Querido Tim Burton,
Tudo bem por aí? Esperamos que sim, mas por aqui não podemos dizer o mesmo, e um dos vários fatores para isso foi uma entrevista recente sua. Senta aqui, vamos conversar.
Estamos em 2016, e, felizmente, as pessoas estão cada vez mais preocupadas com uma coisinha chamada representatividade. Sabe o que é isso? É um efeito fortíssimo que todos os artefatos midiáticos possuem – o cinema então, a união de sete artes, nem se fala. É dar vez e voz nesses espaços para aqueles que comumente não possuem – as chamadas minorias que estão tão em voga atualmente.
Tendo isso em mente, várias discussões sobre representatividade acabaram chegando no seu mais novo filme, “O Lar das Crianças Peculiares”, baseado no livro “O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares”, de Ransom Riggs, que, inclusive, já lemos. É uma aventura prazerosa e que, mesmo com suas fraquezas, refletia bastante o seu estilo cinematográfico – tem uma citação sua na contra-capa do livro, diga-se de passagem.
Mas voltando à discussão. As pessoas começaram a se perguntar o motivo de todos os personagens do seu filme, com exceção do vilão (olha só), serem brancos. Podemos minimamente usar como argumento básico o fato dos personagens do livro serem todos brancos – as fotos que ilustram o livro comprovam. Então eles só estão de acordo com a obra (escrita por um autor branco), certo?
Hum, certo. Porém podemos colocar algumas cartas nessa mesa.
Primeiramente, seu filme é uma adaptação, ou seja, é uma recriação da obra original para as telas de acordo com sua visão. Mesmo possuindo um compromisso não dito de que você manterá fiel ao texto, não dá para sair copiado e colado. São duas mídias completamente diferentes, com abordagens e linguagens diferentes. E você mesmo deu provas de que pode mudar as coisas para se encaixar melhor na telona (ou seja lá a desculpa que for), como trocar as características peculiares de duas personagens (Emma acabou trocando de poderes com a Olive) e até mesmo características físicas (Fiona mudou o cabelo armado do livro para tranças lisas no longa, e a Srta. Peregrine saiu da casa da terceira idade para a beleza de Eva Green, que tem 36 anos). Então, caro Tim Burton, você pode mexer os pauzinhos e mudar certas coisas, não?
Sua justificativa para a falta de diversidade do elenco foi que, ao assistir Blaxploitations (filmes de ação dos anos 70 com diretores e atores negros, voltados para o público negro), não procurava personagens brancos (“então, por favor, retribuam a gentileza e não procurem atores negros no meu filme, cof”). Ora, e você nem deveria. Essa minoria criou esse subgênero exatamente pela pouca representatividade no cinemão, então sua justificativa é furada.
Mas nós entendemos a grande sacada de tudo isso. Por um lado, temos o prisma mercadológico, e personagens brancos parecem ser, digamos, mais vendáveis. Sabe a Katniss, a heroína da saga “Jogos Vorazes”? No livro ela é descrita com a pele da cor de oliva, mas nos filmes ela é, isso mesmo, branca. Tá ótima a troca, não fez diferença, é só um filme, nem precisa ser tão igual ao livro.
O outro lado é a revolta que uma troca tão importante assim gerará nos fãs. Imagina só o Jacob, protagonista do filme, ser negro! Só vermos a nova Hermione na peça de “Harry Potter”, que agora é negra. De acordo com os comentários raivosos que surgiram depois do anúncio da atriz negra, a cor da pele muda COMPLETAMENTE tudo que existe no personagem, pois é inadmissível ela deixar de ser branca e se tornar negra, vocês estão bagunçando uma personagem tão amada – mesmo que a troca inversa com a Katniss seja ok. E esse é só um exemplo de trocas raciais/étnicas que são passáveis – sempre do negro/índio/oriental/etc para o branco, o contrário não pode. Você não arriscaria fazer o mesmo.
Seja como for, o recado chegará até você: a era do mimimi, como alguns insistem em chamar, está apenas começando, e durará enquanto o favoritismo branco se perpetuar – e esse é apenas um dos exemplos de privilégios a serem discutidos. Sabemos que seu filme tem puramente o intuito de entreter, mas você possui uma responsabilidade social, assim como qualquer outro que trabalhe com mídias diversas. Cinema é puro poder bélico de representatividade, não importando se seu filme é uma fantasia. Até animação tem representatividade envolvida. Por isso, vamos continuar questionando, pois pior do que habitar no cenário que nos encontramos, é estar confortável com ele. E vale se perguntar, com sinceridade, o que mudaria na sua narrativa caso o protagonista nas telas fosse negro? Se a resposta não for “nada”, deverá ser “pouca coisa”. Todavia, representativamente falando, faria muita diferença. Na próxima, quem sabe você acerta.
Abraços, tudo de bom.
