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Crítica: “O Homem do Norte” é tudo o que um filme de guerra viking feito pelo diretor de "A Bruxa" poderia ser


Era 2015 quando caía como uma bomba nos cinemas um filme que revolucionaria o gênero terror: "A Bruxa". Longa de estreia do até então designer de produção Robert Eggers, "A Bruxa" deu um twist em uma época em que os blockbusters recheados com jump-scares dominavam as salas, reabrindo as portas de um estilo cinematográfico que parecia renegado dos grandes olhos do público: o drama conduzindo o terror, não o oposto.

Eggers já surgiu recebendo a alcunha de genial, um título pesado demais para ser carregado sem algum percalço: ele teria que provar que o título era válido, e não um caso de acontecimento único. Daí veio "O Farol" (2019). Ali, Eggers deu o adendo de que sim, ele é um talento inigualável, conseguindo ver seu primeiro filme a ser indicado ao Oscar - de "Melhor Fotografia", mas deveria ter recebido várias outras.

É claro que seu próximo trabalho seria afogado em ansiedade e hype, todavia, existe uma diferença seminal entre os dois primeiros filmes e "O Homem do Norte" (The Northman): "A Bruxa" e "O Farol" são produções independentes, da melhor produtora do planeta, A24, enquanto "O Homem do Norte" é da gigante Universal.

Há um êxodo gritante de novos autores fílmicos que fizeram o mesmo caminho de Eggers: sair de uma pequena produtora para os braços dos conglomerados hollywoodianos. Isso significa que esses talentos estão sendo reconhecidos (e bem pagos) pelo maquinário da Sétima Arte, porém, há também um revés que particularmente lamento: esses cineastas perdem seu controle criativo e assinatura para cederem às vontades dos milionários produtores. O que isso significa? Que a magia que fez aquele diretor ganhar renome acaba se dissipando a fim de encaixar-se nas "regras" do mercado atual (que saudades do meu ex Denis Villeneuve).


Esse era um temor sobre como "O Homem do Norte" terminaria. As notícias, no entanto, eram promissoras, revelando que os produtores e Eggers sempre mantiveram um acordo sobre o corte final do filme, o que ainda manteve nas mãos do realizador como seu trabalho seria exibido na tela. E já afirmo: "O Homem do Norte" é uma fita 100% "eggeriana".

Alexander Skarsgård vive Amleth, um príncipe que tem sua vida e família roubadas quando seu pai, o então Rei Corvo (Ethan Hawke), é assassinado e o trono usurpado. Enquanto foge ainda criança, ele promete que irá vingar o pai, salvar a mãe, Rainha Gudrún (Nicole Kidman), e matar o regicida. Ele espera anos para ficar frente a frente com a oportunidade da profetizada vingança, apaixonando-se por Olga (Anya Taylor-Joy), uma feiticeira pagã.

Era de se esperar pelos nomes envolvidos, mas é sempre um deleite ver um roteiro que se passa em outra época se preocupar em imergir seus personagens (e, consequentemente, o espectador) com um estudo apurado na maneira que aquelas pessoas agiam, falavam e vivam. Nas mãos de Eggers e Sjón, poeta islandês que também co-escreveu o maravilhoso "Ovelha" (2021) - e que foi apresentado ao diretor pela Björk, que faz uma ótima ponta aqui -, um portal no tempo é aberto no ecrã, e os diálogos, inspirados em várias lendas medievais da Escandinávia, são compostos com inglês, nórdico e eslavo arcaico - nada mais triste que um filme no século passado com os atores falando como se estivessem no Instagram, não é mesmo, "A Freira" (2018)?


Inclusive, toda essa composição lembrou os também fantásticos "O Cavaleiro Verde" (2021) e "A Tragédia de Macbeth" (2021), que possuem o mesmo intuito: como seria um filme feito na mesma época pelas mesmas pessoas que criaram a história original. Das falas até o irretocável design de produção e figurinos, há um afinco gritante (e com cara de premiações) já característico no cinema de Eggers, que possui uma queda em histórias passadas em épocas antigas - "A Bruxa" se passa em 1630, "O Farol" em 1890 e "O Homem do Norte" vai ainda mais longe, para 895 d.C.

Enquanto tanto "A Bruxa" quanto "O Farol" são, apesar de ambiciosos, bastante restritos em sua geografia - o primeiro se passa na sua maioria em uma casa e o segundo dentro de um farol cravado em uma ilhota -, "O Homem do Norte" roda a Europa antiga em uma epopeia que catapulta a visão de Eggers para patamares ainda mais grandiosos, o que explica a mudança de produtora - só uma marca como a Universal teria poder financeiro para arcar com a dimensão pretendida pelo roteiro.

Aliás, é deveras importante explorar esse ponto. O orçamento inicial de "O Homem do Norte" era de $65 milhões, mais do que o montante gasto para a realização de "A Bruxa" e "O Farol" combinados - a Universal ainda liberou mais uma nota a fim de deixar a película ainda mais perfeita, com o orçamento batendo $90 milhões. Estamos (infelizmente) habitando a era dos blockbusters de super-heróis, com os Homens-Aranhas da vida vendo os maiores orçamentos (e bilheterias) da atualidade, então é muito bom ver que um estúdio do alto escalão escolheu investir quase $100 milhões em um filme de época viking com inglês arcaico e lançá-lo próximo a um dos mais aguardados longas do ano, "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" (2022) - que teve mais do dobro de orçamento.


Ainda há outro fator que também demonstra o interesse genuíno pelo filme: ele possui indicação classificativa para maiores de 18 anos, a maior existente, ou seja, o público é limitado já na hora de comprar o ingresso. E a classificação é mais que justificada: a violência e brutalidade de uma história de guerra não é amenizada, e Eggers não perdoa no gore em cenas capazes de arrepiar a plateia. Se você (como eu) é calejado em filmes mais, digamos, extremos, talvez "O Homem do Norte" não soe tão forte graficamente - quem sobrevive a um "A Casa Que Jack Construiu" (2018), sobrevive a qualquer outra exposição de violência -, contudo, é indiscutível a coragem da produção em não maquiar ou esconder a crueza da carne entre uma luta de espadas. Tudo é posto na tela porque tem que estar ali, não há gratuidade na edificação daquele universo.

Em sua terceira excursão para contos do séculos passados, Robert Eggers entrega mais uma obra-prima que amplia a mitologia de seu cinema, sempre dançando entre o fantástico e o terror com uma assinatura própria espetacular para um autor tão jovem. Pegando a plateia pelo pescoço e forçando-a a embarcar em um barco que está fadado ao sangue, todas as profecias ditas através da boca de bruxas conduzem histórias em que a natureza (seja a do planeta ou a nossa própria) está presa a grossas cordas do destino. Resta a você acompanhar o degringolar dos personagens "eggerianos", pobres vítimas de forças sobrenaturais que turvam as suas missões de descobrirem quem são. "O Homem do Norte" é tudo que você poderia esperar de uma saga viking milionária assinada por Robert Eggers.

Crítica: “O Escândalo”, a cultura do estupro e as escolhas de gênero na realização do cinema

Desde o boom do movimento "Me Too" em 2017 - potencializado pelas acusações contra o produtor Harvey Weinstein, magnata de Hollywood -, a indústria se mantém mais alerta às condutas predatórias dos homens em altos cargos. Uma das peças solidificadoras do movimento, dessa vez no mundo da televisão, foi quando a jornalista Gretchen Carlson processou Roger Ailes, presidente da gigante Fox, de assédio sexual em 2016.

O projeto para "O Escândalo" (Bombshell), adaptação do caso, foi aprovado assim que Ailes faleceu em 2017. No filme, o plot orbita em torno de Gretchen (interpretada por Nicole Kidman); Megyn Kelly, uma das maiores apresentadoras da Fox no período (interpretada por Charlize Theron); e Kayla Pospisil (Margot Robbie), uma repórter recém-contratada pela emissora, a única das protagonistas a não ser baseada em alguém real. John Lithgow é Ailes, em uma versão mais insana do seu Winston Churchill em "The Crown".

