A Netflix tem uma grade de seriados bastante extensa, e uma das melhores já produzidas é “BoJack Horseman”. A animação é uma das várias do segmento dentro da plataforma, mas chama a atenção por ser feita para o público adulto. Isso, por si só, é uma subversão bem curiosa, afinal, animações são fundamentalmente voltadas para o público infantil.
“BoJack” foi finalizada em 2020, mas nem deu tempo de sentir falta do formato. Estreou na Netflix “The Midnight Gospel”, mais uma animação adulta. Criada por Pendleton Ward (a mente por trás do sucesso “Adventure Time”) e Duncan Trussell. No curso de oito episódios (de aproximadamente 25-30 minutos), a história segue Clancy, um cara que possui uma espécie de podcast espacial. Ele vive numa dimensão chamada “Laço Cromático” (o mesmo local onde Lady Gaga agora vive no novo álbum, berro), e possui uma máquina que simula viagem para diversos universos paralelos – e é nessas viagens que ele grava o que se acontece para produzir seu conteúdo (assistido por poucos, mas fiéis espectadores).
Cada episódio começa com Clancy escolhendo um dos diversos planetas disponíveis no computador – com exceção daqueles que já foram destruídos. Todos estão passando por algum processo de apocalipse (como zumbi ou palhaços), e Clancy entrevista algum morador local e conversa sobre algum tópico. O título do seriado, traduzido livremente como "A Religião da Meia-noite", gerou bastante dúvida sobre o significado, e o criador explica: o "Gospel" vem da nova (e, segundo ele, "boa") percepção da religião, significando "boas notícias". Para ele, o desafio da produção é transmitir discussões relevantes mesmo no meio de situações catastróficas. Apesar do caos, somos capazes de crescermos enquanto seres humanos.
Assim como “BoJack”, os temas abordados pelo seriado são bastante complexos. As entrevistas de Clancy são baseadas em entrevistas reais, feitas no podcast de Trussell, então é uma verdadeira viagem. Os personagens conversam sobre a vida, o mistério da morte, o impacto do uso de drogas, o medo da solidão, como funciona a religião e váaaarias outras coisas.
É interessante como o roteiro não tem muita sutileza em discorrer sobre assuntos polêmicos – como o uso recreativo de drogas e suas responsabilidades –, então, caso tais conversas sejam demais para você, essa é uma série para deixar para depois. No decorrer da série, era engraçado como discordava veementemente de alguns pontos defendidos pelo texto, mas aí está a graça da obra: fazer com que você pense e repense seus conceitos. São temas muito necessários, como nossa relação com a morte e como podemos melhorar nossa percepção sobre a única certeza das nossas vidas.
Mergulhado em uma estética completamente surrealista, “The Midnight Gospel” é uma alucinação sem as drogas. Não é um estilo muito acessível, afinal, são milhares de coisas acontecendo ao mesmo tempo, numa explosão de cores e formas não tão bem especificadas. Um dos maiores acertos do visual é a maneira que a “fotografia” desenha seus enquadramentos, não possuindo limitações de onde veremos a história se passando. Para completar o processo de assimilação, ainda temos referências (bem charmosas) espalhadas – como os palhaços do segundo episódio possuindo uma aranha na parte interna, clara referência a “It: A Coisa”.
Confesso que algumas vezes fica um pouco difícil acompanhar o que está se passando: além da inundação de informações visuais, os diálogos são quase ininterruptos, e, somando com a complexidade dos temas, carece maior atenção do público para conseguir embarcar na mesma viagem dos personagens. Quem espera um “Adventure Time” - algo lúdico e recreativo - pode se decepcionar com a diferença de abordagens, com “The Midnight Gospel” sendo para quem busca um substituto para o vazio deixado por “BoJack Horseman” em termos de dinâmica. Eu, que nunca usei um alucinógeno na vida, acho que deve ser mais ou menos assim a sensação.