Tudo bem por aí? Esperamos que sim, mas por aqui não podemos dizer o mesmo, e um dos vários fatores para isso foi uma entrevista recente sua. Senta aqui, vamos conversar.
Estamos em 2016, e, felizmente, as pessoas estão cada vez mais preocupadas com uma coisinha chamada representatividade. Sabe o que é isso? É um efeito fortíssimo que todos os artefatos midiáticos possuem – o cinema então, a união de sete artes, nem se fala. É dar vez e voz nesses espaços para aqueles que comumente não possuem – as chamadas minorias que estão tão em voga atualmente.
Tendo isso em mente, várias discussões sobre representatividade acabaram chegando no seu mais novo filme, “O Lar das Crianças Peculiares”, baseado no livro “O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares”, de Ransom Riggs, que, inclusive, já lemos. É uma aventura prazerosa e que, mesmo com suas fraquezas, refletia bastante o seu estilo cinematográfico – tem uma citação sua na contra-capa do livro, diga-se de passagem.
Mas voltando à discussão. As pessoas começaram a se perguntar o motivo de todos os personagens do seu filme, com exceção do vilão (olha só), serem brancos. Podemos minimamente usar como argumento básico o fato dos personagens do livro serem todos brancos – as fotos que ilustram o livro comprovam. Então eles só estão de acordo com a obra (escrita por um autor branco), certo?
Hum, certo. Porém podemos colocar algumas cartas nessa mesa.
Primeiramente, seu filme é uma adaptação, ou seja, é uma recriação da obra original para as telas de acordo com sua visão. Mesmo possuindo um compromisso não dito de que você manterá fiel ao texto, não dá para sair copiado e colado. São duas mídias completamente diferentes, com abordagens e linguagens diferentes. E você mesmo deu provas de que pode mudar as coisas para se encaixar melhor na telona (ou seja lá a desculpa que for), como trocar as características peculiares de duas personagens (Emma acabou trocando de poderes com a Olive) e até mesmo características físicas (Fiona mudou o cabelo armado do livro para tranças lisas no longa, e a Srta. Peregrine saiu da casa da terceira idade para a beleza de Eva Green, que tem 36 anos). Então, caro Tim Burton, você pode mexer os pauzinhos e mudar certas coisas, não?
Sua justificativa para a falta de diversidade do elenco foi que, ao assistir Blaxploitations (filmes de ação dos anos 70 com diretores e atores negros, voltados para o público negro), não procurava personagens brancos (“então, por favor, retribuam a gentileza e não procurem atores negros no meu filme, cof”). Ora, e você nem deveria. Essa minoria criou esse subgênero exatamente pela pouca representatividade no cinemão, então sua justificativa é furada.
Mas nós entendemos a grande sacada de tudo isso. Por um lado, temos o prisma mercadológico, e personagens brancos parecem ser, digamos, mais vendáveis. Sabe a Katniss, a heroína da saga “Jogos Vorazes”? No livro ela é descrita com a pele da cor de oliva, mas nos filmes ela é, isso mesmo, branca. Tá ótima a troca, não fez diferença, é só um filme, nem precisa ser tão igual ao livro.
O outro lado é a revolta que uma troca tão importante assim gerará nos fãs. Imagina só o Jacob, protagonista do filme, ser negro! Só vermos a nova Hermione na peça de “Harry Potter”, que agora é negra. De acordo com os comentários raivosos que surgiram depois do anúncio da atriz negra, a cor da pele muda COMPLETAMENTE tudo que existe no personagem, pois é inadmissível ela deixar de ser branca e se tornar negra, vocês estão bagunçando uma personagem tão amada – mesmo que a troca inversa com a Katniss seja ok. E esse é só um exemplo de trocas raciais/étnicas que são passáveis – sempre do negro/índio/oriental/etc para o branco, o contrário não pode. Você não arriscaria fazer o mesmo.
Seja como for, o recado chegará até você: a era do mimimi, como alguns insistem em chamar, está apenas começando, e durará enquanto o favoritismo branco se perpetuar – e esse é apenas um dos exemplos de privilégios a serem discutidos. Sabemos que seu filme tem puramente o intuito de entreter, mas você possui uma responsabilidade social, assim como qualquer outro que trabalhe com mídias diversas. Cinema é puro poder bélico de representatividade, não importando se seu filme é uma fantasia. Até animação tem representatividade envolvida. Por isso, vamos continuar questionando, pois pior do que habitar no cenário que nos encontramos, é estar confortável com ele. E vale se perguntar, com sinceridade, o que mudaria na sua narrativa caso o protagonista nas telas fosse negro? Se a resposta não for “nada”, deverá ser “pouca coisa”. Todavia, representativamente falando, faria muita diferença. Na próxima, quem sabe você acerta.
Abraços, tudo de bom.