O início da fita é totalmente a cara do seu roteirista; Charles Randolph, que ganhou um questionável Oscar pelo roteiro de "A Grande Aposta" (2015), emula o estilo ali usado e que (infelizmente) é uma das febres da Hollywood moderna: "O Escândalo" abre como um documentário, com a personagem de Theron quebrando a quarta parede enquanto explica os acontecimentos dos corredores da Fox. O tom dado é inquestionável: esse é um filme que se passa no coração dos EUA, lida com sua cultura e expõe seus indivíduos.

Um desânimo imediatamente me abateu - os dois últimos grandes longas com esse estilo foram sofríveis ("Vice", 2018, e "As Golpistas", 2019) -, todavia, foi uma bênção quando vi que tal escolha criativa foi apenas para a introdução, sendo deixado de lado rapidamente e adotando uma narrativa convencional. Dá para se questionar se esse prólogo involuntário não seria dispensável ou uma quebra de estrutura evitável, porém, não consigo nem apontar como defeito quando o estilo foi abandonado.

Outro aspecto que pode desanimar no primeiro ato é a maneira que o filme adentra no cenário político norte-americano. Os eventos que levaram a exposição de Ailes têm como linha de partida a ascensão de Donald Trump na corrida presidencial. O passeio pelas tensões políticas e sociais do país pode soar chato, mas é importante para visualizarmos como a misoginia é peça preponderante daquela cultura - Trump ataca Kelly pelo Twitter após uma entrevista, e usa a imagem da mulher como artilharia.


Por estar no seio de uma das mais poderosas emissoras do planeta, a película mostra a correlação entre jornalismo e política, algo importante de ser lembrado. Não como uma "aula na tela", e sim com alguns momentos bastante sutis - há uma cena em que uma repórter explica para Kayla que tipo de histórias a Fox vai aceitar contar, que nada mais é que um estudo das linhas editoriais, um aspecto primordial para comprovar a ilusão da imparcialidade do jornalismo. E meu diploma de jornalismo se sentiu feliz em ver essas abordagens no filme.

Se a Fox possuía um molde para agradar o seu público-alvo (majoritariamente conservador e eleitor do Trump), as contratações também passavam por um crivo bastante específico quando falamos de mulheres: elas eram contratadas não pelo currículo, e sim pela aparência - as jornalistas são obrigadas a usarem apenas vestidos e as bancadas são transparentes para que suas pernas fiquem sempre em evidência (!?!?). Kayla, almejando um cargo mais elevado dentro da empresa, consegue um encontro com Ailes, afirmando que poderia ser muito útil para a Fox. A metodologia do homem para aceitar ou não a proposta é fazer com que a mulher dê uma "voltinha" para que ele analise o "material".

Kayla, meio desconcertada, jocosamente atente ao pedido, que, para seu assombro, vai além da "voltinha". Ailes pede para que ela levante o vestido e mostre suas pernas. Essa cena é importantíssima dentro da obra, e possui vários pontos para discutirmos. Kayla vai levantando seu vestido cada vez mais até mostrar sua calcinha, mesmo claramente se sentindo agredida por aquilo. Quem está do lado de cá pode se questionar porquê diabos ela se submeteu a aceitar aquilo quando poderia virar as costas e ir embora, mas esse é um pensamento que exclui um fator que muda tudo.

O poder que aquele homem possui. Ele é um dos mais influentes empresários de todo o país, e detém a possibilidade de criar e destruir carreiras com um telefonema. É deveras intimidador receber um pedido de Ailes, e muitas vezes as mulheres ficam tão abismadas com o ocorrido que não conseguem nem ao menos pensar de forma clara o que está acontecendo. Uma das mulheres reais que denunciaram Ailes contou em entrevista que até hoje não sabe porque fez o que o homem pedia em um dos encontros em seu escritório privativo, e essa pergunta deve assombrá-la pelo resto da vida - algumas das personagens reais da história, como Megyn Kelly, estão em uma entrevista sobre o filme e a veracidade do mesmo.

É crucial que a personagem de Robbie seja inventada pois é ela que é assediada na tela - nem sou capaz de imaginar uma das mulheres reais vendo sua personagem, com seu nome e sua caracterização, na posição gráfica da cena. É verdade que a sequência em questão poderia ser muito mais refinada - seria bem mais interessante colocar a câmera no rosto da personagem enquanto ela levanta o vestido do que focá-la de corpo inteiro para que todos possam ver o que Ailes viu, uma cena grotesca. Pode ser que a escolha seja para tornar o espectador cúmplice daquele absurdo e, assim, gerar ainda mais revolta (o que pelo menos aqui funcionou), no entanto, com algo tão delicado, seria melhor a sutileza.


Kayla sai da sala após o assédio e continua sua vida sem revelar o que aconteceu. Quem teria coragem de acusar aquele que paga seu salário? Uma sequência bastante correta é quando Rudi Bakhtiar, uma âncora da Fox, é assediada por um apresentador. O roteiro intercala inteligentemente a conversa dos dois com os pensamentos da mulher, e a jornada que se passa em sua cabeça é elucidativa: ela se culpa, tenta barganhar com o homem e até passa a mão em sua cabeça, tirando a culpa que obviamente é dele. Por negar o assédio, ela é sumariamente demitida. É um sistema totalmente construído para oprimir e sair ileso.

Com a abertura do processo de Gretchen, ela precisa de reforços dentro da Fox para poder ter força contra Ailes, que possui a maior equipe possível para lhe proteger. O principal nome é o de Megyn, o maior nome feminino dentro da emissora. Ela também foi assediada por Ailes, mas não sabe se deve ou não vir a público por não querer ver sua carreira ser eternamente associada com isso. É engraçado até vê-la renegar o título de "feminista", usando a palavra como se fosse um palavrão, o que dá uma camada interessante de composição em sua personagem, que é dotada de lados certos e errados.

Como as premiações já comprovaram, as três protagonistas estão fenomenais. Kidman (a que menos possui espaço, mas que ainda assim conseguiu ser indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante" no SAG 2020), adiciona mais um ótimo capítulo no seu retorno ao topo em Hollywood. Theron, que já tem um Oscar para chamar de seu por "Monster: Desejo Assassino" (2003) e acumula mais uma indicação a "Melhor Atriz", despe-se inteiramente a fim de incorporar a persona de Megyn Kelly, e confesso que achei que era a jornalista real nas primeiras cenas, tamanha competência de sua performance e do fenomenal trabalho de Maquiagem, o favorito ao Oscar da categoria. E Margot Robbie, ah, Margot Robbie... Sua segunda indicação ao prêmio da Academia - a primeira foi pelo maravilhoso "Eu, Tonya" (2017) - é um ponto final para qualquer dúvida sobre o imenso talento da atriz, que, mesmo tão nova dentro da indústria, já é um dos grandes nomes. Duas cenas em destaque para ela: a do assédio e quando ela finalmente revela o ocorrido. Aquele elevador, o único momento a unir as três na tela, teve que sustentar.

Muito tem se falado sobre como "O Escândalo" é o "Green Book: o Guia" (2018) da temporada porque é um filme sobre mulheres, mas escrito e dirigido por homens - assim como "Green Book" tratava sobre racismo sendo feito por brancos. Já abordei essa discussão diversas vezes aqui no Cinematogafia, entretanto, vamos repetir até entendermos. É inteiramente verdade que "O Escândalo" teria bem mais potencial se feito por mãos femininas, todavia, não podemos dizer quem pode falar o quê dentro da arte. Não podemos criar um apartheid artístico, delimitar temáticas para grupos específicos, pois, ao invés de evocar uma inclusão, excluiremos. Demandar mais inclusão e representatividade é feita por um caminho diferente, e diminuir "O Escândalo" só por ser dirigido/escrito por homens não acrescenta muita coisa para a complexa discussão da arte. Local de fala não garante competência artística. 

