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Crítica: “Bacurau” e um Nordeste que não pensa duas vezes antes de meter a peixeira

Atenção: a crítica contém spoilers.

O Festival de Cannes 2019 foi um evento histórico para o cinema brasileiro; três diretores levaram prêmios na disputa: Karim Aïnouz com "A Vida Invisível" (o representante nacional para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional"), levando "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar"; e Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho com "Bacurau", o primeiro tupiniquim a ganhar o Prêmio do Júri na história. Qual a semelhança entre os três? São todos nordestinos - Aïnouz é cearense enquanto a dupla Dornelles & KMF são pernambucanos.

"Bacurau" é o primeiro deles a estrear em solo brasileiro. Bacurau é um vilarejo nos confins do interior de Pernambuco. Teresa (Bárbara Colen) chega para o enterro da matriarca da cidade, ponto de virada no destino daquelas pessoas, coincidentemente ou não. Mas antes mesmo de dirigirmos pelas estradas de terra batida que nos levam a Bacurau, o longa começa bem distante, no espaço. Os créditos iniciais, ao som de "Não Identificado" na voz de Gal Costa, passeia pelas estrelas até focar no globo terrestre.

Nesse balé espacial, a câmera passa sem pudores por um satélite, flutuando despreocupadamente no que parece ser o céu acima do continental Brasil. Ao nos jogarmos no solo, o choque é gritante: demorei a conseguir por os pés no filme quando não entendia a relação de uma abertura tão contrastante com o meio em que a história se passa. Um letreiro avisa: estamos em um futuro próximo. As discrepâncias são propositais.

A própria música que nos dá boas-vindas já ilustra o que está por vir: "Minha paixão há de brilhar na noite no céu de uma cidade do interior como um objeto não identificado". A tecnologia dissonante está presente na vida dos habitantes de Bacurau, que estranham quando o vilarejo simplesmente some do mapa (literalmente): ao abrir um Google Maps da vida, não há rastro de Bacurau. Logo depois, os sinais de celulares caem misteriosamente, o caminhão pipa que abastece a população é baleado e pessoas começam a surgir assassinadas. E muito bom lembrar que, enquanto Teresa se aproxima de Bacurau, passa por um caminhão recheado com caixões tombado na estrada. Prelúdio para desgraças maior do que esse?


O primeiro ato do filme é bem lento, atento em construir uma atmosfera que em momento nenhum dá uma amostra do que existe por trás de cada cacto do sertão, todavia, dá para sentir o gosto de que há algo macabro, esperando o momento certo de dar as caras. O acontecimento que abre o segundo ato é a chegada de dois motoqueiros, que estão fazendo trilha pelo sertão.

"Vocês vieram conhecer o museu?", questiona uma das moradoras aos forasteiros, que declinam. "Ah mas o museu é muito bom", joga outra, e os visitantes continuam negando o convite, que logo vão embora. A cena é deveras emblemática e importantíssima para entendermos o que "Bacurau" quer nos dizer por trás da superfície árida do ecrã. Pensemos: o que toda cidade do interior desse país tem como lugar turístico principal: uma igreja. Bacurau também tem uma igrejinha muito simpática, contudo, ela não funciona eclesiasticamente: foi transformada em um depósito.

Os moradores de Bacurau não convidam os visitantes a irem na igreja da padroeira da região, e sim para irem até o museu. Eles são enfáticos quando afirmam a belezura que é a casinha com objetos e fotos do local, então, o que está sendo dito aqui? Quando a igreja é fechada e o museu se torna a atração turística, Bacurau está nos dizendo que o que mais importa para eles não é a religião, e sim a história.

A alegoria, muito sutil, é o primeiro grande reforço da obra em enaltecer o que há de valoroso naquela realidade: a identidade de seu povo. No futuro, as pessoas abrem mão da fé para valorizar a memória acima de tudo, afinal, é ela que molda a cultura de um local - e particulariza sua gente. Os visitantes, ao declinarem o convite de conhecer o museu, estão, narrativamente, informando sobre o pouco interesse na história. Soa familiar?


