efeitos, tendo em vista que não há sinal do pai da criança.
Vamos desvendando os passos de Ana até aquele momento com muita calma. Ela precisa de um tempo para se sentir confortável ao lado de Clara e, assim, contar quais caminhos a vida escolheu para ambas terminarem juntas no sofá da sala. O pai foi um caso de uma noite só, que sumiu no mundo, fazendo com que a família de Ana a mandassem para a capital com o intuito de realizar um aborto. Todavia, a mulher mantém o bebê, o que a faz cortar relações com a família.
A soma dessa variável com a gravidez cada vez mais estranha de Ana gera a equação perfeita para ela ficar dependente de Clara, a única efetivamente ao seu lado. Apesar do pré-natal mostrar um bebê forte e saudável, a pressão da mãe está alta, e o médico corta a carne da sua dieta, o que gera a primeira grande ruptura entre a relação daquelas duas mulheres. Durante uma noite sonâmbula, Ana beija e morde Clara, num ato animalesco de prazer e fome. E essas ânsias não serão saciadas tão facilmente.
A primeira parte de "As Boas Maneiras" caminha sem medo sobre um o solo do suspense psicológico, bebendo largamente na fonte de "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos do terror da história - que, coincidência ou não, estreou há 50 anos na mesma semana de "As Boas Maneiras". Ana e Rosemary compartilham inúmeras similaridades, e a fita faz questão de deixar isso bem claro com o andar do primeiro bloco. O jogo que a plateia entra para desvendar quem é o peão dissonante entre as duas é desvendado com a aproximação do fim da gravidez de Ana, que culmina na sequência máxima de terror da obra.
Se você é daqueles que deseja sentar na frente de um filme sabendo o menos possível dele, talvez nem esteja lendo isso agora caso ainda não tenha visto "As Boas Maneiras". Mas é fácil saber - ou pelo menos supor - que estamos diante de uma fita que traz a figura do lobisomem: é só olhar para o pôster ou alguma das imagens promocionais - ou pegando a referência ao Lobo Mal da Chapeuzinho Vermelho quando o médico diz que o bebê tem "grandes olhos, grande boca e grandes mãos". Curiosamente, a palavra "lobisomem" só é mencionada na duração uma vez, entretanto, o relato de Ana sobre a noite com o pai do seu filho - ilustrado lindamente em animação - é o último prego para cimentar nossas certezas: ele era um lobisomem e, assim, seu filho também será.
E, quebrando a expectativa gerada pela comparação com "O Bebê de Rosemary", que não revela a imagem do bebê, a criatura de "As Boas Maneiras", fofamente batizada de Joel, é mostrada em todo seu esplendor. O ápice do terror do longa é alcançado aqui, e só é conseguido a partir de competentes efeitos especiais, que constroem um bichinho fidedigno, raro elemento de um gênero tão pouco explorado dentro do cinema nacional: o terror e a fantasia.
E aqui se encerra a Parte 1 do filme. A Parte 2 segue os passos de Joel e como ele deve lidar com sua condição e o meio que o cerca. Todo o tom narcotizante é inteiramente deixado de lado para dar lugar ao folclórico, quase um conto de fadas macabro. A mudança de narrativa é um choque bem grande, já que temos a impressão, no clímax da primeira metade, que a película está chegando ao fim. Demoramos um pouco para submergimos no novo filme que se inicia, principalmente por ele ser bem maior do que imaginamos - a fita completa tem 2h15min de duração.
Essa troca de conduções pode fazer com que a plateia se desligue do filme, que agora é uma fábula com traços de musicais (!). É bem verdade que a parte final é menos impactante que a primeira, e possui os momentos mais fracos de toda a obra - as cenas cantadas poderiam ter sido cortadas da edição para acelerar o ritmo -, porém é um complemento interessante ao primeiro segmento, consumindo agora outras fontes, como a do filme "Grave" (2016), que narra a vida de uma garota canibal, criada pela família como vegetariana para não despertar sua fome de carne - o mesmo estilo de vida que Joel é condicionado para sua própria proteção.