Colocando em uma balança, "O Escândalo" tem mais glórias do que tragédias, mas imprime a impressão de que todo o potencial que a história poderia ter não foi atingido - as atuações irretocáveis auxiliam a alavancar o apreço da obra. Se sua opção mais importante enquanto filme é gerar um senso de urgência sobre o assédio sexual e a cultura do estupro, é um objetivo atingido. A produção funciona bem como aviso para a indústria, cada vez mais atenta para esse crime ainda tão difícil de ser revelado, porém, deixa um gosto amargo ao fim: mesmo com as mulheres envolvidas na história possuindo enfim voz, o problema não foi solucionado. Cabe as vítimas aprenderem a seguir com suas vidas e com a mácula causada por um homem que fez o que fez como imposição de poder e convicção de impunidade.

Crítica: “Boy Erased” demanda a sessão ao expor as insanidades da terapia de cura gay

"Boy Erased: Uma Verdade Anulada" é um daqueles filmes que chegam com um timing perfeito. Apesar de estarmos na apoteose do Cinema LGBT, com nomes imersos na temática sendo cada vez mais produzidos e indo parar nas maiores premiações do mundo, estamos, também, embarcando em uma era da intolerância. Um dos pontos mais falados do lado conservador é a "cura gay".

Nem precisa ser um PhD em Psicologia para saber que a tal da cura gay é uma balela completa, porém, falar essa obviedade ainda é necessária. "Boy Erased" conta a história real de Jared (Lucas Hedges, indicado ao Oscar por "Manchester À Beira Mar"), um garoto de 18 anos que é mandado pelos pais, Nancy (Nicole Kidman) e Marshall (Russell Crowe), a uma clínica de terapia de reabilitação sexual. Jared é filho de um pastor e já nasceu rodeado pela religião, sem saber como equilibrar seus anseios e sua fé.


Um filme contemporâneo, é irônico como, logo no início, o enquadramento foca numa placa dizendo que os Estados Unidos é a "terra das oportunidades" - mas as oportunidades são só para algumas pessoas. Mas a ironia se torna pavor ao cair a ficha de que tudo o que está na tela é real e está acontecendo agora. A fita se utiliza de uma estrutura não-linear, indo e vindo na linha temporal numa tentativa de fugir do óbvio.

A maior parte da duração é dedicada para o que acontece dentro da clínica. Desde o momento em que Jared põe o pé no local, uma atmosfera de tensão paira quando as incontáveis regras são proferidas. Para resumir, há uma perda absoluta da privacidade, com os jovens não podendo nem ao mesmo ir ao banheiro sozinhos. Não é exagero chamá-los de "internos", afinal, a clínica mais parece uma prisão carcerária. Inclusive, a reabilitação é chamada de "Programa de Refugiados".


É impossível não lembrar de outro filme com a mesmíssima temática e lançado no mesmo ano: "O Mau Exemplo de Cameron Post" (2018), que retrata a vida de uma garota lésbica indo parar em um campo de conversão sexual. Também baseado em uma história real, as comparações entre "Cameron Post" e "Boy Erased" são inevitáveis. A grande diferença além do gênero das produções - "Cameron" é totalmente feminino, dirigido por uma mulher, Desiree Akhavan -, é que "Cameron" foca nos aspectos emocionais de sua protagonista diante da conversão, caindo bem mais no coming of age; "Boy Erased" coloca ênfase em explorar as narrativas construídas pela terapia.

Todo o desenrolar se inicia com o embate de Jared com o pai, um aspecto que aflige qualquer filho: o peso das expectativas dos pais. É fato que "Boy Erased" nunca chega num nível de sutileza ou requinte de um "Pária" (2011), só para citar outro longa LGBT com a mesma discussão, todavia, o filme de Joel Edgerton - que também atua, como Victor, o "líder" da clínica - sabe da importância de pontuar como LGBTs sofrem ainda mais no seio de famílias religiosas. O pai de Jared chega a dizer que, caso o garoto não aceite entrar na terapia, será expulso de casa - e dói saber que a realidade pode chegar a ser bem mais cruel do que isso.

A estratégia básica da terapia é colocar dois pólos que jamais podem entrar em contato: a homossexualidade é o oposto absoluto da religião, um caminho aberto pelo próprio Satanás. Assim como a religião em si, o processo é moldado à base do medo. O próximo passo é construir uma árvore genealógica onde cada indivíduo deve explorar todos os "defeitos" familiares, que vão desde abuso de drogas, aborto e associação ao crime, afinal, na lógica deles, Jared é gay porque um tio era alcoólatra (?).


Essa é uma lógica retirada do próprio livro que rege a vida religiosa extrema. Com um gráfico, Victor fala como a homossexualidade está irremediavelmente ligada aos pecados do estupro, assédio, AIDS e solidão, tudo o que não cabe no antro da heterossexualidade. Escolher o caminho contrário a deus é um beco sem saída, o que nos traz a outra máxima: homossexualidade é uma escolha.

Sempre me assombro quando ainda preciso dar esse discurso sobre a "opção sexual": você, oh hétero, conte-me como foi a emocionante aventura que o levou a escolher gostar do sexo oposto. Sabemos que não existe uma resposta para isso, porém, mesmo se existisse, mesmo se a sexualidade fosse passível de escolha, não seria uma escolha válida e legítima? O ato de escolher não invalida coisa alguma, matando a lógica absurda dos discursos reacionários.

O que é martelado na cabeça de quem se submete à terapia é que eles devem ter vergonha da própria natureza, um crime humano sem tamanho. "Deus não te ama assim", diz Victor para um garoto gay que não aceita a reabilitação, levando a sexualidade para o campo moral. Não satisfeitos, o próximo nível é físico, como um intensivo militar: eles devem manter uma pose de "macho", não podendo nem cruzar as pernas. Qualquer traço feminino é repudiado, nada diferente do que está em todos os lugares da vida real; o machismo sufoca. Para tais terapias, o homem de "verdade" é o homem de deus, afogado em masculinidade tóxica.


O nível extremo das estratégias do local chega quando a violência sai da opressão emocional e parte para a física. Um dos jovens sofre um crime gigante quando a clínica monta um funeral e chama sua família, que o espanca com uma bíblia em cima de um caixão. Até a irmã caçula, se debulhando em lágrimas, é obrigada a bater no irmão com a palavra do altíssimo. Deus deve estar orgulhoso do bom trabalho do homem de bem. Victor, no dia seguinte, fala com um belo sorriso: "Me sinto revigorado".

É interessante a dinâmica que o longa aborda sobre as estratégias de sobrevivência daqueles que estão obrigados ali. Os personagens de Troye Sivan e Xavier Dolan, dois ícones gays da música e cinema, respectivamente, desenvolvem planos particulares e bem diferentes para enfrentar aquele inferno: o de Dolan evita todo e qualquer contato com homens e o de Sivan engole a frase "fake it till you make it", apenas fingindo que tudo está funcionando para ir embora.

Todas essas discussões de "Boy Erased" são postas de maneira competente na tela, entretanto, a fita não vai além de um molde elementar nem gera uma carga emocional acima da média. É tudo legal, mas nada fora de série - nem mesmo as atuações, apesar de Hedges, Kidman e Crowe estarem bem confortáveis nos papéis. A parte técnica segue a "normalidade", sem inovações ou momentos que sejam memoráveis. Não dá para saber se é uma acomodação ou medo de arriscar - com exceção da já citada montagem temporal.

"Boy Erased" demanda a necessidade de sua sessão quando expõe as insanidades das criminosas terapias de conversão sexual. O filme demonstra o quanto a opressão e marginalização da identidade sexual só gera problemas, apesar de não conseguir seu lugar no panteão das obras-primas do Cinema LGBT. Bem mais voltado para os que acreditam que a religião é capaz de curar algo que não é uma doença, a produção mostra sádicos sendo alimentados pelo dinheiro de cristãos e expurgando seus ódios em cima de cabeças fáceis, tudo em nome de deus. A mensagem final é de suma importância: a verdade não pode ser anulada.