A câmera se desgruda de Bacurau e segue os motoqueiros, que estão com um grupo de norte-americanos em uma casa igualmente no meio do nada. São eles os responsáveis por todas os infortúnios quando estão criando um caos gradativo para gerar pânico e, assim, matar todos os habitantes de Bacurau. A cena é grotesca pelos absurdos que são jogados na mesa: os americanos estão em uma missão, garantindo pontos por cada pessoa assassinada. Tudo soa ainda pior quando há dois brasileiros ajudando a empreitada, encabeçada por uma figura misteriosa que fala nos pontos nos ouvidos dos "caçadores" gringos.

Os brasileiros informam que estão ajudando os americanos porque são do sul do país, a região rica e imigrante. "Nós somos quase como vocês", diz um deles, para a gargalhada dos estrangeiros, que dizem que ambos não são brancos. O estudo da xenofobia não poderia ser mais direto: tanto os "opressores" quanto os "oprimidos" (que bizarramente auxiliam os "opressores") tratam o nordestino como animais para o abate, seres sub-humanos que podem ser exterminados como divertimento.

A partir daqui, "Bacurau", que vinha sendo um drama, abocanha elementos do suspense e terror, principalmente dos slashers - os filmes com assassinos sanguinários caçando suas vítimas. Com a sacada da pontuação por morte, transformando o macabro em um jogo, conseguimos lembrar desde "O Albergue" (2005) até "A Deusa da Vingança" (2016). E, é claro, quando os peões são pontos no tabuleiro, "Bacurau" é um faroeste legítimo, alucinante e que faz qualquer um pular da cadeira.

O tratamento é bem binarista: Dornelles e KMF não estão aqui para tecer complexos aparatos psicológicos para seus personagens enquanto indivíduos com diferentes antecedentes. Os gringos são ruins, os habitantes de Bacurau são vítimas, e é assim mesmo, preto no branco. O que sustenta - com folga - essa dicotomia é tanto o cuidado do roteiro ao expor seus acontecimentos quanto o contexto histórico e social que "Bacurau" encontra em seu lançamento. Nada é gratuito.


A prova da falta de gratuidades é a pluralidade do povo de Bacurau: tem desde médicos e prostitutas até assassinos de aluguel e rebeldes renegados. Em algum momento, todos possuem diferenças que os fazem lutar entre si mesmos, como facções dentro do vilarejo, contudo, diante do perigo externo, a rabugenta Domingas de Sônia Braga (perfeita) e o cangaceiro não-binário de Silvero Pereira (mais perfeito ainda) sentam no mesmo lado da trincheira.

O filme ressignifica o cangaço enquanto unidade disposta a lutar contra o medo. O avanço da tropa gringa é recebido com preparação, e é milagroso ver o local escolhido para refugiar o povo de Bacurau: é a escola que garante a proteção de todos. O simbolismo alegórico mais uma vez dá um tapa na cara quando escolhe estrategicamente suas interpretações quanto ao real, e Bacurau pode ser fictícia, mas é governada por um prefeito inútil que controla desde a liberdade quanto os recursos, dados em muitas vezes de maneira precária. Não poderia ser mais verdadeiro.

"Bacurau" está lado a lado do que, sem modéstias, chamo de "Santíssima Trindade do cinema nacional moderno": "Que Horas Ela Volta?" (2015) de Anna Muylaerte e "Divino Amor" (2019) do também nordestino Gabriel Mascaro. Os três, cada um com sua abordagem, estudam, criticam e expõem os impropérios e desigualdades do nosso país de maneira igualmente brilhante e extremamente necessárias enquanto caminhamos para uma realidade que parece ter a cultura como elemento desimportante. Juntos, as três obras-primas tupiniquins não apenas comprovam a qualidade do nosso cinema como evocam o espírito de mudanças nesse país tão plural e que tem tanto a melhorar.

Se o povo de Bacurau, o vilarejo, dá o sangue para manter sua identidade viva contra quaisquer ameaças, "Bacurau", o filme, é uma dádiva que levanta a mão e grita "o cinema nacional resiste". E mais ainda: o cinema nordestino - que parece ser o polo principal da indústria contemporânea brasileira. Pondo seu local geográfico no protagonismo, é a terra que faz brotar o mandacaru que sabe onde estão os valores mais importantes de uma sociedade, e que não tem medo de descer a peixeira em quem tenta oprimi-la ou apagá-la. No faroeste psicodélico e distópico de "Bacurau", o Nordeste não vai pensar duas vezes antes de cair na capoeira, então não se meta.

Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

Crítica: banido na África, “Rafiki” é tão resistente quanto suas protagonistas lésbicas

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando "Aquarius" (2016) estreou no Festival de Cannes, com enormes elogios, tínhamos em mãos um escolhido definitivo para nos representar no Oscar, na categoria "Melhor Filme Internacional" (até então nomeada "Filme Estrangeiro"). No tapete vermelho da estreia, a equipe do filme protestou contra o golpe instaurado no governo de Dilma Rousseff. Como é o governo que escolhe o selecionado de cada país, através do Ministério da Cultura, "Aquarius" foi "punido" pelo protesto ao ser esnobado no processo de seleção. O escolhido, "Pequeno Segredo" (2016), é um filme que quase ninguém nem viu.

Tal artimanha política não é exclusividade do circo que é o Brasil - o Quênia fez exatamente o mesmo em 2018. O favorito para a seleção era o lésbico "Rafiki", da celebrada diretora Wanuri Kahiu. O primeiro longa queniano a chegar no Festival de Cannes, não demorou até ele ser banido no país pela "propaganda de incentivo ao lesbianismo", o que é crime nas leis vigentes. A comunidade internacional, óbvio, criticou pesadamente a decisão, o que levou a diretora a processar o país, a fim de conseguir lançá-lo.


O governo baixou uma condição: que a diretora mudasse o final do filme para algo triste, pois o original era "muito positivo e esperançoso". É claro que ela negou, o que piorou a situação: quem fosse pego em posse do filme, seria preso com pena de até 14 anos de prisão, a sentença básica para um homossexual no país. Felizmente, Kahiu venceu o processo, o que permitiu a estreia de "Rafiki", todavia, o governo fez exatamente o mesmo que nosso Ministério da Cultura: chutou o filme da seleção para o Oscar, mesmo sendo o principal do país no período.

Não estou querendo dizer que o prêmio da Academia é o que há de mais importante para a Sétima Arte, mas é inegável o fato de que ela é a maior vitrine cinematográfica que existe, o que torna essas "punições" ideológicas sofridas por "Aquarius" e "Rafiki" ainda mais preocupantes. O retrocesso soa pequeno, todavia, é muito mais que apenas um filme não sendo escolhido, é uma imposição de ideias retrógradas dizendo "quem vale aqui sou eu".


A protagonista de "Rafiki" é Kena, interpretada por Samantha Mugatsia, em seu primeiro papel. A diretora a conheceu em uma festa (!), convidando-a para estrear no Cinema logo como a estrela. Kena é filha de um candidato a política na periferia de Nairobi, e, enquanto se divide entre cuidar da mãe e do mercadinho do pai, conhece Ziki (Sheila Munyiva), filha do candidato rival, o que vai dificultar a aproximação das duas.

É a velha história que conhecemos desde que Romeu e Julieta existem: o melodrama de pombinhos que não podem ficar juntos pela rivalidade das famílias. O molde shakespeariano de "Rafiki" sai das terras italianas para o cerne da África e, mesmo sendo o clássico arquétipo do amor juvenil, explorado ao cansaço absoluto pela arte, possui ainda mais peso por se tratar de um romance lésbico.

A primeira grande impressão em "Rafiki" é seu visual. A obra de Kahiu deseja a celebração do Quênia, e pinta cada quadro com uma explosão de cores. Com um design de produção que mistura Wes Anderson com Spike Lee, há tenro cuidado na composição das cenas, com sacadas verdadeiramente engenhosas: o longa é quase inteiramente cor de rosa, porém, em cenas centradas nos personagens masculinos, a cor sai da tela. Só há vivacidade quando as mulheres dominam o ecrã.