O cinema nacional infelizmente tende a cair na repetição, então "As Boas Maneiras" joga todos os arquétipos dos nossos clichês pela janela para dar lugar a uma trama incomum, fantástica e com muito frescor. Essa fábula urbana é um trabalho de gênero notório que demonstra sem titubear o quanto possuímos criatividade para sairmos da mesmice, entregando mercadorias cinematográficas aquém de nenhum lugar. Mesmo indo longe demais para uma plateia mais comercial, "As Boas Maneiras" é um louvor em concepção e realização, com um gore pontual que mostra que o sangue é verde e amarelo nesse bizarro filme sobre uma mulher lésbica que tem a vida mudada por um bebê lobisomem.
A primeira parte de "As Boas Maneiras" caminha sem medo sobre um o solo do suspense psicológico, bebendo largamente na fonte de "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos do terror da história - que, coincidência ou não, estreou há 50 anos na mesma semana de "As Boas Maneiras". Ana e Rosemary compartilham inúmeras similaridades, e a fita faz questão de deixar isso bem claro com o andar do primeiro bloco. O jogo que a plateia entra para desvendar quem é o peão dissonante entre as duas é desvendado com a aproximação do fim da gravidez de Ana, que culmina na sequência máxima de terror da obra.
Se você é daqueles que deseja sentar na frente de um filme sabendo o menos possível dele, talvez nem esteja lendo isso agora caso ainda não tenha visto "As Boas Maneiras". Mas é fácil saber - ou pelo menos supor - que estamos diante de uma fita que traz a figura do lobisomem: é só olhar para o pôster ou alguma das imagens promocionais - ou pegando a referência ao Lobo Mal da Chapeuzinho Vermelho quando o médico diz que o bebê tem "grandes olhos, grande boca e grandes mãos". Curiosamente, a palavra "lobisomem" só é mencionada na duração uma vez, entretanto, o relato de Ana sobre a noite com o pai do seu filho - ilustrado lindamente em animação - é o último prego para cimentar nossas certezas: ele era um lobisomem e, assim, seu filho também será.
E, quebrando a expectativa gerada pela comparação com "O Bebê de Rosemary", que não revela a imagem do bebê, a criatura de "As Boas Maneiras", fofamente batizada de Joel, é mostrada em todo seu esplendor. O ápice do terror do longa é alcançado aqui, e só é conseguido a partir de competentes efeitos especiais, que constroem um bichinho fidedigno, raro elemento de um gênero tão pouco explorado dentro do cinema nacional: o terror e a fantasia.
E aqui se encerra a Parte 1 do filme. A Parte 2 segue os passos de Joel e como ele deve lidar com sua condição e o meio que o cerca. Todo o tom narcotizante é inteiramente deixado de lado para dar lugar ao folclórico, quase um conto de fadas macabro. A mudança de narrativa é um choque bem grande, já que temos a impressão, no clímax da primeira metade, que a película está chegando ao fim. Demoramos um pouco para submergimos no novo filme que se inicia, principalmente por ele ser bem maior do que imaginamos - a fita completa tem 2h15min de duração.
Essa troca de conduções pode fazer com que a plateia se desligue do filme, que agora é uma fábula com traços de musicais (!). É bem verdade que a parte final é menos impactante que a primeira, e possui os momentos mais fracos de toda a obra - as cenas cantadas poderiam ter sido cortadas da edição para acelerar o ritmo -, porém é um complemento interessante ao primeiro segmento, consumindo agora outras fontes, como a do filme "Grave" (2016), que narra a vida de uma garota canibal, criada pela família como vegetariana para não despertar sua fome de carne - o mesmo estilo de vida que Joel é condicionado para sua própria proteção.
O cinema nacional infelizmente tende a cair na repetição, então "As Boas Maneiras" joga todos os arquétipos dos nossos clichês pela janela para dar lugar a uma trama incomum, fantástica e com muito frescor. Essa fábula urbana é um trabalho de gênero notório que demonstra sem titubear o quanto possuímos criatividade para sairmos da mesmice, entregando mercadorias cinematográficas aquém de nenhum lugar. Mesmo indo longe demais para uma plateia mais comercial, "As Boas Maneiras" é um louvor em concepção e realização, com um gore pontual que mostra que o sangue é verde e amarelo nesse bizarro filme sobre uma mulher lésbica que tem a vida mudada por um bebê lobisomem.