Nicole Kidman está anos mais velha na primeira foto de "Destroyer"

Nicole Kidman sempre teve papéis icônicos e atualmente parece estar em seu auge com grandiosos papéis na TV e cinema, como em "Big Little Lies" e "Lion - Uma Jornada para Casa". Neste ano, ela divide tela com  Lucas Hedges em "Boy Erased" e protagoniza "Destroyer", o suspense de Karyn Kusama.

A primeira imagem foi divulgada hoje com Nicole Kidman toda caracterizada como a detetive Erin Bell. A foto foi revelada pela Vanity Fair.


Nicole é uma artista de verdade.

Segundo a própria diretora, a ideia do visual de Kidman no papel é trazer a imagem de uma mulher de meia-idade real, com danos do sol, estresse, privação de sono e outros inferninhos que a vida adulta nos proporciona.

Com Tatiana Maslany e Sebastian Stan, o filme acompanha a detetive Erin Bell que jovem se infiltrou em uma gangue californiana, mas não teve bons resultados. Porém, com a volta do líder da gangue, ela deve retornar e relacionar-se novamente com os membros restantes. O filme estreia em dezembro.

Charlize Theron, Margot Robbie e Nicole Kidman devem se juntar para filme sobre assédio

Uma das grandes maravilhas proporcionadas pelo cinema são os encontros improváveis entre atores e atrizes renomados ou em ascensão que trazem produções incríveis. Em algum momento de 2019 ou 2020, nós teremos junção de Charlize Theron, Margot Robbie e Nicole Kidman em um possível filmão baseado em uma história real sobre assédio no canal Fox News.

Charlize Theron é a primeira confirmada na produção. A atriz de “Mad Max: Estrada da Fúria” dá vida à Megyn Kelly, jornalista que foi lançada por Roger Ailes, presidente e chefe da Fox News que foi acusado em 2016 por assédio sexual pela ex-âncora Gretchen Carlson. Megyn Kelly também liderou as acusações contra Roger Alies. Após o caso, a jornalista foi contratada pela NBC, recusando o contrato de US$ 20 milhões oferecidos pela Fox.

Segundo informações do Variety, Nicole Kidman será responsável por interpretar Gretchen Carlson, estando em negociações para pegar o papel. Já o The Hollywood Reporter, aponta que Margot Robbie também deve entrar para o filme, dando vida a uma produtora associada ao canal. Ambas as negociações devem caminhar para serem fechadas e as atrizes serem confirmadas na produção.

Intitulado “Fair and Balanced”, o filme tem direção de Adam McKay e roteiro de Charles Randolph, dupla responsável por “A Grande Aposta”, que recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2016. “Fair and Balanced” está sem previsão de lançamento.

Alerta de Oscar: "Boy Erased", com Lucas Hedges e Nicole Kidman, ganha seu primeiro trailer

Nestes últimos tempos, o público LGBTQ+ (em específico, público gay) ganhou produções muito boas, obrigado, dignas de prêmios Oscar ou MTV Movie Award — "Com Amor, Simon", esse momento foi teu. Após produções felizes e good vibes, chegou o momento de lembrarmos que nada é fácil para quem é desta comunidade; este é o papel de "Boy Erased".

Baseado em "Boy Erased: A Memoir", uma autobiografia de Garrard Conley, o filme traz a história real de Garrard (Lucas Hedges), um jovem de 19 anos que conta aos seus pais, que são devotos a igreja batista, que é gay. Assim, o moço é mandado para uma terapia de conversão, a famigerada e horrível "cura gay". O primeiro trailer da produção chegou à rede mundial de computadores hoje.


Cês tão sentindo esse cheiro? É Oscar o nome.

Estrelado pelo talentosíssimo Lucas Hedges, de "Lady Bird" e "Três Anúncios Para um Crime", o longa ainda conta com Nicole KidmanRussell Crowe, o cantor Troye Sivan e o diretor Xavier Dolan ("Mommy"). "Boy Erased" é dirigido por Joel Edgerton, que também atua. O filme marca sua segunda direção — o primeiro foi "O Presente".

"Boy Erased" chega aos cinemas norte-americanos em 2 de novembro, mas ainda não há previsão de quando chegue no mercado brasileiro. Já cotado para o Oscar 2019, o filme deve estrear em salas tupiniquins no próximo ano, semanas antes (ou após) da premiação.

Novo poster, detalhes da trama e mais: o que nós já sabemos de "Aquaman"

No próximo sábado (21), durante a San Diego Comic-Con, será revelado o primeiro trailer de “Aquaman”; e ontem o Jaiminho Wan postou em seu Instagram que está trabalhando nos últimos detalhes do vídeo que será divulgado. A foto publicada traz uma imagem ao fundo com o herói, seu tridente e água para todos os lados.


Com o lançamento do trailer se aproximando e a divulgação do primeiro pôster do filme, reunimos algumas das principais informações do filme para ficar com o hype lá em cima com esse Aquaman  (Jason Momoa) todo trabalhado no “ooh yeaah”, cabelão e tatuagem neste tentativa positiva de cair no mainstream e matar a personalidade zoada até hoje graças “Super Amigos”.

James Wan é quem assina a direção de “Aquaman” e apesar do rapaz ser famoso pelas suas produções assustadoras — o cara está por trás de “Jogos Mortais” e “Invocação do Mal” —, a gente já sabe que ele dá conta do recado em outros gêneros. Um exemplo é “Velozes e Furiosos 7”, assinado por ele, que trouxe coisas insanas para a melhor franquia de todos os tempos; depois de “Transformers”, é claro.


Em entrevista a Entertainment Weekly, James Wan revelou que o filme abusa de efeitos práticos, incluindo maquiagem pra caramba, em “praticamente todos os atores”. Um deles é Djimon Hounsou (“Guardiões da Galáxia”) que está irreconhecível como o Rei dos Fisherman. O frame divulgado representa uma cena onde Orm (Patrick Wilson, de "Invocação do Mal"), o Mestre dos Oceanos, pede ajuda ao rei para declarar guerra contra a superfície por conta da poluição.

Ainda falando do visual da produção, há rumores de que o Aquaman terá um uniforme bem parecido com o clássico laranja e verde. Segundo o The Aquaman Shrine, o traje mostrado em uma feira de licenciamento seria idêntico ao uniforme criado por Ivan Reis. Vem, fanservice!


Além dos nomes já citados, a produção conta com um puta elenco, como nomes firmadíssimos na indústria, como Nicole Kidman. A oscarizada por “As Horas”, inclusive, será a Rainha de Atlanta, a mãe de Arthur Cury (Jason Momoa). Amber Heard interpreta Mera, uma princesa guerreira poderosíssima de Xebel, capaz de controlar a água e futura rainha de Atlanta. Não podemos esquecer de Willem Dafoe, o Vulko, mentor de Arthur, e Yahya Abdul-Mateen II como o vilão Arraia Negra.

Tá, mas e a trama? Em entrevista ao Comic Book, Ernie Malik, um dos chefes publicitários da produção, revelou que o Aquaman está em busca do Tridente do Rei, o verdadeiro, perdido há anos. O "quindente" usado em "Liga da Justiça" não tem o mesmo poder do Tridente do Rei, capaz de controlar os oceanos e somente o verdadeiro rei é capaz de empulha-lo. O longa provavelmente explorará a disputa pelo tridente entre Arthur Cury e Orm.

Fiquem atentos porque neste final de semana muita coisa de "Aquaman" deve ser divulgada graças a San Diego Comic-Con. "Aquaman" estreia nos cinemas brasileiros em 13 de dezembro.