"Rafiki" é contado a partir da visão de Kena, então os maiores desenvolvimentos acontecem ao redor da personagem. Entramos em sua vida, nos conflitos entre os separados pais e na maneira que a garota enxerga a própria sexualidade, completamente aprisionada pelo meio em que vive. Quando surge Ziki, ela não é muito mais que a interessante menina que é filha do outro candidato. A fita não busca um envolvimento por parte da plateia com o mesmo peso entre as duas partes, assim como em "Carol" (2015), quando intimamente conhecemos tanto Therese quanto Carol


E essa escolha narrativa é, na grande maioria das vezes, um problema. Para acreditarmos num romance, precisamos sentir a sintonia do casal, fomentada a partir do ponto que nos apegamos com ambos os envolvidos. Esse é um demérito de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), que coloca todo seu peso textual em cima de Elio, o que faz com que Oliver se mostre distante. Felizmente, "Rafiki" encontrou uma saída correta para amenizar os eventuais problemas.

Enquanto Kena é visualmente construída de maneira sóbria, nos moldes de tomboy, Ziki é o extremo oposto. As cores da fotografia são introduzidas na personagem, desde suas roupas até as enormes tranças coloridas. Ziki é imageticamente atraente, sedutora e impossível de passar despercebida. Toda essa composição proposital ajuda na hipnotização do público diante da garota, efeito fidedigno ao abatido em Kena, que nem consegue fingir sua fascinação por Ziki.

Uma escolha acertada da produção foi deixar de fora qualquer cena de sexo. Talvez pela idade das atrizes, talvez pela complexidade da abordagem, "Rafiki" prefere transformar aquele romance num conto de fadas: tudo é filmado com muita delicadeza, sem gratuidades, emoldurados por tons patéis. É um contraste muito bonito a pureza daquele microcosmo com toda a feiura do que habita do lado de fora, quando elas devem escolher entre a felicidade e a segurança.


O primeiro choque social entre a relação das protagonistas vem do fato de que elas são filhas de políticos rivais. Nenhuma das famílias se mostra favorável à união, e isso era quando ali rolava apenas amizade aos olhos de todos, o que reflete o título da obra: "rafiki" é "amigo" em swahili, a língua local, e designação dada aos casais homossexuais para fugir da proibição de serem quem são - os parceiros são sempre chamados de "amigos". A situação piora quando as fofoqueiras de plantão descobrem o romance, o que desencadeia na cena-chave do filme.

Kena e Ziki são espancadas e presas. O mais longe que "Rafiki" vai em termos de opressão, todo o momento é fomentador de um senso grotesco de injustiça. É (quase) o máximo que um sistema absurdo pode proporcionar, quando atos de violência são respaldados pelas leis. Na delegacia, as duas ainda são ridicularizadas pelos policiais, que não enxergam motivos para não humilhar aquilo que há de pior.  Os ritos após continuam a degradação: Ziki é mandada embora do país enquanto Kena é exorcizada - homossexualidade é considerada possessão demoníaca dentro do corpo cultural queniano. "Rakifi" se aproxima de "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) como vozes modernas empenhadas em expor opressões femininas em solo africano.

Apesar de ser pungente nesse momento, é perceptível a impressão de que a película não vai até aonde deveria. Poderá ser além de satisfatória para o público alvo - adolescentes assim como suas personagens -, no entanto, plateias mais maduras sentirão falta de complexidades e aprofundamentos que não sejam tão facilmente desenrolados como os apresentados. São saídas que soam fáceis e sub-tramas que ficam pelo caminho - o garoto gay que sofre violência constante é super mal aproveitado, um exemplo que cerceia o alcance do todo.

"Rafiki" pode não exercer todo o potencial dramático que prometia, mas é uma exultação para o cinema LGBT pela doçura de sua abordagem, beleza de suas imagens e veracidade de seus temas. É uma das poucas obras que consegue tanto enaltecer quanto criticar um mesmo foco - no caso, a situação sócio-política do Quênia -, sem deixar de evocar todo o prisma feminista em meio de um local engolido pela miséria. Nem todas as tentativas de censura são capazes de impedir a explosão de liberdade da fita, que não abre mão de denunciar o que deve ser mudado, e, desta maneira, é um filme tão resistente quanto suas personagens. "Rafiki" nos recorda que os anseios femininos podem ir muito mais longe que a máxima "boas meninas se tornam boas esposas".

Crítica: "Okja" é um filme caricato e panfletário pronto para a Sessão da Tarde

Atenção: a crítica contém spoilers.

