A 77ª edição do Globo de Ouro aconteceu na noite do último domingo (6) e abriu oficialmente a temporada de premiações televisivas em Hollywood, que consiste em cinco grandes noites: o Globo, o Critics' Choice, o Satellite, o BAFTA e, claro, o Oscar, o maior e último da temporada. Precisamos entender alguns pontos.
Ainda há uma grande impressão que o Globo de Ouro é um termômetro definitivo para o Oscar, o que não é bem verdade. Já começa pelo fato de que as duas premiações são realizadas por organizações diferentes: enquanto o Globo é feito pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, o Oscar é realizado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Enquanto a primeira possui 90 membros - jornalistas do mundo inteiro -, a Academia tem mais de 6 mil.
Outro motivo para diminuirmos a ideia de "termômetro" é o posicionamento das premiações no calendário. O Globo é realizado enquanto nem ao menos os indicados ao Oscar foram divulgados, ou seja, eles já premiam seus favoritos antes mesmo do Oscar dizer quem vai para sua corrida. Se olharmos para essa década, cinco vencedores do Oscar de "Melhor Filme" perderam uma das três categorias principais no Globo ("Melhor Filme Drama", "Comédia" ou "Estrangeiro"), ou seja, a metade: "A Forma da Água" em 2018, "Spotlight" em 2016, "Birdman" em 2015, "O Discurso do Rei" em 2011 e "Guerra Ao Terror" em 2010.
Pois bem. Entre tantas divergências, há uma semelhança que o Globo de Ouro 2020 deixou gritante: Hollywood não está interessada em premiar a Netflix. Na temporada de 2019, o grande favorito ao Oscar de "Melhor Filme" era "Roma". O filme de Alfonso Cuarón estava sendo amplamente celebrado na indústria, mesmo sendo em língua não-inglesa, e todos apontavam como o primeiro filme estrangeiro a vencer a maior categoria na história.............mas veio a premiação e quem levou foi "Geen Book: O Guia". Qual seria o maior motivo para isso? "Roma" é da Netflix.
A atual temporada, curiosamente, possui vários filmes da plataforma como grandes candidatos ao careca mais cobiçado do mundo, como o próprio Globo nos mostrou. Dos 10 indicados a "Melhor Filme", quatro eram da Netflix - com três deles na categoria de "Drama". Com 40% de chances de vitória, com outros estúdios dividindo as outras posições, tudo levava a uma estatueta na estante da produtora, porém, como a imagem abaixo revela, a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood deixou claro seu posicionamento.
Todos os quatro filmes da Netflix foram chutados. É verdade que "Meu Nome é Dolemite" não era, nem de perto, o favorito em "Comédia", que não surpreendeu ao dar para "Era Uma Vez em Hollywood", contudo, foi um choque "1917" levando em "Drama". Entre os cinco indicados, o filme de guerra de Sam Mendes era o menos cotado, ficando muitíssimo atrás de "Dois Papas", "História de Um Casamento" e, principalmente, "O Irlandês", a maior aposta da noite.
A zebra foi tão grande que "O Irlandês" levou o montante de ZERO prêmios, algo que ninguém esperava. Ao todo, a Netflix conseguiu apenas uma categoria em Cinema, "Melhor Atriz Coadjuvante" para Laura Dern em "História de Um Casamento" - e nem é necessário discorrer sobre como um prêmio em 17 indicações (com favoritismos) é um alerta.
A escolha do Globo, de abertamente esnobar a Netflix, é um desejo em preparar o terreno dentro da indústria para as próximas premiações - o que nem sempre dá certo, como no caso de 2017 quando "La La Land" levou TODAS as sete categorias indicadas e perdeu o Oscar de "Melhor Filme". O que a organização quer dizer para o que vem em seguida é: "Temos escolhas que não sejam da Netflix". "1917" levando "Melhor Filme Drama" e "Melhor Direção" (outro choque que até mesmo o diretor não acreditou) é um apelo para colocar o filme em posição de destaque, a fim de diminuir o peso dos selecionados pela Netflix.
Mas, afinal, por que há tanta resistência à plataforma? Para um filme ser elegível às premiações, ele deve estrear por, no mínimo, uma semana em solo norte-americano (em Los Angeles de preferência, pois a maioria dos votantes está lá). A Netflix costumava lançar seus longas diretamente no catálogo em stream, mas, com a visibilidade de "Roma", passou a mudar o jogo. Em 2019, indo atrás das grandes redes de cinema do país, fez uma proposta de até um mês de exclusividade (antes de jogar os filmes na plataforma) e foi sumariamente negada: as redes só aceitam, no mínimo, três meses de exclusividade. Ela, então, decidiu cancelar as negociações, deixando seus filmes de fora das maiores redes.
A indústria vê essa decisão da Netflix como um privilegiamento do streaming - ao não querer demorar a disponibilizar suas obras para quem paga o catálogo, a Netflix enfraquece o ato de ir ao cinema. Caso suas exigências fossem aceitas, o cinema como conhecemos sofreria grandes mudanças já que o stream seria o principal foco, e é claro que não é isso que a indústria quer. Válido lembrar do ataque de Steven Spielberg no começo do ano, que é severamente contra ao modo que a Netflix não aceita as mesmas condições que todos os estúdios aceitam para disputar prêmios - Spielberg até mesmo fez enorme campanha para "Green Book" derrotar "Roma" no Oscar 2019, e foi o que aconteceu. A plataforma chegou a se pronunciar, apontando que o streaming facilita o acesso à arte.
We love cinema. Here are some things we also love:— Netflix Film (@NetflixFilm) 4 de março de 2019
-Access for people who can't always afford, or live in towns without, theaters
-Letting everyone, everywhere enjoy releases at the same time
-Giving filmmakers more ways to share art
These things are not mutually exclusive.
Além disso, a Netflix surge com campanhas cada vez maiores - a de "Roma" custou 50 milhões de dólares, a maior da temporada - a fim de driblar as restrições de distribuição e colocar seus escolhidos nos postos mais altos. Se o Oscar 2020 seguirá os passos do Globo de Ouro, temos que esperar para ver, porém, é o caminho que parece mais certo. Vamos concordar que poderiam premiar "Parasita" e acabar com qualquer briga, pois é o melhor filme da temporada em qualquer uma das categorias.