Crítica: não há amor familiar maior do que o de "O Sacrifício do Cervo Sagrado"

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando perguntado "Qual o seu diretor em atuação favorito?", muitos respondem Quentin Tarantino, ou Christopher Nolan, Tim Burton, Wes Anderson e Sofia Coppola. Todos esses são mesmo bons diretores, mas o meu favorito é Yorgos Lanthimos. Pode soar bem wannabe-cult ter como diretor favorito um grego que dificilmente está na boca das pessoas, porém suas obras falam por si só.

Yorgos teve seu apogeu com "Dente Canino" (2009), vencedor do prêmio de "Melhor Filme" em uma das principais mostras do Festival de Cannes e indicado ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", o que abriu as portas para o diretor financiar projetos cada vez mais ambiciosos. Ele é mais famoso por "O Lagosta" (2015), que rendeu sua segunda indicação ao Oscar, na categoria "Melhor Roteiro Original", e é exatamente em seus roteiros que habita a máxima do cinema lanthimoniano.

Todos os seus filmes possuem premissas completamente absurdas, estranhas ou curiosas, para dizer o mínimo. Em "Dente Canino", seguimos uma família cujo os filhos nunca passaram do portão de casa, desenvolvendo mentalidades completamente diferentes do resto do mundo. Em "Alpes" (2011), um grupo cria uma empresa onde as pessoas podem contratá-los para substituírem algum familiar que morreu. E em "O Lagosta", ser solteiro é proibido, e eles devem encontrar um parceiro em 45 dias ou serão transformados em um animal e solto em uma floresta. Pois é.


É claro que em seu mais novo filme, "O Sacrifício do Cervo Sagrado", não seria diferente, mesmo a premissa não soando tão absurda em uma primeira lida. O longa conta a história de Steven (Colin Farrell), um cirurgião que vira amigo de Martin (Barry Keoghan), adolescente que perdeu o pai na mesa de cirurgia do médico. Em um misto de pena e culpa, o protagonista acaba colocando o jovem debaixo de suas asas, a pior coisa que poderia ter feito.

A primeira característica do estilo de Lanthimos, e que está em todos seus trabalhos, são as atuações quadradas. Ele dirige os atores para que estes soem quase robóticos. Além de ser um artefato de cunho estilístico, isso serve para compor uma ideia de que seus filmes não se passam em nossa realidade. São como mundos paralelos, ou versões diferentes do nosso mundo. Os personagens agem, reagem e respondem de maneiras diferentes do esperado, o que pode espantar de início, porém faz parte da bizarrice que acompanha o texto.


No desenrolar da relação entre Steven e Martin, o homem decide apresentar o garoto para sua família: a esposa Anna (Nicole Kidman), sua filha mais velha, Kim (Raffey Cassidy), e o caçula, Bob (Sunny Suljic). Em retorno à gentileza, é a vez de Steven conhecer a família de Martin, que se resume em sua mãe (interpretada pela Alicia Silverstone), que abertamente dá em cima de Steven, para seu completo desconforto.

Após o acontecido, ele começa a evitar Steven, tanto para não precisar declinar de novos convites quanto por perceber que a relação saiu do controle, o que gera a ira do garoto. O que ele faz? Não há uma palavra específica, mas chamarei de "praga": Martion joga uma praga na família, que consiste em quatro etapas, começando do caçula até Anna. Primeiramente eles ficarão paralíticos e não conseguirão mais andar. Depois, se recusarão a comer, até que seus olhos comecem a sangrar, o penúltimo estágio. O último, então, é a morte. Para encerrar a praga, Steven deve matar um dos três, caso contrário todos morrerão.

O filme em momento nenhum explica como Steven faz isso - e, sinceramente, não importa. Para o garoto, aquela é uma forma de justiça para compensar a morte do pai. "Você matou um membro da minha família e agora vai ter que matar um da sua", diz ele. O que antes era uma situação em que Steven se tornara um pai postiço acaba se rebelando contra ele.


Os estágios de negação são seguidos à risca, com Bob passando por inúmeros exames médicos que não encontram o motivo para sua paralisia, sendo, para a mãe, um distúrbio psicológico, e para o pai, pura invenção do garoto, até que a filha também sofre da praga. A confirmação do poder de Martin vem quando a menina volta a andar momentaneamente enquanto conversa com ele por telefone. É o momento em que a mãe vê que realmente não se trata de uma doença, e que deve tomar medidas rápidas.

A partir de então começa um grande jogo de interesses dos três membros fadados a sofrerem pela praga. Tudo começa de maneira sutil, sendo mais escancarado com o passar do tempo e o último estágio da maldição chegando. O que antes era um família unida e amável como qualquer outra vai expondo suas rachaduras de modo feio.

Sabe aquela máxima de que os pais não têm filhos favoritos? A maior furada, mas o que antes era acobertado agora está aí para todo mundo ver. A mãe é claramente mais apegada ao garoto, enquanto o pai tem uma relação mais estreita com a menina. E esta, mais velha, usa dessa verdade para manipular o garoto e conseguir sair viva da situação, que rende a malfadada cena do mp3, quando ela pede, na maior naturalidade do mundo, para ficar com o aparelho do menino depois que ele morrer.


Como é cada um por si, todos vão pouco a pouco cedendo à música tocada e dançando conforme o ritmo. Kim vai até Martin e se oferece para fugir com ele. Bob começa a fazer tudo o que o pai mandava, como cortar os cabelos e se oferecer para regar as plantas. Se antes o garoto queria ser oftalmologista como a mãe, agora quer ser cardiologista como o pai. E até a mãe não resiste: tenta agradar o marido sexualmente e diz que eles podem matar um dos filhos, afinal, ainda podem fazer outro. Vale tudo para se salvar.

E é de uma ironia trágica perceber que tudo isso acontece por causa do pai, um poço de erros consecutivos. Ele não assume, mas causou a morte do pai de Martin durante sua cirurgia - representada pela cena de abertura, mostrando que Steven tem sangue nas mãos. Além de negar, o homem joga a culpa para o anestesista, um padrão comportamental que tende a se repetir: durante um encontro com o diretor da escola dos filhos, ele pergunta qual deles o diretor gosta mais, tentando pôr a responsabilidade de matar um dos dois em cima de outra pessoa.


Em um filme regido por homens, todos, com exceção de Bob, são recheados de problemas. Martin é um sociopata; o anestesista pede favores sexuais para Anna; e Steven então, nem se fala. A obra se passa em uma realidade aquém, porém mostra como funciona a cultura do estupro quando a forma que o homem se excita é vendo Anna fingindo estar inconsciente, um comportamento repetido por Kim.

E Bob é o único macho a sair desse padrão por ser puro, inocente e sem segredos. Ele é o cervo sagrado. Mas a morte do garoto para salvar a família é revelada desde o começo da praga para quem é atento: há um desenho de cervo em cima da cama quando o menino fica paralisado.

Com o comportamento de sempre colocar o peso da culpa em cima de outra pessoa, é claro que Steven não escolhe Bob: ele faz um jogo de roleta-russa para matar um dos três aleatoriamente. Nem na hora mais derradeira o pai consegue assumir a responsabilidade de toda a situação, que teve seu estopim graças a ele. É certo que Martin é o culpado por aquilo, pois, como bem lembra Anna, quem está pagando pelo erro de Steven são pessoas inocentes, porém a recusa do pai em aceitar o problema é o pontapé de todo o filme.


Muito se debateu sobre a figura de Martin. Afinal, o que ele é? O longa não nos entrega uma resposta definitiva, todavia há simbolismos que podem dar pistas: o garoto seria uma espécie de Jesus ao contrário: ao invés de fazer aleijados andarem, ele tira as pernas de suas vítimas. Isso fica claro quando Anna beija seus pés, no intuito, também, de obter a salvação (em vão).

O roteiro foi baseado na tragédia de Ifigénia, de Eurípedes, que conta a história de um pai que mata um dos filhos para saciar a ira de um deus, com Ifigénia, a escolhida para o sacrifício, se transformando em um cervo após sua morte (daí o título do filme). A peça se utiliza da ironia trágica para contar os passos da protagonista, da mesma forma que o roteiro de Lanthimos e Efthymis Filippou narram a loucura dessa família.