"Okja" pode parecer um filme bastante inocente quando temos a história de uma garotinha tentando salvar a vida de sua amiga porca, mas desde a estreia no Festival de Cannes, em maio, a produção encontra polêmicas – conservadoras, mas ainda assim polêmicas. O festival, bastante tradicional, abriu as portas pela primeira vez para filmes que não são exibidos nos cinemas na competição da Palma de Ouro, o que enfureceu a muitos.

Quando o logo da Netflix, produtora da obra, apareceu durante a exibição, vaias ecoaram pela sala. Se de um lado temos essa resistência pela era dos streamings, por outro parece um final óbvio para a nova era do Cinema: o império construído pela Netflix já chegou até ao Oscar. Mesmo com as vaias, para contrabalancear, o longa recebeu palmas no término da sessão.

"Okja" é o sétimo filme do sul-coreano Bong Joon-ho, diretor dos ótimos "O Hospedeiro" (2006) e "Mother: Em Busca da Verdade" (2009), e o segundo filmado (parcialmente) em inglês - o primeiro foi "Expresso do Amanhã" (2013). Destrinchando ainda mais a premissa, temos um mundo onde a fome impera e a Corporação Mirando, liderada pela CEO Lucy Mirando (Tilda Swinton) desenvolveu um "superporco": uma raça de porcos modificada que aumentam seu tamanho e podem ser a solução da fome. 26 desses bichinhos (nada pequenos) são enviados para 26 fazendeiros ao redor do mundo para que, com as condições climáticas diferentes, a empresa descubra qual será, em 10 anos, o melhor dos superporcos. É aí que entra Mija (Ahn Seo-hyun), uma garotinha dona de Okja, a malfadada superporca que será eleita a melhor da raça (feita com competentes efeitos especiais).


A menina é enganada pelo avô (Byun Hee-bong) quando Dr. Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal), zoólogo e porta-voz da Mirando, anuncia que Okja é a vencedora. O avô, que mentiu dizendo que tinha comprado a porca, revela que a empresa não quis vendê-la e que agora ela vai até Nova Iorque, o que enfurece Mija. A garota então parte numa caçada global para resgatar sua melhor amiga.

A obra então se divide em duas vertentes: de um lado temos a aventura de Mija para se reencontrar com Okja e do outro temos uma viagem ao submundo da indústria alimentícia. A corrida da protagonista se difere em nada de qualquer filme da Sessão da Tarde onde o dono perde o cachorro e sai à procura para, no final, voltarem juntos felizes para casa, por exemplo, então o peso da mensagem cai em cima da segunda vertente.


Sabe aquele ditado “Quando você descobre como se faz salsicha, não vai mais querer comer”? Pois é, é mais ou menos assim que “Okja” deseja discutir o uso animal na indústria. Joon-ho, no entanto, não é um cineasta que se leva tão a sério. Em “Mother” o diretor aborda assuntos bastante complexos, porém, não abre mão de uma veia cômica que dificilmente funciona na maior parte dos filmes. Mas em “Mother” funciona pelas doses modestas, o que não acontece em “Okja”.

Talvez pela visibilidade, sendo um filme com grande elenco hollywoodiano e distribuído pela Netflix, Joon-ho cai de cabeça no pastelão, no mais comercial possível. Praticamente todos seus personagens são extremamente caricatos, parecendo bem mais personagens de desenho animado. O pobre Jake Gyllenhaal, coitado, é uma mistura bizarra de Ace Ventura (Jim Carrey) com Borat (Sacha Baron Cohen), cheio de trejeitos insuportáveis e uma voz desastrosa. Bêbado então, uma vergonha. O personagem, literalmente, poderia não existir que a história mudaria em pouquíssima coisa, sendo facilmente substituído.


E esse é o principal problema da película: levar na brincadeira algo que deveria ser mais sério. Não, o tema não precisaria de um estilo documental, seco, corretíssimo, no entanto, há tanta baboseira envolvida que é impossível apreciar as discussões mais relevantes do roteiro: ao invés de transformar o riso em algo inteligente, a linguagem não nos faz levar a sério o que está exposto. É quando o lúdico deixa de agregar para ser pateta.