"O Sacrifício do Cervo Sagrado" não visa tecer críticas sociais tão evidentes como em "O Lagosta"; a obra prefere compor uma família disfuncional que só percebe suas falhas quando pressionada diante de uma situação extrema. Claro, a bizarrice do cinema do diretor está impregnada em cada segundo, em um filme incômodo que aponta o dedo ao revelar o quanto a sagrada família pode ser o antro que renderá tragédias - além de continuar nos fazendo olhar torto pelas cenas desconcertantes, como Martin pedindo para ver os pelos de Steven. Caminhando sobre o gênero suspense, um fértil campo não tão explorado pelo diretor - e capinado com maestria aqui, o longa é uma exposição do amor familiar no mais destilado modo, lanthimonianamente falando, claro.

Você quer elenco maravilhoso? Nicole Kidman, Sebastian Stan e Tatiana Maslany podem estrelar filme juntos

Às vezes acontece da sétima arte nos promover encontros inusitados (e bons) em certas produções, como Emma Stone e Steve Carell em "A Batalha dos Sexos". O próximo encontro que devemos ver, e louvar, é de Nicole fucking Kidman, o futuro Capitão América, Sebastian Stan, e a princesa inventora da atuação de 300 personagens em uma mesma produção, ela mesma, menina mulher Tatiana Maslany.

Nicole Kidman já é confirmadíssima em "Destroyer", um drama policial dirigido por Karyn Kusama ("O Convite"), mas segundo o Coming Soon, Stan e Maslany estão negociando seus papéis na produção. Se deus existe, ele vai promover este encontro mara com estes três atores e será o hit que a atriz de "Orphan Black" precisa para desvincular sua imagem da série e finalmente acontecer em Hollywood.

"Destroyer" acompanha a jovem detetive Erin Bell, quem teve que se infiltram em uma gangue no deserto da Califórnia por conta do tráfico. Os anos se passam e o líder desta gangue retorna, fazendo com que Bell tenha que lidar com os membros restantes do grupo, lutando contra aqueles que destruíram seu passado. "Destroyer" ainda não tem previsão de lançamento.

Crítica: não só um espetáculo visual, "O Estranho Que Nós Amamos" é um complexo jogo de sedução

Sofia Coppola é uma das várias herdeiras da família Coppola, que conta com Jason Schwartzman (queridinho de Wes Anderson) e Nicolas Cage (sim). No meio de todos os nomes, Sofia é a maior expoente da família depois do seu pai, Francis Ford Coppola, diretor da trilogia "O Poderoso Chefão" e dono de cinco Oscars. Sofia, que teve o cinema como berço, conseguiu não ser só mais uma "filha de papai" e, assim, embarcar na fama do patriarca para fazer seu estilo.

E qual o estilo de Sofia Coppola? White gurls problems. Desde sua estreia, em 1999 com "As Virgens Suicidas", Coppola vaga por épocas para retratar como são as vidas de suas protagonistas brancas. Com exceção de "Um Lugar Qualquer" (2010), todos os outros filmes da diretora são retratos dessas existências, seja Maria Antonieta na cinebiografia pop de 2006 até a gangue de Hollywood no satírico "The Bling Ring" (2013). Acalme-se, isso pode até parecer uma reclamação ou o bom dedo apontado pro defeito, mas não. Coppola, uma mulher branca, nada mais explora do que a realidade próxima à dela - realidade essa válida como qualquer outra.

E, por ser uma mulher branca, a cineasta provavelmente se encontrou numa saia justa ao escolher realizar "O Estranho Que Nós Amamos", segunda adaptação do romance "A Painted Devil" de Thomas P. Cullinan (a primeira versão foi lançada em 1971). O livro se passa durante a Guerra da Secessão, e, caso você tenha esquecido sobre a história do evento, a escravidão foi pilar fundamental para desencadear a batalha, então uma pessoa branca dirigindo um filme desse período pode soar complicado.


No livro há uma personagem escrava, que Coppola excluiu do roteiro, decisão criticada por ser considerada whitewashing. Como num filme sobre o movimento escravista norte-americano não há uma pessoa negra?, você pode se questionar, todavia, só pelo fato de assumir a liderança da produção, a diretora estava diante de uma faca de dois gumes: se ela mantivesse a personagem, poderia ser criticada por ser mais uma artista branca colocando o corpo negro naquela posição; se retirasse, poderia ser também criticada por não trazer diversidade em seu filme (o que está acontecendo).

Segundo a própria, o motivo para a retirada da personagem escrava, coadjuvante no livro, é que muitos jovens assistem aos seus filmes, e não é daquela forma que ela quer representar pessoas negras, o que é um argumento bastante válido. Logo no começo de "O Estranho", há a informação de que todos os escravos fugiram da casa onde se passam os eventos. Não estamos falando de apagamento cultural, e sim de auto-preservação.

O longa não é um trabalho sobre escravidão, mesmo o tema sendo parte do contexto em que ele está inserido, é sobre um homem que chega na vida de várias mulheres e como isso pode fazer grandes diferenças. Sendo assim, a representação negra na figura escravista não é necessária, pois as discussões acarretadas pela presença de uma personagem assim não são imprescindíveis para a função que a diretora/roteirista escolheu priorizar. O foco aqui é outro.


Estamos num estágio cada vez mais avançado na preocupação de representatividades no cinema, então não precisamos mais de um Steven Spielberg para realizar um "A Cor Púrpura" (1982) em pleno séc. XXI. Nomes como "12 Anos de Escravidão" (2013) e "O Nascimento de Uma Nação" (2016), ambos dirigidos por diretores negros, são exemplos. Então cineastas brancos não podem dirigir filmes sobre escravos, como o caso de Spielberg e Quentin Tarantino com "Django Livre" (2012) e "Os 8 Odiados" (2015)? Claro que podem, mas o espaço para realizadores negros está, finalmente, crescendo: Ava DuVernay, Steve McQueen e Barry Jenkins são alguns grandes nomes modernos.

Com o contexto histórico já apresentado, "O Estranho Que Nós Amamos" conta a história de Martha Farnsworth (Nicole Kidman), diretora de uma escola para jovens moças. Com a guerra acontecendo, apenas cinco garotas ficam na casa junto com a diretora e uma professora, Edwina Morrow (Kirsten Dunst, a atriz favorita de Coppola). Certo dia, uma das garotas encontra John McBurney (Colin Farrell), um soldado ferido na floresta. Mesmo sendo um "ianque", a menina ajuda a levar o inimigo até a casa, onde a diretora aceita acolhê-lo enquanto cuida de sua perna ferida.

Aquele evento então desencadeia uma brusca mudança na vida daquelas pessoas. Reclusas numa mansão no meio do nada (mesmo local onde Beyoncé gravou partes do "Lemonade", inclusive), aquelas mulheres vivem reclusas também em suas sexualidades. A introdução de um homem no seio da escola vai testar como três gerações femininas diferentes vão lidar com a situação. Enquanto algumas das adolescentes se mantém aquém da chegada do estranho por ele ser do lado inimigo da batalha, outras vão entrar na guerra fria para chamar a atenção de John, como o caso de Alicia (Elle Fanning, que pelo visto decidiu de vez acabar com as personagens mocinhas inocentes).


Enquanto a obra original se passa pelos olhos de John, Coppola decide mudar o prisma narrativo e joga o expectador na visão das mulheres. Naturalmente, com a chegada não só de um homem, mas de um soldado rival, a postura de todas é da mais pura repulsa, algumas sugerindo que ele seja deixado para morrer, porém, desde o primeiro momento, há forte tensão sexual presente. Numa cena vemos Martha limpando o sujo corpo de John com enquadramentos em close, dando ênfase em como a diretora se sente atraída por aquele corpo masculino.

Mas nada disso é transparecido para o soldado, que começa a criar jogos psicológicos. Ele fugiu da guerra para não morrer, e encontra ali um solo fértil para seguir sua vida: uma mansão com várias mulheres, comida e, graças à recusa de Martha em entregá-lo de cara aos soldados aliados, aparente segurança. Em pequenos diálogos, ele vai homeopaticamente elogiando aquelas mulheres separadamente, criando simpatias e afeições. As mais velhas demonstram mais resistência nas pequenas investidas do homem, enquanto as mais novas se derretem diante do charme daquela estranha novidade. A vida delas é estudar, orar e se banhar em tédio, então algo tão novo é motivo de euforia.

A guerra fria cresce enquanto todas as presentes começam a se arrumar cada vez mais para impressionar John. Em determinado momento, todas parecem estar à caminho de um baile de gala, com joias e vestidos luxuosos. O soldado, claro, adora tudo aquilo, e se aproveita para fincar suas raízes de forma mais forte. Há um momento particularmente hilário quando, durante o jantar, várias moças começam uma batalha de aparências ao saberem que o homem gostou da torta de maçã servida. Uma diz que fez a torta, enquanto a outra afirma que é dela a receita, para logo depois ouvir que outra colheu as maçãs... Até o paladar de John é motivo para que elas busquem a aprovação dele.


Com a perna do soldado cada vez mais recuperada, seu tempo ali vai encurtando, já que Martha quer que ele vá embora quando puder caminhar (ao invés de entregá-lo para o exército). John então parte para a artilharia pesada, prontificando-se para ser o jardineiro da mansão e investindo amorosa e sexualmente em Martha, Edwina e Alicia, essa a menos sutil em relação aos seus desejos. Ao atirar para todos os lados, era claro que o conflito seria questão de tempo, e, ao flagrar John na cama de Alicia, Edwina fica furiosa e atira o soldado escada abaixo, destruindo sua perna.

Pode até passar despercebido, mas esse momento é a solidificação da figura de vilão de John. O primeiro pilar dessa construção, que já vinha sendo pincelado pelas suas manipulações, é o fato de que o homem é um pedófilo, indo para a cama de uma adolescente - não importa o quanto Alicia aceitava as investidas dele. Martha, a única que se mantém fria quando John cai da escada, escolhe amputar a perna quebrada, já que ele não sobreviveria daquela forma, o que fomenta uma ira descontrolada do homem ao acordar e se ver aleijado.

O que inicialmente poderia ser mais um filme de mulheres brigando entre si pela atenção do macho dominante encontra uma reviravolta quando todas têm que encontrar forças entre elas mesmas para não sucumbirem diante da fúria de John - algo parecido com o que acontece na série "Big Little Lies". Não importa as relações criadas com o soldado, são elas que devem ser protegidas. Excluindo Edwina, ainda apaixonada por John, todas se mantêm o mais longe possível dele. A personagem de Dunst é o corpo estranho nesse trato feminino por não ter tanto desenvolvimento para justificar tamanha fixação pelo homem, soando infantil e ingênua em demasia (para não dizer "babaca"). É interessante perceber que nunca fica completamente claro quem está jogando com quem - principalmente quando focamos na personagem de Kidman, em excelente atuação. John, o vírus que impregna aquela casa, ora parece estar sendo atacado pela imunidade feminina, ora aceito como uma infecção bem vinda.


A obra, no meio de tantas relações complexas, é pintada por toda a parte técnica exuberante. A fotografia de Philippe Le Sourd, indicado ao Oscar pelo trabalho em "O Mestre" (2013), é feita com luz natural (ou luzes artificiais muito bem escondidas), o que imediatamente remete à obra-prima "Barry Lyndon" (1975) de Stanley Kubrick. E a própria fotografia não é mero enfeite para dar beleza, é peça fundamental na imersão do expectador naquela trama. Precisamos adentrar naquela realidade tediosa, contemplativa e repressora de uma casa à luz de velas no meio dos Estados Unidos, e Le Sourd faz isso de maneira espetacular. Os figurinos e o design de produção completam o quadro riquíssimo desse deleite para os olhos, que merece, no mínimo, uma chuva de indicações aos prêmios mundo afora.

Sofia Coppola, que foi a segunda mulher a receber o louvável prêmio de "Melhor Direção" no Festival de Cannes 2017, consegue alcançar um interessante patamar na sua carreira com "O Estranho Que Nós Amamos". Todas as críticas que vem recebendo pelo casting branco são merecidas quando vemos que ela já estereotipou japoneses no horrível "Encontros e Desencontros" (2003) e excluiu a personagem latina de "The Bling Ring", porém, sua escolha em remover a escrava do texto original foi correta, tanto por se tratar de uma diretora que sempre escreveu sobre pessoas brancas quanto por já temos diretores negros para esse trabalho. O pior seria entregar um chavão unidimensional de uma mulher negra, que destoaria de toda a complexidade das personagens brancas aqui, resumidas no travelling final, que demonstra a força daquelas mulheres.

Cannes 2017: por que essa edição foi tão importante para as mulheres da indústria do cinema?

Estes últimos dias têm sido extremamente relevantes para a mulher na indústria cinematográfica: tivemos a estreia, em alguns países de "Mulher Maravilha" (no Brasil o longa chega aos cinemas no dia primeiro de junho), primeiro grande filme de super-herói dirigido por uma mulher – e o de maior orçamento comandado por uma diretora, com o custo de U$S 100 milhões –, e o Festival de Cannes, que consagrou e destacou o trabalho e o potencial, quase sempre negligenciado, das mulheres do cinema.

Estamos falando de Sofia Coppola, que levou o prêmio de melhor direção com "The Beguiled" (um remake da versão de Don Siegel, de 1971), e de Nicole Kidman, que foi homenageada por estar em quatro produções do festival, sendo duas delas participantes da mostra competitiva.

Com o cinema no sangue e DNA, Sofia foi a segunda mulher a levar o prêmio de direção, sendo que a primeira, Yuliya Solntseva, o recebeu há 56 anos – em 70 de Festival. Este cenário exageradamente desproporcional em relação à participação masculina em Cannes é apenas um reflexo do sexismo que existe em frente e por trás das câmeras (leia sobre aqui).

Segundo dados levantados pela New York Film Academy, existe uma mulher para cinco homens que trabalham nos bastidores de uma produção. Em um panorama mais crítico que o de Cannes está o Oscar, pois o prêmio de direção da Academia foi concedido a uma mulher apenas uma vez: Kathryn Bigelow ganhou a estatueta dourada por "Guerra ao Terror", em 2010.



Apesar do brilho de Sofia Coppola, a “Rainha de Cannes” (assim apelidada) foi Nicole Kidman. Aos 49 anos, a atriz já explorou praticamente todos os gêneros cinematográficos e participou desta edição do festival com três filmes e uma série: "The Beguiled" (o mesmo de Sofia), "The Killing of a Sacred Deer", "How to Talk to Girls at Parties" e "Top of the Lake: China Girl” (série). Em seu discurso de agradecimento pelo prêmio de honra, a atriz australiana não deixou de manifestar seu descontentamento com o machismo na indústria do cinema.

"Apenas 4% de mulheres dirigiram filmes em 2016. [...] Por sorte, temos Jane Campion e Sofia Coppola aqui [em Cannes]. Nós, como mulheres, temos que dar suporte a elas como diretoras. Todos dizem que hoje as coisas são diferentes, mas não são. Basta olhar as estatísticas", disse Nicole.

Percebam, então, que o maior problema não é por culpa do Festival de Cannes, Locarno, Sundance, Rio, do Oscar ou Globo de Ouro. A indústria não conspira a favor das profissionais do sexo feminino; portanto, o buraco é bem mais embaixo. Se existem poucas mulheres nas produções, uma parcela menor ainda irá se destacar a ponto de chegar nessas competições – e, consequentemente, a quantidade de ganhadoras será ínfima. Estamos falando de oportunidades e representatividade. 