Há, aqui, um cerne claro: consumo irresponsável de carne é ruim. Diferente do que muitos dizem, “Okja” não é um filme pró-veganismo; a própria protagonista come carne. O que o filme tenta debater é como a indústria lida com a vida de animais para o consumo humano e como ignoramos todos os maus tratos enfrentados pelos bichos em prol do nosso churrasco de domingo.

Tal discussão é absolutamente válida e urgente, entretanto, “Okja” não abre mão dos macetes mais forçados possíveis para julgar toda a trama: de um lado temos Mija, a inocente e determinada protagonista, que encontra forças com uma associação de libertação animal (uma versão mais radical e ficcional do PETA); do outro, a Corporação Mirando, com seus malvados e cruéis proprietários, que só visam o lucro a qualquer custo. O binarismo “bem” versus “mal” de segunda série aqui não dá o peso das enormes camadas que a situação pede, com toda a trajetória obrigando o espectador a cair de um dos lados do ringue ao invés de expor seus lados de forma natural. Você é obrigado a engolir o que o filme diz, o que torna a discussão sem propósito, já que, no fim das contas, não é bem uma discussão.


Com a discussão posta goela abaixo, sobra ao longa a viagem de Mija até Okja. Uma das melhores coisas da obra é o uso de atores orientais e falas coreanas, o que não torna toda a coisa em uma novela da Glória Perez onde todas as pessoas do mundo falam a mesma língua (sem sotaque). Nos primeiros encontros dos americanos com Mija, há um tradutor, que inclusive gera um dos melhores momentos da fita, porém, em determinado momento, o filme se cansa dessa barreira linguística e faz com que a protagonista aprenda inglês dentro de um voo. Sim, a garotinha sai do avião entendendo e falando inglês básico, uma língua absurdamente diferente do coreano. Superdotada, QI avançado.

Outro ponto interessante é a inteligência dos superporcos: eles são capazes de realizar cadeias de pensamentos complexas. Numa cena, onde Mija cai num precipício, Okja, com uma corda, consegue desenvolver grandes cálculos matemáticos para poder salvar a dona. Perto do final, ao sair de um matadouro na sede da Mirando, um casal de porcos entrega seu bebê porco para que Mija o leve a salvo, numa hiper humanização dos bichos, mais humanos que nós mesmos. A cena, o ápice constrangedor do filme (e olha essa disputa que é páreo duro), joga gás lacrimogêneo tela adentro com todos os porcos se compadecendo da própria situação e chorando em coro. Melodrama mexicano.


Para finalizar o show de erros que encontramos aqui, a solução é completamente sem propósito: Okja vai até Nova Iorque porque o avô de Mija não consegue comprá-la. Com o dinheiro, ele compra uma porca de ouro e dá para a neta. Faltando segundos para a morte de Okja (claro), Mija oferece a porca de ouro em troca de sua amiga. Nancy Mirando, a irmã (ainda mais) malvada de Lucy (também interpretada por Swinton, dessa vez reforçando a afetação), decide aceitar a oferta. Ora, pra quê então todas as duas horas de projeção se a solução já estava ali desde o começo do filme? E se a irmã "menos malvada" não aceitou a venda, quais as chances da pior aceitar?

E é cômico, para não dizer trágico, a forma como o filme termina: tudo continua do jeito que começou. A Mirando continua abatendo porcos enquanto Mija volta para casa tranquila com Okja (e o bebê porco). Ela só queria resgatar a amiga, e quando o fez, seguiu com sua vida enquanto o próximo porco entrou na linha de produção para ser morto. "Okja" é um círculo vicioso: toda a sua duração começa e termina praticamente no mesmo lugar, Mija com Okja, Mirando matando seus animais. A obra faz a mesma coisa que critica: todos nós sabemos dos problemas e crueldades da indústria animal, mas continuamos a viver sem grandes preocupações, assim como a "heroína".