O "Clube do Bolinha" de Hollywood precisa ser desfeito. Por isso, é sim necessário celebrar essas pequenas grandes conquistas. Que cada vez mais as atrizes recebam salários iguais aos de seus colegas homens. Que cada vez mais mulheres possam ocupar a direção de filmes (ou qualquer outra posição atrás das câmeras), dos independentes aos blockbusters. Que cada vez mais as mulheres sejam reconhecidas pelo talento, e não por seus corpos, looks, companheiros, “testes de sofá” ou pais cineastas. Então a gente comemora e enaltece sim, pois cada passo, mesmo que pequeno, é uma conquista – para elas e para todas. 

Crítica: "Lion: Uma Jornada Para Casa" é um "de volta para minha terra" manipulador e eficiente

Indicado ao Oscar de:

- Melhor Filme
- Melhor Ator Coadjuvante (Dev Patel)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Nicole Kidman)
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Fotografia
- Melhor Trilha Sonora

É provável que você, ao esbarrar com “Lion: Uma Jornada Para Casa”, imediatamente faça uma ligação com “Quem Quer Ser Um Milionário?”: filmes com ambientação indiana, feitos para premiações e protagonizados por Dev Patel; as semelhanças são evidentes, e, depois que o filme de Danny Boyle levou oito Oscars em 2009, incluindo “Melhor Filme”, até demorou a despontar um grande nome vindo da Índia (mesmo que não seja, de fato, um filme indiano).

É certo que “Lion” não tenha nem 1/3 do poder que “Milionário” teve em 2009 – as bilheterias refletem bem, $378 milhões contra $44 milhões –, porém, o filme de Garth Davis, que provavelmente terminará a noite de 26 de fevereiro de mãos abanando, merece atenção especial, mesmo não sendo a oitava maravilha da cultura moderna.

Imagem: Divulgação/Internet
Indicado a seis categorias na 89ª edição do Oscar, “Lion” conta a história real de Saroo em duas fases de sua vida. Na primeira, o vemos ainda criança (interpretado por Sunny Pawar) num vilarejo pobre da Índia. Ele e seu irmão, Guddu (Abhishek Bharate), roubam carvão para poder trocar por comida e leite. Certo dia, os irmãos se separam e Saroo acaba entrando num trem vazio que o leva para Calcutá, onde a língua é diferente e o menino tem que viver na rua. Entre varias idas e vindas, ele acaba num orfanato, e é adotado por um casal de australianos. Anos depois, já adulto (e interpretado por Dev Patel), Saroo decide começar uma caça online para tentar descobrir onde ficava o vilarejo de sua infância.

Com essa divisão de foco sob a figura de Saroo na infância e maturidade, o longa constrói duas realidades fílmicas. A primeira, com Saroo na Índia, é conduzida com grandes ares de tensão: a sequência onde ele se perde possui longos minutos sem fala alguma, somente imagens e trilha sonora. O diretor nos aproxima daquele garotinho sujo perdido sem saber pra onde ir, e todos os percalços que ele enfrenta – e não são poucos. Esse gancho já nos conecta com o protagonista, fazendo com que imediatamente torçamos, e soframos, por ele – o carisma do fofíssimo Sunny Pawar é ferramenta imprescindível para esse efeito. Não dá para não amar aquele menininho.

Imagem: Divulgação/Internet
Antes da segunda parte, com Saroo adulto, há um estágio de transição quando ele é levado até a Austrália para viver com seus pais adotivos (Nicole Kidman e David Wenham). Aqui a obra encontra grande palco de discussão quando contrasta as realidades gritantemente distintas que Saroo se insere. Enquanto a população negra da Índia é afogada em miséria, a lustrosa e branca Austrália é reflexo de riqueza. As casas do protagonista são em universos diferentes, e ele, ao chegar à casa adotiva, não sabe o que é a maioria daqueles eletrodomésticos, sendo apresentado pela mãe num tour.

Será meio impossível não pensar que Saroo, no fim das contas, teve “sorte”. Ele saiu de uma realidade extremamente pobre para uma vida farta. O garotinho que tinha que roubar carvão agora tem tudo, então o acontecimento valeu a pena, não? É bastante fácil ter tal questionamento quando estamos desse lado da tela, confortáveis e blindados contra um evento trágico que é se perder de toda a sua família aos cinco anos. Claro, Saroo teria conseguido praticamente nada se não estivesse na Austrália, e é aqui que reside outra grande crítica do filme.

Imagem: Divulgação/Internet
O abismo social entre negros e brancos é visível quando esbarramos na palavra “oportunidades”. Saroo adulto, 20 anos após ter se separado da família, pode ir à capital estudar, algo que Saroo na Índia provavelmente jamais conseguiria. Colocando em termos bastante ralos, nosso protagonista teve que “virar branco” para conseguir subir na vida. O quão desolador é isso?

Felizmente o aparato familiar que acolheu Saroo é bastante amável. Sua mãe, interpretada com grande louvor por Kidman, é uma mulher de amor sem limites, que acolhe aquele garotinho perdido porque ama a situação de ser gentil com um ser estranho. Não há, em momento algum, um traço nela de que o acontecimento que ocasionou tudo aquilo foi uma “bênção” na vida de Saroo, como poderíamos suspeitar; pelo contrário: ao saber que Saroo procura sua família na Índia ela dá o total apoio ao invés da natural e esperável reação de se sentir "abandonada" ou "traída".

Imagem: Divulgação/Internet
Na parte adulta, Saroo (um sincero Dev Patel) leva uma vida normal, mas há o fantasma do passado assombrando sua vida, o que o afasta de sua namorada, Lucy (Rooney Mara). A atriz é quase subutilizada, servindo basicamente para o drama de identidade do protagonista, mas é mais um reforço para a carga dramática que essa parte final vai usar e abusar.

Fazendo planos enormes, gráficos e vagando pelo Google Earth atrás do vilarejo, o filme acerta em não se deixar levar pelo lado tecnológico – haveria um choque entre a fria abordagem pela internet com o calor emocional da história. Luke Davies, roteirista do filme – que é baseado no livro “A Long Way Home”, escrito pelo real Saroo –, contou que a maior dificuldade da adaptação foi não transformar o filme numa “busca online”. Ao afastar-se das telas de computador, “Lion” mantém a força humana, que é, de longe, o forte de toda a história. A internet é mera ferramenta de auxílio, e aqui é posta assim.

Imagem: Divulgação/Internet
Dos três longas indicados a "Melhor Filme" nessa edição do Oscar sobre "histórias reais na tela" ("Até o Último Homem" e "Estrelas Além do Tempo" sendo os outros dois), “Lion” consegue ser o melhor ao conseguir com mais eficácia burlar as limitações do molde. Nós sabemos que Saroo encontrará sua família no fim do longa – mesmo não sabendo exatamente todos os detalhes de como isso acontecerá, a estrutura geral é bastante evidente, assim como nos outros dois filmes “baseados em fatos reais”. O que faz “Lion” se sobressair é a forma como ele consegue não derrapar nos clichês de forma tão grave – como “Até o Último Homem” fez – e manter o poder da tocante história intacto, quando não extremamente potencializado pelas manipulações cinematográficas.

É bem entendível aqueles que amam enlouquecidamente o longa, que arrancará lágrimas com facilidade – o final é gás lacrimogêneo audiovisual, não se reprima; e aqueles que o acharão descartável, por não apresentar nada de novo e ser manipulador sem medo de ser feliz. “Lion: Uma Jornada Para Casa” discute subtextos que dão mais valor ao filme, como os contrastes sociais nossos de cada dia, o ato da adoção, privilégio branco e o poder avassalador desse sentimento maluco chamado "saudade", a prova de que o ser humano é um bicho impressionante, todavia, a falta de inventividade é motivo para colocar num patamar abaixo esse “De Volta Para Minha Terra” internacional. 

P.S.: a explicação do título original é a cartada final de como o cinema, ao saber controlar de forma competente os sentimentos da plateia, é a arte mais avassaladora que existe.

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