“Okja” tem boas intenções, isso não há como negar, num longa que minimamente nos bota para pensar sobre capitalismo e o que colocamos em nossos pratos, e há um belo design de produção e momentos agradáveis  o início, mostrando a vida de Mija com sua porca de estimação, é fofo , contudo, a propaganda panfletária e didática contra o uso indiscriminado de animais para o consumo predatório se torna chacota com todos os elementos paupérrimos utilizados para construí-la, o que desvia também o público-alvo da película. Não é um clássico infantil, pelas discussões avançadas e sua linguagem, mas definitivamente não é um filme adulto, por todo o pastelão "Zorra Total". Pela aventura clichê e previsível, o emocionalismo barato, as soluções preguiçosas e os personagens vergonhosos, “Okja” é um ótimo filme para vender pelúcia, mesmo seu animal mais parecendo um hipopótamo do que um porco.

Cannes 2017: por que essa edição foi tão importante para as mulheres da indústria do cinema?

Estes últimos dias têm sido extremamente relevantes para a mulher na indústria cinematográfica: tivemos a estreia, em alguns países de "Mulher Maravilha" (no Brasil o longa chega aos cinemas no dia primeiro de junho), primeiro grande filme de super-herói dirigido por uma mulher – e o de maior orçamento comandado por uma diretora, com o custo de U$S 100 milhões –, e o Festival de Cannes, que consagrou e destacou o trabalho e o potencial, quase sempre negligenciado, das mulheres do cinema.

Estamos falando de Sofia Coppola, que levou o prêmio de melhor direção com "The Beguiled" (um remake da versão de Don Siegel, de 1971), e de Nicole Kidman, que foi homenageada por estar em quatro produções do festival, sendo duas delas participantes da mostra competitiva.

Com o cinema no sangue e DNA, Sofia foi a segunda mulher a levar o prêmio de direção, sendo que a primeira, Yuliya Solntseva, o recebeu há 56 anos – em 70 de Festival. Este cenário exageradamente desproporcional em relação à participação masculina em Cannes é apenas um reflexo do sexismo que existe em frente e por trás das câmeras (leia sobre aqui).

Segundo dados levantados pela New York Film Academy, existe uma mulher para cinco homens que trabalham nos bastidores de uma produção. Em um panorama mais crítico que o de Cannes está o Oscar, pois o prêmio de direção da Academia foi concedido a uma mulher apenas uma vez: Kathryn Bigelow ganhou a estatueta dourada por "Guerra ao Terror", em 2010.



Apesar do brilho de Sofia Coppola, a “Rainha de Cannes” (assim apelidada) foi Nicole Kidman. Aos 49 anos, a atriz já explorou praticamente todos os gêneros cinematográficos e participou desta edição do festival com três filmes e uma série: "The Beguiled" (o mesmo de Sofia), "The Killing of a Sacred Deer", "How to Talk to Girls at Parties" e "Top of the Lake: China Girl” (série). Em seu discurso de agradecimento pelo prêmio de honra, a atriz australiana não deixou de manifestar seu descontentamento com o machismo na indústria do cinema.

"Apenas 4% de mulheres dirigiram filmes em 2016. [...] Por sorte, temos Jane Campion e Sofia Coppola aqui [em Cannes]. Nós, como mulheres, temos que dar suporte a elas como diretoras. Todos dizem que hoje as coisas são diferentes, mas não são. Basta olhar as estatísticas", disse Nicole.

Percebam, então, que o maior problema não é por culpa do Festival de Cannes, Locarno, Sundance, Rio, do Oscar ou Globo de Ouro. A indústria não conspira a favor das profissionais do sexo feminino; portanto, o buraco é bem mais embaixo. Se existem poucas mulheres nas produções, uma parcela menor ainda irá se destacar a ponto de chegar nessas competições – e, consequentemente, a quantidade de ganhadoras será ínfima. Estamos falando de oportunidades e representatividade. 

O "Clube do Bolinha" de Hollywood precisa ser desfeito. Por isso, é sim necessário celebrar essas pequenas grandes conquistas. Que cada vez mais as atrizes recebam salários iguais aos de seus colegas homens. Que cada vez mais mulheres possam ocupar a direção de filmes (ou qualquer outra posição atrás das câmeras), dos independentes aos blockbusters. Que cada vez mais as mulheres sejam reconhecidas pelo talento, e não por seus corpos, looks, companheiros, “testes de sofá” ou pais cineastas. Então a gente comemora e enaltece sim, pois cada passo, mesmo que pequeno, é uma conquista – para elas e para todas. 

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